terça-feira, 5 de julho de 2011

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos. Será que o Kléber vem mesmo? Ou não? E precisa? A prioridade não seria um zagueiro? Ah, tem o Pirulito, meio caro mas parece ser bom jogador (sou cismado com esses “zagueiraços” ex-SPFC, mas tudo bem). Hã? Querem trazer o Kléber e o Pirulito? E há dinheiro? E o patrocínio? E o CT? Tantas perguntas...

Deixando de lado essas questões filosóficas, hoje posto uma das vitórias mais marcantes de minha juventude flamenga. Não tanto pela expressão do título ou pelo adversário, mas pelas circunstâncias. Às vezes, uma conquista vale mais pela forma como é obtida do que propriamente pela sua importância.

O Título de Sangue

1983. As tardes de domingo subitamente perdem o sentido. Frias, geladas, sem Zico. O Flamengo, que desconhece adversários no plano nacional, subitamente perde seu ídolo maior, seu guia, seu messias. O Galinho é negociado, vai jogar no distante Norte da Itália. Incredulidade, dor, revolta, quebra-quebra. O caos. O presidente renuncia, o time perde motivação e referência, sofre goleadas inacreditáveis para fregueses históricos (um inconcebível 2-6 para o Bangu, por exemplo), termina a Taça Guanabara em QUINTO lugar. O gigante está desnorteado, ninguém entende absolutamente nada. As gralhas e as cassandras coloridas saltitam e anunciam o apocalipse. Mas estão apressadas.

Um comitê de emergência é montado, e as ações começam a ser delineadas. É consenso que a base precisa ser mantida, mas novos nomes devem surgir para arejar o ambiente e motivar alguns jogadores acomodados. A primeira ação é tirar, a peso de ouro, o treinador Cláudio Garcia do Fluminense, que ganhara a Taça Guanabara com um time jovem e barato. Depois, o rubro-negro contrata voluptuosamente, reforçando todo o elenco. Chegam nomes como o ponta-direita Lúcio (destaque no Guarani em 1982), o centroavante Edmar (afobado e goleador), o experiente Cláudio Adão, o meia Cléo (menina dos olhos do Internacional) e o garoto Heitor, lateral-direito promissor da Ponte Preta. Para completar, o meia Tita está de volta, após excelente passagem pelo Grêmio. É outro time, outro ambiente, outra realidade. O Flamengo lambe as feridas e vai partir novamente para a briga.

O resultado não demora. A equipe vai se acertando aos poucos, vence Botafogo e Fluminense (2-1, uma virada histórica), e Garcia, com habilidade, consegue encaixar os reforços no time. Edmar ganha a disputa com Cláudio Adão, Tita enfim veste sua sonhada camisa 10, Lúcio funciona na ponta-direita e Cléo forma a dupla de meio com Andrade. Adílio, em fase exuberante, vivendo o auge de sua carreira, vai para a ponta-esquerda (Lico, ainda voltando de grave contusão, está sem ritmo de jogo). O torneio vai afunilando, e o grande adversário é o Bangu de Arturzinho, eleito o “queridinho da mídia”, que pratica um futebol muito vistoso sob o comando de Moisés.

A duas rodadas do final, o Bangu está dois pontos à frente e vai enfrentar o Flamengo por um empate, aclamado por todos como favorito e virtual campeão. O rubro-negro, mordido, atropela o time de Moça Bonita, enfia-lhe contundentes 3-1 e embola tudo. Na última rodada, mais um chocolate, dessa vez o Flamengo destroça o Vasco (3-0), num jogo em que Adílio é comparado a Garrincha. Flamengo e Bangu terminam empatados a Taça Rio. Vai ter jogo-extra.

Noite de quinta-feira, 74 mil pessoas. O Flamengo recupera o favoritismo perdido, novamente é tratado com reverência e respeito por uma imprensa enfadada por ter perdido seu brinquedinho. Mas o Bangu ainda tem a preferência e recebe as notinhas mais carinhosas. De fato, seu time, com Mário, Arturzinho, Marinho, Ado e Fernando Macaé, pratica um futebol veloz, muito técnico e perigoso. Ocorre que seu ponto fraco é, justamente, a dificuldade de lidar com adversários mais ofensivos. Como o Flamengo.

Começa o jogo, o Bangu cauteloso, o Flamengo sempre tomando a iniciativa, empurrado pela sua torcida. A Nação, ainda triste pela perda de Zico, aos poucos vai voltando a se empolgar. E nunca nega apoio. Lota o Maracanã em todos os clássicos, e agora vai sendo fundamental. Acua, encurrala, intimida o Bangu, que mal passa do meio.

Num determinado momento, um torcedor invade o campo. Traja o Manto. Súbito, tira a camisa e a atira ao chão. Revela-se tricolor, veste Fluminense por baixo. Começa a pisotear o Sagrado pano Flamengo e a fazer gestos. Júnior, o Capacete Júnior, inflama-se e parte pra dentro do torcedor. Dá-lhe na orelha. E iria trucidar o sujeito, não chegassem os policiais. “Aqui, na minha cara, ninguém tripudia do Flamengo”, dirá depois do jogo.

Os sopapos de Júnior e a prisão do intruso acendem ainda mais a partida. Arrepiado, o time se solta, levita e parte para a glória. Mococa vai dominar uma bola e se atrapalha, sobra com Edmar, que parte para uma arrancada sensacional e cruza. Adílio vem na corrida, esbaforido, e acerta a bola de modo estranho. O efeito inusitado engana e encobre o goleiro Tião, e a bola cai mansa, plácida no fundo do gol. Trinta minutos, primeiro tempo, Flamengo 1-0.

Na segunda etapa, o Flamengo recua e opta pelos contragolpes. Garcia saca Cléo e põe Heitor, trazendo Leandro para o meio (Leandro já dá vivas mostras de desgaste atuando como lateral), a seguir fecha o meio, tirando Edmar e colocando Lico. Muitos consideram uma temeridade queimar tão cedo as duas alterações. Mas o Flamengo vai controlando o jogo, o Bangu não consegue entrar nas compactas linhas rubro-negras. Tocando a bola, fazendo o tempo passar, tudo leva a crer em uma vitória segura. O segundo gol amadurece. Mas não sai. E o drama, o inevitável drama, está prestes a começar.

Bola esticada no ataque do Bangu, Mozer corre para a cobertura e, de repente, estaca. Mão na coxa. Dor. Manca. Não pode mais trocar. Mozer, capengando e manquitolando, recusa-se a deixar o jogo, vai pro pau. Vai ficar na sobra dando bico. Mas recusa-se a deixar a batalha. O Bangu, virtualmente com um a mais, aperta a pressão, começa a ganhar campo. Leandro recua para fechar a intermediária, e o Flamengo cede perigosamente espaço. Mas ainda tem o contragolpe, tem os velozes Lúcio e Adílio. Ainda.

A defesa flamenga retoma uma bola, lançamento a Adílio. O combate é pesado, Adílio se contorce em dores. O tornozelo é duramente atingido. O médico faz o sinal característico, “troca”. Trocar por quem? Não pode mais. Ainda restam quinze minutos. Adílio também não vai largar a batalha agora. Vai fazer número na beira do campo, como nos anos 50. O Flamengo, que tinha o jogo nas mãos, agora tem que segurar um adversário babando, praticamente com nove jogadores.

Mas o sangue imolado de Mozer e Adílio entorpecem a Nação e os jogadores. Todo mundo vai pra trás, agora os sobreviventes se trancam para defender o querido pavilhão sagrado. O Bangu tenta pelo meio, pelos lados, pelo alto. Mas o acesso à glória é sempre negado por algum viril pé flamengo, pronto e a postos para mandar a ameaça ao inferno. Naquela noite, o Flamengo, órfão de seu craque maior, jogando com nove mostra à cidade, ao país e ao mundo toda a sua capacidade de superação, reerguimento e ressurreição. Por que, além de seus nove heróis e dois mártires, há um estádio que fermenta e borbulha paixão. E joga. E decide. E vence jogos.

O Bangu ainda perderá uma oportunidade cristalina, já nos descontos, quando Arturzinho, só diante de Raul, joga para fora a chance do empate. O apito final de Arnaldo Cezar Coelho sela a vitória, Flamengo 1-0 Bangu. O Flamengo é campeão da Taça Rio, contra todos os prognósticos que se precipitaram em sepultar um gigante. Poucas semanas após a hecatombe, o Flamengo está, novamente, erguendo taça e exibindo-a olimpicamente ao redor do Maracanã.

Por que passam craques, passam heróis, passam deuses, passam mitos. Mas o Flamengo sempre irromperá imaculado em sua força.

VÍDEO - FLAMENGO 1-0 BANGU (1983)

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