terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
Alfarrábios do Melo Saudações flamengas a todos. Após o cumprimento do protocolo contra o VICE-lanterna do Estadual (quem disse que o Vasco não briga mais por vice?), as atenções agora se voltam para a estréia de Ronaldinho Gaúcho, sem dúvida o maior acontecimento esportivo desse primeiro semestre. Boa sorte ao R10, e que o Manto lhe caia bem. Falando em identificação com o Manto, deixo essa semana uma interessante história cujo personagem é um dos maiores ídolos da história rubro-negra, a despeito de não ser muito lembrado pelos mais novos. Boa leitura. O Predestinado a Caminho da Glória
1944. O Flamengo acaba de triturar o Bangu (7-1) e se prepara para um Fla-Flu importantíssimo em sua luta pelo tricampeonato, já a apenas duas rodadas do final da competição. Flávio Costa comanda mais um treino na Gávea, mas o que chama a atenção é a presença, nas arquibancadas, de um sujeito magro, de chapéu e bigodinho, que assiste a toda a atividade com atenção. Ao final do treino, o cidadão dirige-se ao campo e vai falar com o treinador, com seu portunhol meio carregado. “Buenos dias, señor Flávio. Lembra de mim?” “Pô Agostinho, tá de brincadeira, né? O que manda? Como vai a gráfica?” “Bien, como Dios quer. É justo sobre isso que eu queria hablar com o señor. É que os muchachos lá da Rio-Platense também gostam de futbol nas horas vagas, e a gente montou um time. A questão é que marcamos um match amistoso e no tenemos campo pra alinhar nosso scratch. Entonces, vim pedir ao señor o campo da Gávea emprestado, numa hora libre, para podermos jugar nosso partido.” “Acho que dá pra eu ver isso pra ti. Tu sabe que um pedido teu é uma ordem. Mas me diga, ainda está jogando? Tu tá fazendo uma falta danada aqui, pô.” “No, señor Flávio. Não jogo mais fútbol desde que parei pra cuidar da Rio-Platense. E nuestro Flamengo, gana esse tri? Está peleado esse ano, no?” “É, esse ano tá mais duro, sim. Vamos ver, a briga tá boa. Mas tô cheio de problema, tá brabo. Faz o seguinte, traz teu time amanhã que eu te libero o campo depois do treino, pode ser?” “Si, por supuesto! Muchas gracias! Hasta la vista!” No dia seguinte, o argentino Agustín leva sua trupe de empregados da Gráfica Rio-Platense juntamente com os adversários. Como prometido, Flávio Costa libera o campo da Gávea para a pelada, mas, como quem não quer nada, vai se deixando ficar na arquibancada para acompanhar a brincadeira. Agustín acaba jogando, um funcionário não pôde ir ao joguinho. Na verdade, desde a véspera Flávio se impressiona com a boa condição atlética de Agustín, que permanece magro, mesmo tendo parado de jogar há dois anos. E na pelada o argentino gasta a bola, exibe a velha categoria e mostra manter intacto o seu talento e visão de jogo. Os olhos de Flávio Costa brilham. É uma temporada particularmente difícil. Ao contrário dos anos anteriores, em que o Flamengo conquistara o bi estadual com relativa tranquilidade, o campeonato de 1944 tem sido sofrido, cheio de percalços. A saída do craque Domingos desmonta a defesa flamenga, o time sofre derrotas acachapantes no início da competição, como uma humilhante goleada para o Botafogo que vira piada. Além disso, o Vasco começa a montar aquela que se tornaria a melhor equipe de sua história, e vem exibindo o melhor futebol do campeonato, a despeito da irregularidade natural num time jovem. Flávio consegue se virar na defesa com o exótico zagueiro Quirino (jocosamente apelidado Quirino “Da Guia”), e transforma a vergonha da derrota para o Botafogo em combustível para uma sensacional arrancada, nove vitórias seguidas, que põe o Flamengo com o mesmo número de pontos que o Vasco a duas rodadas do final. Mas, justo no momento em que o time deveria estar voando, mais problemas surgem, exatamente no ataque, seu ponto forte. Não bastasse a ausência do rompedor Perácio, lutando na II Guerra, o Flamengo ainda padece com as lesões de Pirilo, às voltas com uma orquite (inflamação nos testículos), e do ponta-esquerda Vevé, que reclama do joelho. Como os reservas não empolgam, os titulares vão no sacrifício mesmo. Apenas Zizinho, no esplendor da forma física, vem desequilibrando. Assim, quando Flávio vê o argentino Agustín atuar com desenvoltura numa simples pelada de firma, logo é acossado por uma idéia que lhe parece bizarra. Não, é muita maluquice. Mas o cara tá bem, não custa tentar. Enfim, Flávio espera o final da peleja e vai falar com Agustín. “Agostinho, peraí!” “Señor Flávio, ainda por aqui? Gostou do juego?” “Gostei muito do que vi, e vou ser direto. Acho que você ainda tem lenha pra queimar. Tô precisando de gente boa no ataque do Flamengo. O Jacy é esforçado e tal, mas agora é reta final, preciso de jogador bom. Quer voltar? É só por esse dois jogos.” “Mas señor Flávio, juego profissional é outra coisa, não sei se tengo preparo.” “Quem decide isso sou eu. Acho que você ainda joga em alto nível. Tá resolvido. Venha amanhã pro treino que te boto de titular. Te inscrevo como amador, o regulamento permite. Você vai nos ajudar a ganhar o tri.” No dia seguinte, Agustín aparece no treino. Sua entrada na equipe é vista com surpresa e alento. Com efeito, o argentino é muito respeitado na Gávea, pela carreira vitoriosa que construíra, fundamental em dois títulos (39 e 42), pelo seu futebol de grande qualidade técnica e muito voluntarismo, e pela personalidade humilde e carismática. A entrada de Agustín dá novo ânimo ao Flamengo, que parece, agora sim, pronto para as batalhas que decidirão o Campeonato de 1944. Confiante e motivado, o Flamengo não toma conhecimento do Fluminense e destroça o tricolor, surrando-o por 6-1 para deleite de uma Gávea lotada. O gringo não marca, mas melhora sensivelmente a dinâmica do ataque flamengo, que se torna mais ousado, insinuante. Agustín canta o jogo, catimba, vive a partida. Tem o Flamengo nas veias, apesar de sua origem no Boca Juniors. “Muchas gracias, señor Flávio”, é todo mesuras após o massacre. Está arrepiado. A torcida, reverente, saúda Agustín com coros e muito carinho. Mas o esforço cobra seu preço. Agustín está esgotado e mal consegue andar, as pernas sucumbem ao desgaste físico desumano de uma partida de decisão de campeonato. Agustín não sai da cama por alguns dias. Para piorar, pega uma gripe oportunista e passa a semana febril, coisa de 39°. Dessa vez, parece que não vai dar para o simpático e guerreiro Agustín enfrentar o Vasco na partida final. Mas Flávio Costa nem cogita perder o argentino pro jogo. E, no fundo, Agustín também sabe que, no final das contas, estará em campo por seu Flamengo, mesmo moribundo. Porque domingo Agustín Valido terá um encontro marcado com a eternidade.
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