quinta-feira, 29 de abril de 2010

Entre a Taça e a História, a História

*Por José Eustáquio Cardoso

Um certo e poderoso senhor, tão poderoso quanto mesquinho, e de mesquinhez medida pelo próprio autoritarismo, como se fosse um obscuro e elíptico personagem emerso das páginas de “1984”, de George Orwell, acaba de editar um decreto, segundo o qual o passado não é passado, o que houve não houve, e o que não aconteceu aconteceu. Imagina-se tão poderoso, que em seus delírios julga poder apagar a História ou substituí-la por outra, amoldada a seus interesses de ocasião.

E esse decreto seu não passa de um papel em que com carregadas tintas de ódio e despeito escreve, como que para não deixar dúvida de sua natureza, uma pífia vingança. Vingança, aliás, que, até para apressadamente contrariar o provérbio – que são provérbios para esse arrogante senhor? – e assegurar-se de que comeria o prato quente, tratou de exercer logo no dia seguinte àquele em que, com o voto, entre tantos outros, do protagonista do passado que julga ter extinto, viu contrastado seu poder, ousadia inimaginável para tão orgulhoso senhor.

Mas o que em verdade não consegue encobrir ou disfarçar com seu decreto é, primeiro, a incompetência da entidade que dirige, incapaz, em certo e longínquo ano, e embora de futebol se denomine, de organizar um simples campeonato de futebol; e segundo, a trapalhada que esta urdiu, ao imiscuir-se no regulamento da competição então organizada por treze clubes, já inconformada, como inconformado estaria para sempre seu futuro, atual e a seu próprio juízo perpétuo dirigente, com a inadmissível sombra que os últimos lhe projetavam e viriam a concretizar. Pois eis que, já estando em meio o campeonato, a contar com as maiores e melhores expressões de nosso futebol, como se quisesse extemporaneamente sanar a própria incompetência, inventou uma outra competição, de contendores dignos da segunda divisão que na realidade representavam, a que deu o eufemístico nome de módulo amarelo, em contraposição ao grupo de elite, que comporia, segundo ela, entidade, o que chamou de módulo verde. E inventou mais que, ao fim de uma e de outra competição, jogariam entre si os respectivos campeões e vice-campeões, sagrando-se campeão nacional – o campeão nacional que a incompetência não pôde em tempo figurar – o vencedor respectivo. Pois bem, os integrantes do grupo denominado com a risível expressão de módulo verde, ciosos de sua própria organização e inimaginada competência e conscientes mais da evidente superioridade, em relação aos componentes do outro grupo, concertaram entre si que não participariam de nenhum aviltante e espúrio cruzamento, pouco se importando com as consequências de sua pensada e bem refletida atitude, e certos, ademais, de que o legítimo campeão, o campeão sagrado pelo povo, o campeão da elite do futebol brasileiro seria, isto sim, o vencedor de sua própria competição.

Ora, rebeldia de tamanha monta, audácia de tão grande repercussão certamente que calaria fundo nos brios e no orgulho do arrogante senhor, que, assim, vinte e três longos anos depois de ter ruminado o que certamente denominou de insolência e apenas um dia depois de não ter engolido outra, decretou solenemente: – O campeão brasileiro de 1987 é o campeão brasileiro da segunda divisão! E a taça de bolinhas, em consequência, fica definitivamente com quem em segundo lugar no tempo conquistou por cinco vezes o campeonato brasileiro!

E assim, de uma penada ou de um arroto, julga ter apagado todas as manchetes de jornais e revistas e calado todos os gritos de gol dos locutores de rádio e televisão. Imagina ter arrancado e jogado ao lixo páginas e páginas de livros de História escrita com técnica, força, garra, valentia e competência futebolística. Em mais um e apoteótico delírio, sonha ter rabiscado inscrições de camisas e estandartes e abafado todos os gritos e a perpétua aclamação de trinta e cinco milhões de gloriosas gargantas!

– Ora, imprezado senhor, fique Vossa Senhoria com seus delírios e prepotências. Taça, de bolinhas ou de quadradinhos, conquanto possa constituir, reconheça-se, materialização de uma conquista, não passa, em verdade, de um símbolo. Pois esse símbolo não nos faz falta, nós os temos de sobejo, e nosso verdadeiro símbolo pulsa em nosso coração e lateja como rubro-negro sangue em nossas veias. Fiquem Vossa Senhoria e aqueles que direta e indiretamente se beneficiaram de sua insensatez com esse objeto. Sirvam-se dele os invejosos e incompetentes e portadores de má-fé intelectual para tentarem, na mão grande, arrebatar nossas lídimas vitórias e conquistas, que tanto mal lhes devem fazer. Nós, de nosso lado e do lado dos justos, entre um objeto e a História, ficaremos com a História.

Porque a História não é escrita por trôpegas e apressadas letras de perdedores, é forjada no carinho do tempo pela coragem dos triunfantes. Porque a História não se escreve com símbolos e muito menos com objetos. A História se escreve com tintas de suor e sangue, e estes, ainda que ressequidos pelo tempo nos gramados do País, hão de gritar pelo tempo e para sempre quem foi e é o verdadeiro campeão. E esse grito, arrogante senhor, há de reboar pelos estádios e incomodá-lo para sempre e para sempre povoar seus pesadelos de consciência, se não atormentada (que tanto não se pode esperar), pelo menos molestada: – FLAMENGO HEXACAMPEÃO!


Niterói, 19/4/2010

Flamengo Net

Comentários