A arbitragem atinge nível de parcialidade que beira o cretinismo. Rouba com um descaro poucas vezes relatado. É demais para Coutinho, que invade o campo, mete o dedo na cara do ladino e também é expulso. Para completar a obra e não deixar dúvidas, Sanz expulsa todo o banco de reservas, dirigentes e qualquer um que vista vermelho e preto. Só restam em campo os oito sobreviventes, que terão pouco menos de meia hora para defender um título contra uma das melhores equipes da Europa e um árbitro de mão pesada. Dirigentes cogitam tirar o time de campo. Coutinho esbraveja, “vai sair nada. Fiquem e lutem. Aqui é Flamengo!
Os oito heróis se esquecem de suas posições, ignoram suas funções. Adílio vai lá pra trás dar bicuda, Cláudio Adão corre atrás de dois, Carpegiani esquece sua habitual classe e come grama, esfola a pele com carrinhos suicidas. Os sobreviventes arrancam o Manto de suas entranhas, amarram-no em suas testas, fincam um mastro diante de sua cidadela. “Aqui, não”. A Invencível Armada Espanhola ataca por cima, por baixo, pelos lados, por dentro. É inapelavelmente rechaçada. Raul defende bolas com as mãos, os pés, a cara. Nelson e Júnior arremessam-se nos pés madrilenhos. E a turma flamenga opera, em um improvável cenário espanhol, o milagre da comunhão com o torcedor. De repente, cada mallorquista se vê flamengo, se sente rubro-negro, se imagina parte de uma Nação. E grit
a, urra, esbraveja, “arriba Flamengo”. O estádio ferve e se torna um inferno para os madridistas.
Falta pouco, o inacreditável vai acontecer. O Real esquece defesa, todos se abandonam à frente. Os minutos passam em horas, a agonia teima em não dar sinais de terminar. Sanz, que andava quieto, estica a tortura até os 50'. Uma eternidade, os mais sensíveis choram angustiados nas arquibancadas. Manguito já tem bolhas nos pés de tanto espanar bolas ao inferno. Agora todos os flamengos estão dentro da área. Acocorados, entrincheirados. Juanito cruza, Santillana emenda de primeira, Raul voa mas nada pode fazer. Agora não tem jeito. A bola vai cruzando a linha do gol, mas do nada aparece o pé de Cláudio Adão, que mergulha para salvar a vida. “Aqui, não”. Desolado, Sanz trila o apito. Com OITO jogadores, o Flamengo vence o Real Madrid e conquista o Torneo Ciudad de Mallorca.
O Flamengo já conquistara e ainda irá ganhar pencas de troféus como o desse verão espanhol. Mas, por mais prosaico, qualquer título ajuda a construir o caráter e a fibra de uma instituição vencedora. A têmpera de um grupo de homens que, na mais cintilante adversidade, absolutamente se negou a abdicar de suas raízes. Mais do que heróis, guerreiros, gladiadores, ou seja que nome dar, ali, nos campos de Mallorca, havia apenas uma necessidade, uma força que irrompia do seu âmago.
O sentimento de ser Flamengo.
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