terça-feira, 15 de março de 2011

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos. Passado o Carnaval, eis que finalmente 2011 se inicia, segundo muita gente. Sei não, o ano mal começou e já temos duas taças (sorry, periferia). De qualquer forma, o retorno estabanado do Diego Maurício, as incompreensíveis e gratuitas (gratuitas mesmo?) vaias ao Bottinelli, a insistência do Luxemburgo com certos dogmas e mesmo a notícia de que uma das “esselênças” do TJD já quer começar a aparecer se tornaram fatos secundários, diante do debate, que já se torna acalorado, sobre a volta do Adriano Imperador ao Brasil.

Seja como for, essa semana quero contar a história de um ex-jogador, ídolo nacional, já no ocaso da carreira, que tentou voltar aos dias de glória envergando o Manto. Boa leitura.

Garrincha no Flamengo

1968. Imerso em uma das fases mais difíceis da sua história, o Flamengo busca alternativas para retomar sua tradicional trajetória vencedora. Mas está difícil. Atravessando séria crise financeira, não há como trazer jogadores badalados. As divisões de base vivem aguda entressafra. Seus principais nomes, o volante Carlinhos e o lateral Paulo Henrique, apesar de incontestáveis, já apresentam sinais de desgaste. O maior ídolo é o perigoso atacante Silva, herói de 1965, mas o Batuta também já não parece o mesmo. Há potencial em alguns jovens, como o paraguaio Reyes e o lateral Rodrigues Neto, mas ainda é cedo para tê-los como referências. O restante do elenco, limitadíssimo, é completado por figuras folclóricas como Dionísio (o Bode Atômico), Onça, Manicera, César Maluco, o goleiro Marco Aurélio (mais lembrado por sua figura de galã do que pelo futebol) e Fio. Em resumo, nada muito animador.

E os resultados no campo refletem o mau momento. O time até vive bons momentos esporádicos, como os 5-1 no Cruzeiro de Tostão, ou os 4-2 em um famoso Fla-Flu no Carioca, mas a temporada vai chegando ao fim sem qualquer título expressivo. Terceiro no Carioca, chega a embalar na Taça Guanabara (que é disputado à parte), mas na última rodada protagoniza um dos maiores vexames de sua história quando, vítima do oba-oba, cai diante do lanterna Bonsucesso (0-2) em jogo onde o empate bastava, e perde o título. Sem elenco, sem títulos, sem dinheiro e sem o apoio da torcida, as perspectivas são sombrias para o futuro próximo do rubro-negro. É aí que alguém surge com uma idéia psicodélica, bizarra. E se trouxéssemos o Garrincha? É um ídolo, o Flamengo precisa de um ídolo, nem que seja para arrecadar em amistosos.

Mané Garrincha não disputa um jogo oficial desde 1966, após a desastrosa passagem pelo Corinthians. Gordo, inchado, com um joelho destroçado e entregue à bebida, é um espectro do gênio que enlouquecera o planeta alguns anos antes. Em dificuldades financeiras, havia ensaiado um retorno, disputando alguns amistosos pela Portuguesa-RJ em 1967. A seguir, uma malfadada experiência na Colômbia (fora contratado pelo Junior de Barranquilla para testes e escorraçado pela torcida colombiana após um jogo), o devolve ao ostracismo. Assim, quando um dirigente flamengo surge com a idéia, apenas suscita risadas. Mas o Departamento de Futebol do clube pensa diferente. Ou melhor, um homem acredita ser possível recuperar o Mané.

O preparador físico José Roberto Francalacci pede alguns meses para recuperar Garrincha. Sem muita convicção, a diretoria cede. Procurado, o Mané aceita de bom grado a chance (e o contrato de risco). E o que se vê nas semanas seguintes é um Garrincha surpreendentemente motivado, cumprindo religiosamente todas as árduas etapas de uma preparação insana. Para amenizar o joelho, palmilhas especiais são confeccionadas e uma blindagem muscular é desenvolvida. Com efeito, as pernas de Garrincha recebem cargas destinadas a cavalos, para ganho de músculos. Francalacci se torna literalmente um “personal trainer”, pegando e levando o jogador em casa todos os dias e acompanhando o craque pessoalmente nas praias, ginásios e campos onde o rígido programa de treinamento é realizado. Garrincha perde TREZE quilos, reduz consideravelmente o consumo de álcool, e finalmente parece pronto para retornar aos gramados e provocar um terremoto no mundo esportivo do Rio de Janeiro.

De fato, a notícia é recebida como uma bomba. Garrincha, talvez o maior ídolo esportivo brasileiro, acaba de assinar com o Flamengo, seu time de infância. Na cidade, não se fala de outro assunto, os debates se inflamam, o cara tem 35 anos, já acabou, é um bêbado, que nada, quem é gênio nunca perde o jeito, com o Mané o Flamengo vai arrebentar, e assim bares, botecos, praias e repartições vão formigando em conversas e discussões intermináveis.

E chega o dia da estréia. Flamengo x Vasco, última rodada do Roberto Gomes Pedrosa, jogo amistoso pro rubro-negro, já eliminado da competição. Sem acreditar muito na repercussão, as autoridades marcam o jogo para uma noite de sábado. E o Rio de Janeiro entra em caos, engarrafamento, tumulto na porta do Maracanã. Não há ingressos suficientes para todos, uma multidão força a entrada, 80 mil conseguem esgotar os bilhetes, outro tanto arromba os portões e estima-se que 140 mil estão no Maior do Mundo para rever o Mané.

O Flamengo confirma a má fase e perde a partida (0-2), mas poucos se importam com o resultado. Garrincha, de forma surpreendente, tem ótima atuação e enlouquece o lateral Eberval com seus dribles. Torna-se a principal figura no ataque flamengo, e só é parado na porrada, através dos coices de Fontana. Sai no intervalo, contundido, quando o jogo ainda estava 0-0. A temporada de 1968 chega ao final, mas Garrincha se torna subitamente a grande esperança para 1969.

Passa o tempo, e a realidade crua vai solapar o conto de fadas. O Flamengo vai aproveitar a pré-temporada para faturar importantes trocados em amistosos com Garrincha. A Gávea precisa. E lá vai o Mané aparecer em gramados esburacados no Suriname, Niterói, Natal, Brasília, Feira de Santana, Belém. Jogos dia sim, dia não. Garrincha, apesar de já dar sinais de que está voltando a antigos hábitos e a uma vida desregrada, até consegue atuar bem em alguns desses jogos, fazendo gols e participando dos jogos. Num amistoso em Manaus, contra o Fast, marca um gol, a multidão invade o gramado e interrompe a partida por vários minutos. Mas a idade e a indisciplina (Garrincha chega a sumir após um jogo e só aparece no vestiário pro amistoso seguinte) vão cobrando seu preço, e o rendimento do Mané volta a cair.

Começa o Carioca, e o novo treinador do Flamengo, o badalado Tim (O Bruxo), não vê muito espaço para Garrincha na equipe. Mesmo assim, dá algumas oportunidades ao velho gênio, que atua pifiamente no empate em 0-0 com o América na estréia e é barrado. Do banco, ainda entra em alguns outros jogos contra equipes pequenas, mas após a vitória contra o Campo Grande (1-0) envolve-se em grave acidente automobilístico, onde morre sua sogra, lesiona-se e entra em forte depressão. Enquanto isso, Tim começa a testar um atacante irrequieto, estrangeiro, que acredita ter futuro. Um tal de Doval.

Assim termina a passagem de Garrincha pelo Flamengo. Um encontro fugaz e tardio, mas assim mesmo marcante, entre a alma passarinha do Mané e a mitológica mística flamenga. Curiosamente, o rubro-negro, após o sopro da vinda de Garrincha, sai um pouco do caos e volta a disputar títulos. Infelizmente, o Mané seguirá seu drama pessoal, tentando reviver uma época que se sabe não ser mais possível voltar. Mas, em sua lembrança e na memória de todos os que presenciaram aquela noite mágica de sábado, estará gravada a imagem de um momento histórico.

Pois foi naqueles primeiros e últimos 45 minutos que Garrincha, diante da Nação Flamenga, voltou a ser Garrincha.

VÍDEO - GARRINCHA NO FLAMENGO
VÍDEO - MATÉRIA SOBRE GARRINCHA (imagens raras de Flamengo 0-0 América, em 69)

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