terça-feira, 26 de julho de 2011

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos.


Não é novidade que a história do Flamengo é vastamente irrigada por conquistas fantásticas e sofridas, reviravoltas espetaculares, enfim, quem vive a alegria de ser rubro-negro sabe bem do que estou falando.


No entanto, mesmo quem é familiarizado com a caudalosa história de vitórias do Flamengo ainda é capaz de se surpreender quando se depara com determinadas passagens. Meu caro torcedor flamengo, você acha que já viu tudo em matéria de vitória suada? Será mesmo? Então convido-o a acompanhar uma das mais inacreditáveis conquistas da mais que centenária história do Flamengo. Uma jornada quase inverossímil, se não estivesse vivamente documentada. Um êxito inimaginável, hiperbólico. Bem, vamos à história. Boa leitura.


A Batalha de Mallorca


1978. Crise e mais crise. Eliminado melancolicamente do Campeonato Brasileiro, o Flamengo junta os cacos em busca de mais um recomeço. Cada vez mais contestado, o treinador Coutinho insiste em sua política de mesclar os talentos de uma base que julga talentosa com nomes mais experientes. Sabe que o elenco é forte, embora falte certa experiência. Os jovens Tita, Adílio, Júnior, Rondinelli e Júlio César são talentosos, muito habilidosos. Para que estourem de vez, precisam de orientação, nomes realmente tarimbados. Mesmo Zico, a estrela maior, ainda não está pronto para ser a referência de comando do grupo, embora já seja, com sobras, a referência técnica. Sem dinheiro, o clube segue apostando em jogadores de qualidade, em baixa no mercado, caso de Cláudio Adão e Carpegiani, egressos de lesões gravíssimas, e de Raul, resgatado de uma quase-aposentadoria precoce. Sem falar no lateral Toninho (ex-Fluminense), no zagueiro Nelson (contratado para “orientar” o vigoroso Rondinelli), no defensor uruguaio Ramirez e nos atacantes Cléber e Eli Carlos. Não é um time ruim. Mas faltam resultados. Faltam títulos.


Nesse entretempo, enquanto não começa o Estadual, o Flamengo junta a bagagem e vai à Europa excursionar. Desembarca em Mallorca, onde irá disputar o Torneo Ciudad de Mallorca. Zico, ainda se recuperando da distensão sofrida contra a Polônia, semanas antes na Copa do Mundo, é desfalque. A estréia é satisfatória, vitória de virada (2-1) sobre o Rayo Vallecano. Na final, terá pelo caminho o Real Madrid.


O Real Madrid vive bom momento, é a base da seleção espanhola. Lá estão o goleiro Miguel Angel, o zagueiro e capitão Pirri, o meia San Jose e os mortíferos atacantes Juanito e Santillana, além do líbero Stielike, um dos craques da nova geração alemã. Um time respeitável, que anda em estado de graça, após se sagrar o campeão espanhol da temporada.


O estádio Luis Sitjar está abarrotado para o choque entre o campeão espanhol e o futebol brasileiro. Começa o jogo, o Flamengo mostra uma aplicação tática notável, exercendo uma sufocante marcação na saída de bola do time merengue. Logo começa a criar chances, e aos 9’ o marcador é movimentado. Toninho triangula com Tita e cruza, Cláudio Adão ajeita e fuzila. Flamengo 1-0.


O gol desnorteia os espanhóis, e o Flamengo segue em cima, sem dar trégua, sem clemência. O time toca a bola alucinadamente, Carpegiani distribui passes açucarados, desarmes limpos e esporros na mesma medida. É o dono do campo. Adílio recebe limpinho, vai ampliar, mas perde. Logo depois, Eli Carlos é lançado e bate cruzado, mas a bola sai fraca e Miguel Angel defende. É um massacre, o Flamengo transforma o Real Madrid num sãocristóvão. Agora são 36’. Tita faz um carnaval na área merengue e rola para Cléber, que emenda, na gaveta. Flamengo 2-0. O Real dá a saída, perde a bola, em três toques Cláudio Adão está diante de Miguel Angel, mas perde mais uma chance. Nas cordas, os atônitos madrilenhos ouvem com alívio o apito trilar, decretando o final da primeira etapa. Está 2-0, mas uns quatro ou cinco não seriam exagerados. O público, embasbacado, encharca o Flamengo de aplausos na descida para o vestiário.


O segundo tempo já começa a se desenhar diferente quando o árbitro Ausocua Sanz passa a mostrar certo exagero na determinação de faltas para o Real Madrid. 10’, bola alçada na área, Raul esbarra com o atacante Aguilia e faz a defesa. Mas o árbitro põe a bola na marca. Pênalti, uma marcação absurda que revolta todos os jogadores e a comissão técnica. O time faz um bolo ao redor de Sanz, que tira o cartão vermelho do bolso e expulsa um jogador a esmo, no caso Eli Carlos. Aguilia cobra e diminui, o Flamengo agora vence por 2-1.


A “linha editorial” de Sanz não muda, e o Real Madrid começa a entender que, se apelar para as cavadas, será recompensado. Faltas e mais faltas são inacreditavelmente inventadas, agora vai ser pura pressão. Quinze minutos. Toninho derruba Juanito, falta normal. Sanz não titubeia. Rua. O Flamengo agora só está com nove jogadores. Quase todo um segundo tempo pela frente, e o time terá que segurar o forte Real Madrid com dois a menos. Mas o pior ainda está por vir.


O Real Madrid, a essa altura, domina as ações mas não consegue penetrar na defesa rubro-negra. Tita é substituído por Ramirez, e o Flamengo é só coração, segue exercendo uma marcação que beira a abnegação. Passa a ser questão de honra a defesa da vitória e do título. Num dos poucos momentos de respiro, o time consegue sair jogando, bola tocada a Cléber, que é derrubado. Sanz ignora a falta, Cléber se levanta possesso. E também é expulso. O Flamengo agora está com OITO jogadores.


A arbitragem atinge nível de parcialidade que beira o cretinismo. Rouba com um descaro poucas vezes relatado. É demais para Coutinho, que invade o campo, mete o dedo na cara do ladino e também é expulso. Para completar a obra e não deixar dúvidas, Sanz expulsa todo o banco de reservas, dirigentes e qualquer um que vista vermelho e preto. Só restam em campo os oito sobreviventes, que terão pouco menos de meia hora para defender um título contra uma das melhores equipes da Europa e um árbitro de mão pesada. Dirigentes cogitam tirar o time de campo. Coutinho esbraveja, “vai sair nada. Fiquem e lutem. Aqui é Flamengo!


Os oito heróis se esquecem de suas posições, ignoram suas funções. Adílio vai lá pra trás dar bicuda, Cláudio Adão corre atrás de dois, Carpegiani esquece sua habitual classe e come grama, esfola a pele com carrinhos suicidas. Os sobreviventes arrancam o Manto de suas entranhas, amarram-no em suas testas, fincam um mastro diante de sua cidadela. “Aqui, não”. A Invencível Armada Espanhola ataca por cima, por baixo, pelos lados, por dentro. É inapelavelmente rechaçada. Raul defende bolas com as mãos, os pés, a cara. Nelson e Júnior arremessam-se nos pés madrilenhos. E a turma flamenga opera, em um improvável cenário espanhol, o milagre da comunhão com o torcedor. De repente, cada mallorquista se vê flamengo, se sente rubro-negro, se imagina parte de uma Nação. E grita, urra, esbraveja, “arriba Flamengo”. O estádio ferve e se torna um inferno para os madridistas.

Falta pouco, o inacreditável vai acontecer. O Real esquece defesa, todos se abandonam à frente. Os minutos passam em horas, a agonia teima em não dar sinais de terminar. Sanz, que andava quieto, estica a tortura até os 50'. Uma eternidade, os mais sensíveis choram angustiados nas arquibancadas. Manguito já tem bolhas nos pés de tanto espanar bolas ao inferno. Agora todos os flamengos estão dentro da área. Acocorados, entrincheirados. Juanito cruza, Santillana emenda de primeira, Raul voa mas nada pode fazer. Agora não tem jeito. A bola vai cruzando a linha do gol, mas do nada aparece o pé de Cláudio Adão, que mergulha para salvar a vida. “Aqui, não”. Desolado, Sanz trila o apito. Com OITO jogadores, o Flamengo vence o Real Madrid e conquista o Torneo Ciudad de Mallorca.


O Flamengo já conquistara e ainda irá ganhar pencas de troféus como o desse verão espanhol. Mas, por mais prosaico, qualquer título ajuda a construir o caráter e a fibra de uma instituição vencedora. A têmpera de um grupo de homens que, na mais cintilante adversidade, absolutamente se negou a abdicar de suas raízes. Mais do que heróis, guerreiros, gladiadores, ou seja que nome dar, ali, nos campos de Mallorca, havia apenas uma necessidade, uma força que irrompia do seu âmago.

O sentimento de ser Flamengo.


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