terça-feira, 27 de março de 2012
Alfarrábios do Melo
Saudações
flamengas a todos. E a temporada segue, com o Flamengo acumulando
pontos contra os adversários inexpressivos do Estadual, mesmo sem
convencer (aliás, quando é que o Flamengo convence sua Nação?).
Contudo, mais do que o futebol apresentado em campo, outro aspecto
que tem incomodado muito os torcedores e alguns cronistas é o
suposto excesso de “autonomia” dos jogadores do elenco, uma
liberdade que tem sido desfrutada com certo exagero, algo que tem se
tornado notório com as notícias envolvendo jogadores em festas,
madrugadas e faltas a treinos. A inacreditável e pueril “cartilha”
da semana passada não nos permite antever dias melhores nesse
aspecto.
“Ah,
mas o Flamengo sempre foi assim.” Verdade. Aliás, meia-verdade. A
cultura flamenga é mais leve e liberal desde sua nascença, isso é
fato. Mas houve momentos em que a hierarquia prevaleceu, o
profissionalismo foi respeitado (mesmo que na marra) e o resultado
foi cristalino, claro, notório. Boa leitura.
O
Teimoso Feitiço do Tri
1956,
abril. O Rio de Janeiro fervilha a decisão do Campeonato Carioca de
1955, que irá para seu terceiro jogo. O Flamengo, que busca o
tricampeonato, acaba de sofrer uma humilhante, histórica,
contundente goleada para o América (1-5), e se vê, pela primeira
vez em anos, como azarão na disputa pelo título. Muitos já dão
como certa a conquista rubra, a imprensa já prepara reportagens
especiais com Alarcón, Pompéia, Leônidas, Canário, entre outros
atletas do ótimo time americano. Enquanto isso, a Gávea também
ferve. Por outros motivos.
Fleitas
Solich, o treinador flamengo, está irritado. Sabe que seu time foi
amplamente envolvido pelo América e precisa tomar medidas, algumas
delas drásticas. Experiente, reconhece que o melhor momento é dos
rubros, mas também tem perfeita noção de que isso talvez não
signifique muito numa decisão, especialmente diante de um Flamengo
rodado e experimentado em grandes jogos. Don Fleitas é conhecido
pela alcunha de Feiticeiro, justamente por conta de suas soluções
mirabolantes. Já virou pilhas de jogos alterando toda a estrutura
tática do time durante as partidas, sem fazer nenhuma alteração
(são proibidas). E vai preparar mais uma bruxaria. Já tem a
solução. Mas o remédio é amargo. E vai ter sérias consequências.
Vem aí uma crise.
Primeiro,
a incredulidade. Deve estar brincando, tipo de coisa pra
descontrair. Depois, o inconformismo. É isso mesmo, estou falando
sério. Por fim, a revolta. O grupo de jogadores simplesmente não
consegue acreditar no que as roucas e picotadas, embora firmes,
palavras de Don Fleitas Solich acabam de ressoar. O técnico acaba de
tirar do jogo final o melhor jogador do campeonato, o artilheiro do
time, o seu nome mais decisivo. E junto com ele, um dos mais
experientes nomes do elenco, um médio com forte poder de marcação,
um dos suportes do sistema defensivo. O goleador Paulinho e o médio
Jadir estão fora da final.
Paulinho
havia entrado no time após a contusão de Rubens, e encaixou como
uma luva no veloz esquema tático do Feiticeiro. Rápido e
habilidoso, serviu muitas vezes como a referência do mais temido
ataque do país, o Rolo Compressor, e atuações de gala como os 6-1
sobre o Fluminense e, principalmente, a sofrida virada (2-1) sobre o
Botafogo, em que marcou os dois gols que colocaram o Flamengo na
final, fizeram de Paulinho o grande nome do Campeonato. Mas Paulinho
está fora do jogo final. Por pura opção tática de Fleitas Solich.
No lugar do craque Paulinho, irá entrar um garoto, Duca. Nome de
certo talento, mas sem o estofo necessário para um grande jogo como
esse. Não importa, Fleitas já decidiu.
Além
de Paulinho, há Jadir. Vigoroso, forte e dono de uma marcação
incessante, Jadir é um dos líderes do elenco. Formando com Dequinha
e Jordan uma linha média extremamente respeitada e eficiente, Jadir
inclusive tem seu nome cogitado para a Seleção Brasileira (será
convocado no ano seguinte). Na finalíssima, será substituído pelo
voluntarioso e limitado Servílio, jogador trombador e lento. Ninguém
consegue entender o que Don Fleitas quer com essas alterações.
E
o elenco recebe a notícia da pior forma possível. Começam os
cochichos e murmurinhos pelos cantos, algumas das lideranças do
elenco tentam de toda forma dissuadir o Feiticeiro, mas o paraguaio
está irredutível. Tem ampla certeza do que está fazendo. Alguns
jogadores ainda recorrem à diretoria, buscam interceder por Paulinho
e Jadir, mas os diretores lavam as mãos. Fleitas tem carta branca e
prestígio nas alturas. Os diretores não se esquecem de que todo o
Rolo Compressor havia sido integralmente montado pelo Feiticeiro, e,
mesmo estranhando, imaginam que o Bruxo saiba o que faz. A coisa
parece mais ou menos controlada, quando pipoca um rumor fortíssimo.
O problema pode ter sido disciplinar.
Alguns
membros da comissão técnica começam a desconfiar que Fleitas
estaria barrando Paulinho e Jadir em retaliação ao comportamento
menos rígido de parte do elenco. Noitadas e bebedeiras entre os
jogadores (de todos os times) são notórias, mas o Feiticeiro,
aparentemente, tem conseguido controlar seus atletas. No entanto, os
rumores de que alguns jogadores flamengos estariam exagerando no
lazer chegavam a cada dia, cada vez mais fortes aos ouvidos de
Solich. Um caso clássico é o de Rubens, que passou a se dedicar
apenas aos jogos, treinando de forma leniente, quase preguiçosa. O
Dotô Rúbis chegava a tragar seu cigarrinho nos intervalos das
atividades, o que enlouquecia Don Fleitas. Mas Rubens era o Camisa
10, o craque, o homem que decidia. Até se contundir e ser
definitivamente encostado por Solich. Muitos jogadores começam a
suspeitar que algo parecido esteja acontecendo agora, às portas da
final. E se revoltam. Alguns cogitam inclusive não jogar a final.
Mas
a questão é que a Gávea anseia por esse tri, até as entranhas.
Ninguém aceita perder esse título após um campeonato tão extenso,
após meses de disputa ferrenha e acirrada, de uma temporada tão
atribulada. E há a memória de Gilberto Cardoso, recentemente
falecido e ainda pranteado no clube. Líderes como Dequinha, Zagalo e
Evaristo reúnem o grupo de jogadores a portas fechadas, e decidem
deixar a alma, a vida em campo. Vão ganhar esse tri na marra. Devem
isso a eles mesmos e à Nação. Depois, se entendem e tiram suas
diferenças com Solich. Os próprios Paulinho e Jadir apoiam o grupo,
e pedem o título. Flor da pele, nervos arrepiados. Os jogadores
atingem um nível de excitação e agressividade que roça o limite
de sua capacidade. Ninguém vai ser capaz de derrotar aquele grupo.
*
* *
A
festa é linda. O Maracanã sorri e explode a festa do tricampeonato
flamengo. A cidade, o país, tudo fica mais bonito quando o Flamengo
ganha. Enlouquecidos, os jogadores correm, gritam, desmaiam, invadem
o túmulo de Gilberto Cardoso e são expulsos a bala, afogam-se em
champanhe, cerveja e pinga, são deuses e herois de um povo. Latejam
a glória e a honra lavada no banho de bola com que passaram por cima
do queridinho América.
Alheio
a tudo, o Feiticeiro sorri, matreiro. “Eles são jovens, tiram
muitas conclusões precipitadas”, confidencia a um de seus
auxiliares. A questão é que as mudanças de Don Fleitas foram
decisivas, fundamentais, criaram um outro jogo, outro desenho. A
entrada do grandalhão Servílio anulou o perigoso jogo aéreo do
América. Com efeito, Servílio não perdeu uma mísera bola a olho
nu para o atacante Leônidas da Selva (não o da Silva), célebre por
seus gols de cabeça, que havia dominado amplamente o baixo Jadir na partida anterior. E Duca teria que entrar para formar dupla com
Dida. Os dois já estavam entrosados nos aspirantes, e Don Fleitas
sabia que sua movimentação insana e desumana iria demolir a zaga do
América. Com efeito, Duca participou ativamente da partida, foi
destaque e ainda marcou (segundo a súmula) o primeiro gol, ao mandar
para as redes uma bola que ainda desviaria em Dida antes de entrar.
Completamente atordoado e surpreso com as alterações, o treinador
americano não conseguiu neutralizar o letal feitiço de Don Fleitas.
Incensado
pela imprensa, pela torcida e pela diretoria, Fleitas Solich vive seu
auge no comando do Flamengo. Mas, dessa vez, a briga comprada com os
jogadores terá consequências.
Dias
turbulentos estão por vir.
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