quarta-feira, 25 de janeiro de 2006

Até qualquer dia, Otelo Caçador
Conheci Otelo Caçador em uma tarde qualquer de 1995, lá no Bracarense do Leblon (acho que todas as histórias que têm Leblon no meio parecem começar no Bracarense). Fomos apresentados por um dos pinguços habituais, eu como repórter de A Notícia mas fazendo frilance para um jornal que morreu no nascedouro, o Muito Prazer, Leblon. O título está registrado no nome de um ex-chefe, que desistiu do projeto. A única coisa boa, no entanto, foi ter passado uma tarde biritando com esse Rubro-Negro com R e N maiúsculos que foi ontem ao encontro de Dida, Zizinho e Geraldo assistir vitórias do Flamengo celestial no campeonato do céu.
Sobre Otelo, se pode dizer sempre aquela frase famosa que eu costumo dizer antes de dizer nomes como Maurício Neves, Alexandre Lalas e Zico: pode existir alguém tão rubro-negro quanto, mas não existe ninguém que seja mais rubro-negro. Há 11 anos, já meio abatido pelo tempo e bebendo muito pouco - um ou dois chopes, o resto era cerveja para visitas, Otelo era resquício de um tempo em que o futebol era uma questão entre deuses, uma batalha entre modos de ver a vida, muito mais do que simples entretenimento de merda nas vozes de Galvão, Noronha e Marsiglia entre dois blocos do Faustão. Futebol tinha a marca do Jorge Cúri e do Waldir Amaral, que narravam uma partida entre Flamengo e Vasco com a imponência de quem descreve, quem sabe, uma luta no Olimpo, um acontecimento fatídico, a decisão de se jogar uma bomba sobre Hiroshima. Futebol, no tempo de Otelo, era decidir sobre a hegemonia racial - nós, brancos, negros, amarelos e azuis que vestimos a camisa do Flamengo, evidentemente com superioridade sobre as outras raças.
Naquele apartamento na Afrânio de Melo Franco, sob o carinho e a atenção da mulher de Otelo, vimos antigas gravuras, autógrafos de Dida e Evaristo, charges dos tempos de Carlinhos Violino e rimos muito com o placar moral. Como se cansou de dizer ao longo da vida, Otelo teve que deixar a cidade depois de colocar Flamengo 6 x 6 Botafogo no Placar Moral no dia 16 de novembro de 1972, quando houve aquele esquecível derrota para a cachorrada.
E naquela tarde lendo antiguidades, sempre com a narração combalida mas imponente de Otelo Caçador, eu percebi que o Flamengo vence o tempo. Que não se pode chamar um Dida, um Evaristo ou um Joel de passado ? eles permanecem, tal e qual a camisa encharcada de sangue de um Rondinelli no primeiro jogo da final de 1980, tal e qual o supercílio de Lico no confronto épico contra o Cobreloa na Santiago dos carabineros. Essas batalhas que fazem o Flamengo ser Flamengo continuam sendo disputadas - e vencidas. Naquela tarde de 1995, falávamos sobre o Centenário do Flamengo, até que o fotógrafo perguntou:
- E o do Botafogo? - para saber o que aconteceria com o clube alvinegro até seu centenário.
- Vai acabar antes - respondeu Otelo, jocosamente, alfinetando mais uma vez seu alvo preferido na coluna.
O Botafogo ainda não acabou - tampouco Otelo, apesar de sua morte ocorrida anteontem, uma segunda-feira boba. Que ficou mais boba ainda, sem o formidável humorista.
Anos depois daquele encontro, Otelo voltaria ao batente, tecendo charges e piadas para o jornal Extra. Mas nunca teve a mesma graça - achava eu que o velho estava fora de forma, e dificilmente ria de suas ironias futebolísticas. Eu estava errado - não foi Otelo que envelheceu ou ficou sem graça. Foi o futebol. No tempo em que Otelo tinha graça, a derrota era uma chaga, um ferimento quase incurável. A vergonha durava de domingo a domingo, os jogadores permaneciam anos nos clubes, as decisões eram batalhas campais, onde a técnica e o talento jamais venciam sozinhos, e sim quando acompanhados de raça e dedicação. Não era apenas o tal "amor à camisa" cuja ausência é tão lamentada pelos saudosistas de hoje. Era um algo a mais, que Otelo sempre soube entender bem - o Flamengo vencer o Botafogo não era simplesmente a vitória de 11 jogadores sobre outros 11, e sim o fim de uma discussão, a preponderância de um modo específico de ver a vida, de ser abençoado, de esquecer a mortalidade. Era uma força espiritual que conseguia até mesmo transformar uma segunda-feira maçante em manhã infinita de sábado.
Ver Otelo partir, emocionado, por meio dos obituários de hoje, foi enternecedor. Com ele, se vai um pouco do que é Ser Flamengo, da arrogância e da marra nascidas da alegria e não do ressentimento. Sim, Otelo, naquele dia 15 de novembro de 1972 o Flamengo empatou em 6 a 6 com o Botafogo, e não se fala mais nisso. Sim, Otelo, o Leblon ainda é o melhor bairro do Rio, e suas águas são límpidas e cristalinas.
Vai em paz, Rubro-Negro, para este mundo que criaste.

Flamengo Net

Comentários