Saudações flamengas a todos.
Semana passada, antes da vitória sobre o nosso mais novo freguês, eu vinha clicando numa e noutra notícia que ia pipocando aqui e acolá, falando de uma protocolar vitória tricolor para coroar a estreia do seu ídolo e tal, ignorando completamente o adversário. Isso me fez lembrar uma passagem bem ilustrativa, que deixo aqui agora. Boa leitura.
Carta Dentro do Baralho
1986. Ainda abatido pela perda da Taça Guanabara, o Flamengo não inicia bem a Taça Rio. Vence o América (2-0) jogando mal, empata com o modesto Campo Grande (1-1) e é derrotado pelo Botafogo (1-2), com um gol do veloz ponta Helinho, no último lance da partida. A crise ensaia se instalar na Gávea. Após o jogo contra o Botafogo, a concorrida resenha esportiva da Rádio Globo vaticina, impiedosa.
“O Flamengo é carta fora do baralho.”
O fato é que o rubro-negro vive muitos problemas. O treinador Sebastião Lazaroni não consegue gerenciar as ausências dos seus principais jogadores, às voltas com a Copa do Mundo (Zico, Sócrates) ou com lesões (Mozer, Adílio, Leandro). Vários garotos são puxados da base, testados, improvisados. Alguns rendem bem, outros não conseguem lidar com o doce fardo de ser Flamengo. É o tempo de Vinícius, Guto, Zé Carlos II, Valtinho, Alcindo, Ailton e Zinho.
A crônica derrama-se em elogios ao Vasco de Roberto Dinamite, Romário, Geovani e Mazinho, campeão da Taça Guanabara, e ao Fluminense de Romerito, Washington, Branco e de uma base azeitada que briga pelo tetra. O Bangu de Arturzinho e Fernando Macaé também é tido como azarão, correndo por fora, bem como o Botafogo e seus medalhões. Discute-se as chances de todos, seus pontos positivos e negativos, as armas de cada um para o título.
O Flamengo, em sexto, é carta fora do baralho, dizem.
Ainda com sérios problemas para fazer o time funcionar, Lazaroni vai fazendo suas experiências. O Flamengo engata três vitórias seguidas, contra times mais fracos, sempre jogando muito mal. É estrondosamente vaiado em uma vitória sofrível contra o Goytacaz (1-0) em Caio Martins. “Esse time não resistirá aos clássicos”, seguem gralhando as cassandras. Alguns resultados já começam a sorrir, o Vasco parece perder fôlego e perde para América e Americano. O Fluminense, que vinha invicto, desperdiça dois preciosos pontos ao tentar peitar a Federação e não mandar a campo seu time para enfrentar o Americano (alegando dengue de alguns jogadores, sofre W-0). Com isso, o desacreditado Flamengo encosta na briga.
Pausa para a Copa, no retorno o Flamengo recebe Zico, mordido pela eliminação da Seleção, mas ainda sem condições plenas de jogo. Mesmo no sacrifício, o Galinho expõe seu joelho aos buracos da Rua Bariri e do Godofredo Cruz. O time empata em Campos (2-2) e vence o Olaria (2-1) a duríssimas penas. Mas perde a liderança para o Fluminense, que derrota o Botafogo de forma categórica e já emerge como o grande favorito à conquista do turno. “Pintou o tetra”, dizem. Para piorar, o Vasco se recupera, engata uma sequência de vitórias expressivas e vem forte pra briga. A tabela aponta agora um Fla-Flu e depois um Fluminense x Vasco, “a final antecipada” segundo a crônica.
O Fla-Flu é eletrizante, Maracanã com 70 mil num belo domingo de sol. A torcida do Flamengo parece não ouvir rádio e é ampla maioria. O início é sombrio, com sete minutos Zico deixa o campo, estiramento na panturrilha. A torcida tricolor ensaia o grito de “bichado” mas se cala, lembrando a chinelada da Taça Guanabara. O Maracanã silencia. O caminho para a sonhada vingança tricolor (os 4-1 ainda estão entalados) parece aberto. Mas o Flamengo arranca lágrimas de suas entranhas e resiste de forma desumana aos ataques fluminenses. Num contragolpe, abre 1-0 (Marquinho) e depois erige uma muralha intransponível. Faltam duas rodadas. Quatro times estão embolados na briga pela ponta. E o Flamengo, o descartado Flamengo, é o líder.
Na rodada seguinte, os quatro concorrentes se enfrentam. O Flamengo faz um jogo renhido, encarniçado, contra o perigoso Bangu e empata (1-1). Mas, no dia seguinte, a “final antecipada” entre Fluminense e Vasco também termina empatada (1-1), e o Flamengo vai pra última rodada ainda líder. A “carta fora do baralho” está a uma vitória do título.
Na rodada derradeira, o Fluminense derrota o Bangu (1-0), toma a liderança provisória e elimina o Vasco do turno. Ao Flamengo, resta vencer e confirmar o título. Um empate provoca Fla-Flu extra. A derrota é o fim da briga e a confirmação do vaticínio fatalista.
E Flamengo e Vasco fazem um jogo espetacular, histórico, antológico. Leandro, Mozer e Adílio estão de volta. Bebeto, que começa a ensaiar uma grande fase, abre o placar. Romário empata e a disputa é franca. O Vasco busca, com todas as forças, eliminar o rival. No início da segunda etapa, Roberto Dinamite vira o jogo, o Vasco se fecha, o Flamengo aperta, bombardeia, o gol não sai. Faltando 15', um polêmico pênalti que provoca a expulsão de Roberto. Bebeto cobra mal, mas a bola entra devagar, caprichosa. O Flamengo segue na luta, segue na briga pelo título e pela sobrevivência. Os garotos de Lazaroni tocam uma correria alucinante, a Nação que toma o estádio empurra o time, e a seis minutos do fim o galego Júlio César, que acabara de entrar, arremata a gol, vence Paulo Sérgio, o Flamengo vira a virada e vence a partida por 3-2. O Flamengo, o descartado Flamengo, o excluído Flamengo, é o Campeão da Taça Rio de Janeiro e abre caminho para a conquista do Estadual mais empolgante dos anos 80.
Ainda como azarão (a imprensa não aprende e coloca o Vasco como franco favorito), o Flamengo, com três atuações seguras, impõe-se e confirma o título estadual, ao vencer o jogo final por 2-0 (gols de Bebeto e do carrasco Júlio César, num frango histórico de Acácio). No dia seguinte, as manchetes despejam elogios, loas e carinhos à turma de garotos da Gávea, exaltam o trabalho de renovação do grupo, erigem Lazaroni ao patamar de estrategista, rendem-se ao Flamengo campeão. O mesmo Flamengo que haviam enfaticamente e apressadamente expelido da disputa semanas antes.
Nunca, jamais, se tira o Flamengo de qualquer competição. Eventualmente o time pode não chegar, não vencer. Mas o Flamengo é formado, em sua composição química e anímica, do mais puro substrato dos vencedores. Tem gana, sede, fome de títulos e glórias. Jamais estamos satisfeitos. E essa sanha nos faz diferentes, nos faz recusar a realidade que nos é imposta como mero desejo ou receio.
E, desafiando a realidade, vamos lá e vencemos. E conquistamos.
Isso é o que nos faz Flamengo.
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