terça-feira, 6 de abril de 2010

Alfarrábios do Melo

Olá, saudações rubro-negras a todos. De volta após viagem, entro no clima da Libertadores e deixo aqui a história de uma façanha recente do Mengão, conseguida justamente contra o adversário de quarta. Nas partes em negrito, há link para vídeo. Então, boa leitura.

Capazes de Tudo

1999. Embalado pela espetacular conquista do Campeonato Estadual em cima de um Vasco que porejou soberba e arrogância muito antes da hora, o Flamengo inicia o Campeonato Brasileiro de forma bastante convincente, com vitórias expressivas. O ponto culminante é a sensacional virada (2-1) sobre o badaladíssimo Corinthians em pleno Pacaembu (numa exibição antológica de Romário), que vale a liderança da competição. No entanto, de forma (quase) inexplicável, o time começa a cair assustadoramente, perde vários jogos seguidos e despenca na tabela. Nesse entretempo, o time iniciava a disputa da Copa Mercosul, torneio criado no ano anterior para substituir a Supercopa da Libertadores.

A base da equipe montada pelo consagrado Carlinhos era bastante heterogênea. Nela conviviam os ótimos Leandro Ávila, Athirson e Beto com os esforçados Maurinho, Luís Alberto, Ronaldo, Marcelo e Iranildo, além dos razoáveis Clemer, Caio, Leandro Machado, Fabão e Fábio Baiano e de garotos como Lê, Reinaldo e Juan. Mas a grande estrela e o símbolo daquela formação era mesmo o consagrado Romário, que vivia talvez seu melhor momento com a camisa rubro-negra, apesar do (sempre) contestável comportamento fora das quatro linhas.

A Copa Mercosul contou com 20 equipes, divididas em cinco grupos. O Flamengo caiu numa chave com Olimpia, Colo-Colo e Universidad do Chile. Os cinco vencedores dos grupos se classificavam diretamente, e os três melhores segundos colocados completavam as Quartas-de-Final.

O início flamengo foi bastante irregular, capaz de golear o Colo-Colo no Chile (4-0) e a seguir sofrer duas derrotas acachapantes fora de casa, para Olimpia (1-3) e Universidad (0-2). Jogando de forma apática e desinteressada, o time ainda venceria o Olimpia com dificuldade (2-1) no Maracanã e cederia o empate (2-2) para o Colo-Colo, também no RJ, após abrir 2-0. Para a última rodada, a situação rubro-negra era delicada. Muito delicada. Aliás, o time, em terceiro, estava virtualmente eliminado.

O Flamengo agarrava-se apenas a uma criativa matemática para ainda pensar em Mercosul. Com remotas chances de vencer o grupo (o que ocorreria somente se Olimpia e Colo-Colo empatassem sua partida), o rubro-negro mirava uma das duas vagas restantes por índice técnico (o Palmeiras, com 11 pontos, já assegurara uma das disponíveis). O problema era o saldo. Corinthians (10 pontos, saldo 5) e Nacional-URU (10 pontos, saldo 4) eram os mais fortes candidatos. Boca Juniors (7 pontos, saldo 3) e Flamengo (7 pontos, saldo 1) ainda brigavam e jogariam simultaneamente, podendo atingir 10 pontos e disputar o desempate no saldo de gols. Com isso, o rubro-negro, para não depender do resultado do Boca, precisava de um mínimo de quatro gols contra a Universidad, na última rodada. Algo normalmente impensável.

Não para o Flamengo. As nuvens começaram a se dissipar quando foi confirmada a informação de que a Universidad iria ao RJ com um time misto, adotando o mesmo procedimento da U. Catolica, adversário do Boca. Sem muita alternativa, Carlinhos montou um esquema ultra-ofensivo, com três atacantes (Romário, Caio e Leandro Machado) e apenas Leandro Ávila no combate. A torcida, ressabiada, compareceu em número reduzido, mais preocupada em protestar contra os maus resultados recentes.

Trila o apito, logo vem a informação de que o Boca abre o placar em Santiago. Não há jeito, o Flamengo vai precisar mesmo fazer quatro. Mas o time está diferente, aguerrido, briga por todas as bolas, come grama. O frágil adversário sente a força e se acua ainda mais, não passa da intermediária. Alguns parecem estar atuando o jogo de suas vidas, numa postura bem diferente de jogos recentes. Leandro Ávila, sozinho, toma conta da cozinha flamenga, Beto e Fábio Baiano rodam o campo todo, Caio e Romário imprimem uma movimentação alucinante que enlouquece a defesa chilena, enfim, o time cala os muxoxos da torcida, que entra em campo. Empurra. Canta. E logo aos 5’ vai festejar. Fábio Baiano cruza, Romário acerta belo voleio, o goleiro rebate nos pés de Caio, que emenda e abre o placar.

O gol de Caio cria uma atmosfera arrepiante no Maracanã. O pequeno público se espelha nos jogadores e se multiplica, fazendo das gélidas arquibancadas um palco incandescente, como nos seus dias de gala. O rádio não se cansa de dar notícias ruins, agora se sabe que o Olimpia está vencendo o Colo-Colo. Não importa, agora o Flamengo é cada vez mais Flamengo em campo, zune implacável na frente do esforçado goleiro Vargas, que faz o que pode para evitar o massacre. Mas, aos 16’, é impotente quando Romário pega uma sobra e arranca, cortante, sibilino, rascante, como só Romário sabe ser. Deixa três chilenos pelo caminho e, na saída do goleiro, emenda com seu clássico bico, que sai raivoso, na gaveta. 2-0. “Ó, meu Mengão, eu gosto de você!”, o Maracanã em festa, os chilenos dão a saída, “quero cantar ao mundo inteiro a alegria de ser rubro-negro”, a torcida canta, o jogo come, o Flamengo já tomou a bola, “cante comigo Mengão”, está com Caio, que estica na direita a Fábio Baiano, o goleiro sai vendido, é driblado, bola na área, Caio manda a bomba, bola na barriga de Romário, que cai, mas mesmo deitado arruma um jeito de empurrar pro gol, meter o terceiro e fazer o estádio viver um delicioso transe, com apenas 17’. “Acima de tudo rubro-negro”.

Agora falta apenas um gol. E temos apenas DEZESSETE minutos de jogo. Jogo não, monólogo. Os chilenos, embasbacados, assistem ao futebol pulsante dos comandados de Carlinhos. No entanto, a inesperada facilidade cede espaço à ansiedade. Súbito, o time começa a perder gols às carradas. A torcida não para de cantar, mas o time parece sentir a correria. Um toque a mais, um toque a menos, um passe errado aqui, uma defesa de Vargas ali, e a bola teima em não entrar. Escaldada com as façanhas do time (positivas e negativas), a massa flamenga se inquieta com o gol que não sai.
35’. Leandro Machado aciona Fábio Baiano, que entra livre mas bate fraco. Vargas rebate, Leandro pega o rebote e encobre o goleiro, mas a bola sai fraquinha, sem direção. Esperto, Romário (em grande noite) coloca novamente o biquinho na bola e empurra pro gol. De forma inacreditável, o Flamengo pulveriza a distância de quatro gols que o separa da vaga. Em pouco mais de meia hora.

Com o almejado placar alcançado, o time reduz o ritmo e passa a tocar a bola, enquanto a torcida canta como é bom ser Mengão. Na segunda etapa, Carlinhos manda a equipe entrar forte, marcar mais gols. Não é bom facilitar. Boca e Olimpia estão vencendo, um gol dos chilenos e a vaga vai pro espaço. Mas bastam dez minutos. Primeiro, aos três, o lateral reserva Marco Antônio pega um rebote e chuta forte, rasteiro. A bola desvia num chileno e entra carinhosa. 5-0. Aos 10’, Caio dá um passe suculento a Romário, que se recusa a desperdiçar e bate enérgico. Vargas pula mal e não defende. É o sexto gol flamengo, o gol 200 de Romário com o Manto, seu quarto na partida. A vaga está garantida, para desespero dos muitos que antes do jogo alastravam chacotas desdenhando dos rubro-negros. Nunca aprenderiam que não se ri antecipadamente do Flamengo nem em par ou ímpar.

O tempo restante serviria para Carlinhos dar ritmo a alguns reservas e ver a equipe gastar um toque de bola macio e envolvente. Como de praxe nas grandes balaiadas, no finalzinho ainda haveria a cereja, uma pedrada de Rodrigo Mendes que fez o placar do Maracanã luzir Flamengo 7-0 Universidad.

Estava consumado o “milagre”, o “inimaginável”, o “caso perdido”. Era impossível o Flamengo marcar quatro gols. Fez sete. Precisasse de dez gols naquele dia, onze teria feito. Porque nada, nem ninguém, seria capaz de, naquela noite, quebrar o vínculo que se cria entre o Flamengo e sua nação, quando o time se vê representado por onze guerreiros em campo. Cinco mil, 50 mil, 100 mil? Não importa. Quando o sagrado pano encarnado e negro se vê encharcado, há milhões que vibram, empurram e sofrem até a vitória final, numa simbiose tão única, tão ímpar, que se torna objeto de cobiça, inveja e admiração por quem não a vive e sente. Um amálgama que desconhece barreiras e se unge capaz de qualquer feito.

Naquele 1999, acabaria em título.

(crédito vídeo: alrossi)

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