segunda-feira, 6 de junho de 2011

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos.


Lendo algumas páginas rubro-negras aqui e acolá, noto um certo, ahn, desconforto com o nosso miolo de zaga, o que, aliás, é mais do que justificado. Inclusive, também ando meio sem paciência com os nossos heróis Wellington e David. De qualquer forma, o desempenho de nossa dupla me faz lembrar que nem só de Mozer, Aldair, Domingos e Reyes vive a história flamenga. Em times campeões, já alinharam nomes como Quirino “da Guia”, Manguito, Júnior Baiano, Irineu e quetais. Mas talvez nenhum desses jogadores tenha levado a expressão “zagueiro-zagueiro” mais ao limite do que a personagem que introduzo agora. Senhores, apresento-lhes Tomires. Boa leitura.

Tomires, o Cangaceiro


1956. Finalmente vai chegar ao fim o Campeonato Carioca de 1955, um dos mais longos de todos os tempos, após uma disputa que se arrastou por nove longos meses, arrombando as portas do ano seguinte. Pois estamos em abril, e Flamengo e América ainda estão às voltas com uma melhor-de três que está parando a cidade. E o país.


O Flamengo busca o segundo tricampeonato de sua história. Começa o campeonato arrasador, mas perde terreno durante a competição. O América, em ascensão, vive melhor momento e é o favorito, o que se confirma após os dois primeiros jogos da final. Na primeira, vitória flamenga na raça, 1-0, gol no último minuto, Evaristo. Mas no segundo jogo, contundente goleada americana (1-5), poucos não-flamengos acreditam na reação. Mas a Nação rubro-negra promete vingança e avisa: o Maracanã vai ficar pequeno.


Mais de 200 mil, estima-se, abarrotam o estádio na noite da finalíssima (os portões são arrombados). Não há vantagem, quem ganhar leva. A atmosfera no Maracanã é arrepiante, eletriza. O presidente JK está nas tribunas. No apito, o lendário Mário Vianna. Vai começar o jogão. O América de Canário, Alarcón e Pompéia contra o Flamengo de Evaristo, Zagalo, do reserva Dida (aposta do Feiticeiro Fleitas Solich). E de Tomires...


Início de jogo, o Flamengo logo toma conta das ações, entra mordendo, o Maracanã vira uma panela, encolhe e apequena o bom time rubro. Dida, de escalação contestada (barrou Paulinho, justo o artilheiro do time) começa a tocar o terror, endemoninhado, imarcável. Apenas três minutos, manda uma bomba, o goleiro Pompéia (o Constellation, célebre tipo de avião) voa uma de suas famosas pontes. Reposição, bola na esquerda para o meia Alarcón, um dos craques rubros. Argentino, cheio de manha e milonga, apruma seu corpo franzino, dá um pulinho e prepara a ginga. Mas Alarcón mal percebe uma carreta vindo em sua direção, com luz alta, buzina a toda, cantando pneu. É Tomires, bufando, olhos injetados, arfantes. Vai matar a jogada. Resfolega, aumenta o ritmo. A colisão é iminente. Alarcón nada pode fazer.


Alagoano, Tomires é cria do CRB. Após passagem pelo América de Recife, vai parar na Portuguesa-SP, onde chama a atenção do Flamengo, já em 1953. No ano seguinte, é contratado pelo rubro-negro, formando com o paulista Pavão uma das mais rústicas linhas defensivas da história flamenga. Detentor de um tipo de jogo bastante peculiar, Tomires atua na primeira linha defensiva fechando o lado direito, normalmente como o homem mais recuado. É portanto, o último obstáculo entre o adversário e a cidadela flamenga. Normalmente a tentativa de transpô-lo é sinônimo de dor.


Alguns costumam dizer que o gol é um detalhe. Tomires vai além. Detalhe é a bola. Antes dos jogos, recebe a orientação do treinador, “hoje você vai marcar fulano”. E lá vai Tomires se acoplar e rosnar contra o pobre infeliz. Crava a chuteira na risca da área, demarca o terreno. Adversário lá chegando, é expulso a bala. Suas carícias de estivador à bola lhe valem o carinhoso apelido de Cangaceiro, um Lampíão da pelota, cabra-macho sim sinhô. A cada peleja, não importa o oponente, entrega-se com um ímpeto, uma sofreguidão quase irracional na defesa do seu território sagrado. A cada ataque rechaçado, Tomires renasce, a camisa rota, encharcada, lanhado de sangue e suor. Daqui, ninguém passa.


Mas se engana quem pensa que Tomires dedica-se a colecionar homicídios. Leal, é incapaz de mirar tornozelos e joelhos adversários, embora eventualmente atinja algum órgão vital por conta de seu estilo pitoresco, dado a espanar a esmo qualquer coisa que se movimente próximo ao gol flamengo. Simples, extremamente sério (pouco afeito a sorrisos) e incrivelmente eficiente, o Cangaceiro logo conquista a torcida flamenga e a simpatia do treinador Don Fleitas Solich, o Feiticeiro, que lhe promove a titular absoluto. E assim, Tomires escolta um dos mais férteis e devastadores sistemas ofensivos já montados pelo Flamengo, o Rolo Compressor de Joel, Paulinho, Zagalo, Rubens, Índio, Evaristo, Henrique, mais tarde Dida e outros tantos. Perdeu a bola? Solta o Tomires.


Tomires absorve e sente o Flamengo em cada hematoma. Um dia, num Carioca desses dourados anos 50, o Cangaceiro vai numa bola. Choque forte, estalo, dor. Tomires sente o ombro, sensação aguda, mas dá pra seguir. Substituições não existem. O Cangaceiro segue e sofre em campo. E se atira em cada bola, em cada jogador, protegendo sua baliza como de costume. Fim de jogo, o diagnóstico. Clavícula quebrada. Tipóia. E assim Tomires vai colecionando fraturas no nariz, no braço, até na mão. Em cada osso, a delícia e a dor de morrer pelo Flamengo.


Voltemos a 1956. O franzino Alarcón tem a bola. Mas Tomires já se inclina, está a toda velocidade. Não pode frear, não quer frear, não vai frear. O estrondo. O choque. Tomires manda a bola pra fora, afasta o perigo. Mas voa caco de Alarcón pra tudo que é lado, os estilhaços se espalham pela lateral do campo. Alarcón demora a levantar, manquitola, volta pro jogo. Tomires, calmo, volta a seu posto. A torcida flamenga urra e aplaude.


O jogo segue, o Flamengo engole o América e vai golear, 4-1, três (ou quatro) gols de Dida, a partir dali o novo ídolo da Gávea, o herói do tri. A festa dura dias, semanas. O América assume o papel de arco-íris que lhe cabe (quem já conheceu um avis-rara torcedor do Ameriquinha sabe o quanto um exemplar desses pode ser chato) e aponta o dedo, j’accuse, o assassino Tomires tirou Alarcón de campo. Mero detalhe se Alarcón já andava baleado antes do jogo e atuou à base de infiltração. Mera minúcia se o argentino jogaria 45 minutos (e não dez, como reza a lenda), torcendo de vez o joelho ao pisar num buraco e tentar dividir uma bola morta. Simples floreio se, ao voltar do intervalo com dez, o América já perdia por 2-0. O importante é estrilar e buscar subterfúgio, argumento raso para diminuir mais uma conquista flamenga. Aliás, título do Flamengo sem o arco-íris tentar desqualificar com alguma historinha bonita não tem a mesma graça.


Tomires seguirá no Flamengo até 1958, quando voltará ao Nordeste, negociado com o Sport-PE, já no final da carreira. É verdade que está longe de ter sido um dos mais técnicos e habilidosos jogadores da rica história flamenga, mas igualmente é impossível deixar de reconhecer na fibra e no denodo deste cabra alagoano arretado a alma do Flamengo pulsando em cada artéria e em cada poro de seu corpo atarracado, transcendendo o ardor, a raça e a paixão num delírio desumano e sobrenatural que o fez, antes de tudo, um vencedor.

Porque, se era fácil desdenhar de Tomires, quase impossível era vencer Tomires.

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