terça-feira, 10 de abril de 2012
Alfarrábios do Melo
Saudações
flamengas a todos. Ontem, discutindo os assuntos flamengos no blog,
surgiu o assunto “novo treinador”, como seria, como não seria. A
questão do aspecto disciplinar tem sido considerada sensível,
especialmente em tempos de desmandos e noitadas do Morcego Ronaldinho
e Cia. Talvez os jogadores fossem mais comedidos se no mercado
existisse alguém como a personagem que apresento agora. Boa leitura.
1970.
Disposta a conquistar um título expressivo, a diretoria do Flamengo
estabelece como prioridade máxima a reestruturação do time e do
elenco. Sem muito dinheiro, a ordem é contratar de forma cirúrgica
e aproveitar a limitada base, buscando extrair dela um conjunto que,
aliado a uma equipe brigadora, pode fazer do Flamengo novamente um
time vencedor.
O
grande reforço é o zagueiro Brito, vindo do Vasco, que, ao lado de
nomes como Reyes, Liminha, Arilson, Paulo Henrique e Doval, montarão
a espinha dorsal de uma equipe onde também vicejam talentos como
Onça, Dionísio (o Bode Atômico), Fio e Tinteiro.
Mas,
na visão da diretoria, uma grande reformulação precisa ser feita.
E o primeiro ponto a ser atacado é o criticado relacionamento entre
a comissão técnica e o time. O treinador anterior, Tim, apesar de
ter feito um trabalho considerado muito bom (perdeu o Carioca-69 por
detalhes) na montagem da equipe, era considerado um gestor sem pulso,
e vários casos de indisciplina foram relatados ao longo da temporada
anterior. A diretoria se reúne e constata que é preciso mudar. E de
forma radical, indiscutível, sem margem a dúvidas. E ninguém
melhor que ELE. É, ELE mesmo. O terror dos boleiros. O treinador que
habita os mais obscuros pesadelos de qualquer jogador de bola, o
homem que vai transformar num inferno a vida dos chinelinhos.
Yustrich vem aí.
Dorival
Knippel, o Yustrich (iustríck), construiu sólida carreira como
goleiro do Flamengo, onde participou da conquista de quatro Cariocas
(39 e o tri 42-43-44). Após abandonar os gramados, dedicou-se à
profissão de treinador. Oficial do Exército, passou a aplicar
métodos bastante peculiares de treinamento, ignorando solenemente as
técnicas de preparação física e condicionamento, preferindo
adotar métodos militares para a formação atlética dos jogadores.
Aliás, Yustrich seguia à risca os preceitos da caserna,
transformando a concentração em um verdadeiro quartel. Antes dos
treinos, passava os jogadores em revista, obrigava-os a aprender a a
cantar o hino nacional, inspecionava pessoalmente os armários dos
atletas, essas coisas. Tudo absolutamente sozinho. Tinha verdadeira
aversão a uma comissão técnica. Resolvia sozinho todas as questões
ligadas à parte técnica e disciplinar. Somente admitia que jogador
se expressasse após autorização para falar, e se valia de métodos
bastante heterodoxos para controlar a disciplina do grupo. Quando
dirigia o América-MG, deu uma surra num jogador flagrado em uma mesa
de sinuca no horário da concentração. Outra vez, já no
Atlético-MG, esperou um jogador voltar da noitada na porta do
alojamento. Expulsou-o a sopapos e pontapés do hotel, do time e do
clube, numa forma bem, digamos, própria de rescisão contratual. Em
Portugal, após uma vitória do Porto (que dirigia) por 5-0, exigiu
que os jogadores saudassem o público. Um deles se recusou e apanhou
a ponto de baixar hospital. Assim é Yustrich, que por incrível que
pareça anda em alta, após tirar o FC Porto de uma fila de 16 anos
sem o título português, ganhar alguns campeonatos mineiros pelo
Atlético-MG e, façanha maior, ganhar o Estadual mineiro dirigindo o
modesto Siderúrgica, de Sabará. O prestígio de Yustrich é tamanho
que o Homão (como é conhecido) chega a ser cotado para dirigir a
Seleção Brasileira. O Flamengo pode ser um excelente trampolim.
A
Gávea recebe Yustrich com festa e esperança de dias melhores. Na
primeira reunião de trabalho, o Homão é apresentado a um detalhado
documento, uma espécie de carta de intenções e diretrizes, onde
constam minúcias como a composição do elenco, os nomes da comissão
técnica, as expectativas e o planejamento para a temporada.
Irritado, Yustrich rasga o papel e sai da sala berrando: “o
planejamento aqui sou eu.” É uma pequena mostra do que está por
vir.
No
início, a chacoalhada no elenco dá certo, e Yustrich faz o time
render. Mais, o Flamengo voa em campo. Em um torneio preparatório, o
Flamengo goleia (4-1) a Seleção da Romênia de Dumitrache (que mais
tarde enfrentará o Brasil na Copa) e, na sua melhor exibição em
anos, trucida o Independiente argentino com categóricos 6-1 diante
de um Maracanã lotado e enlouquecido. Na final, o Flamengo vence o
Vasco (2-0) e confirma a boa fase, conquistando o título do torneio,
ficando o Vasco com o vice-campeonato. Satisfeita, a diretoria
suspira, aliviada por ter tomado a medida certa. Por enquanto.
No
embalo de Yustrich, o Mengão-70 (como passa a ser chamado pela
torcida) vai disputar a Taça Guanabara, torneio que é desvinculado
do Campeonato Carioca e que apresenta uma fórmula particularmente
complicada esse ano. Após um início irregular (chega a ser goleado
pelo Bangu), o Flamengo arranca e, na reta final encaixa uma de suas
famosas atropeladas, conquistando o título após vencer Vasco,
Bangu, Botafogo e América, e empatar a final (1-1) com o Fluminense.
Na certeza de que o trabalho irá dar frutos mais ambiciosos, todos
estão alheios aos problemas que começam a pipocar aqui e ali. A
bola está entrando.
O
primeiro quiproquó acontece com Brito. Yustrich está satisfeito com
a zaga formada por Onça e o jovem Washington, ignora solenemente o
retorno do zagueiro tricampeão após o Mundial e prefere manter
Brito no banco. O craque esperneia, reclama pela imprensa, e Yustrich
berra nos microfones, apregoando que não tem nada a discutir com um
“fumante e cachaceiro” como Brito (lembrando que Brito foi eleito
o melhor atleta da Copa-70). Sem alternativas, Brito, a grande
contratação flamenga para a temporada, é negociado com o Cruzeiro,
após fazer cerca de 10 jogos.
Mas
as confusões continuam. O Homão cisma com as camisas coloridas do
zagueiro Onça e o barra, trazendo Reyes para a zaga (o maior acerto
de sua passagem). Reclama dos cabelos compridos de Doval, e começa a
persegui-lo, a ponto de escalá-lo como lateral-direito. Não desiste
até conseguir afastá-lo, e a diretoria acaba emprestando o Gringo
para o Huracán (Argentina).
As
práticas de Yustrich começam a incomodar jornalistas (por quem
nutre um ódio especial) e a intrigar os diretores. Seu esquema
tático inexiste, é baseado em uma forte marcação no campo
adversário e na busca pela compactação plena, algo que só pode
ser alcançado com jogadores em plena forma física. Mas o Homão
invariavelmente enxota qualquer fisicultor, preparador ou outra
dessas “porras que só mamam o dinheiro do clube.” Nem um mísero
Teste de Cooper é tolerado por Yustrich, cuja metodologia é
considerada “superada mesmo se retrocedermos aos tempos do
amadorismo”. E a bola vai parar de entrar.
O
Flamengo faz campanha pífia no Carioca, terminando em quinto lugar.
No Roberto Gomes Pedrosa, consegue a “façanha” de engatar CINCO
empates em 0-0 dentro de SETE jogos. Na derrota (1-3) para o
Cruzeiro, Brito, no final da partida, aproxima-se de Yustrich e lhe
joga a camisa suada na cara. O Flamengo termina a competição em
quinto lugar, e o Homão consegue importante unanimidade. Todos querem à sua saída. Mas, avaliando a necessidade de
continuidade, Yustrich, para estupefação geral, é mantido.
Como
é esperado, o time fracassa em todas as competições do primeiro
semestre de 1971, seja no Torneio do Povo (termina em último), seja
no Carioca. Já pela competição estadual, o Flamengo vai enfrentar
o lanterna Bangu no Maracanã. A equipe, bastante enfraquecida pelas
birras de Yustrich e completamente desmotivada, leva um vareio de
bola e desce pro intervalo perdendo. Nos vestiários, um apático
Yustrich permanece quieto, até começar a vociferar “vamos virar
essa merda, vocês não são seguidores de Nossa Senhora? Eu tenho um
grupo de facínoras, que não temem a Deus?” Com essas palavras
“motivadoras” o time quase é goleado na segunda etapa, e acaba
derrotado (1-2). É o fim. Acabou.
No
dia seguinte, Yustrich é chamado ao Gabinete da Diretoria e é
demitido. Recusa-se a se despedir dos jogadores e, na saída da
Gávea, dá um soco em um fotógrafo. Entra no carro e é abordado
por outro repórter, que quase é atropelado quando Yustrich arranca
com o veículo. Assim, dessa forma melancólica, termina a passagem
de Dorival Knipel pelo Flamengo.
O
Flamengo seguirá, ao longo de 1971, colhendo os frutos da política
de terra arrasada deixada por Yustrich. O velho Fleitas Solich é
chamado para, ao seu jeito paternal, ao menos apagar os focos de
insatisfação e dar dignidade à trajetória flamenga. Doval é
reintegrado, e Solich começa a trabalhar as elogiadas divisões de
base, que vêm despontando nos aspirantes. Ao longo do segundo
semestre, vários nomes serão testados, especialmente um garoto
franzino em quem muitos têm prestado especial atenção.
O
irmão dos Antunes.
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