terça-feira, 23 de março de 2010

Alfarrábios do Melo

Olá, saudações rubro-negras a todos. Há algumas semanas, falava aqui das coincidências que envolveram a carreira do lateral Márcio Nunes, que quase encerrou a carreira do nosso Zico. Retorno àquele episódio para mostrar que, a partir dali, o Galinho sempre teria o mesmo adversário em seu caminho em alguns momentos-chave de sua carreira. Nos negritos, há vídeos. Boa leitura.

P.S. – antes de iniciar o post, quero fazer um jabá rápido. Não gosto de jabás, mas não posso deixar de indicar os dois livros do Arthur Muhlenberg, o “Manual do Rubro-Negrismo Racional” e o “Hexagerado”. Comprei os dois juntos, leitura deliciosa, relaxante e que prende (a história do surgimento do urubu é sensacional). Recomendo. Mesmo.

Zico e os Fla-Flus

1985, Taça Guanabara. Após o coice de Márcio Nunes, Zico passa todo o resto da semana no Departamento Médico. Apesar da gravidade de sua lesão (danos nos ligamentos do joelho esquerdo, torção no mesmo joelho e entorses nos dois tornozelos, entre outros ferimentos), o Galo, de forma inacreditável, consegue trotar. Tem presença confirmada no domingo seguinte, contra o Fluminense (o jogo do Bangu havia sido na quinta). Mas no Fla-Flu Zico anda, manquitola, arrasta em campo o peso de sua dor. Sua presença intimida os zagueiros tricolores, que o marcam à distância. Mas Zico padece, mal participa do jogo. Na verdade, duas partidas estão em andamento. Há o Fla-Flu, corrido, pegado, truncado, que vai terminar num monótono 0-0. E há a batalha de Zico, que arde para mostrar a si mesmo que não está fora de combate. Como um leão ferido, permanece os 90’ em campo. No vestiário, o joelho inchado e desfigurado já prenuncia o cortante veredicto. Cirurgia. Afastamento. 1985 acaba para Zico.

Apesar de delicada, a cirurgia não elimina todos os problemas. A lesão é tão complexa que se decide não recompor os ligamentos, pois o risco de alijamento dos gramados é muito alto. O paliativo é proteger o joelho por meio de reforço na musculatura local. Só que qualquer pisadela em falso pode reviver o drama. Mas não há opção. Ou isso, ou o fim.

1986. Passam-se quatro meses, quase cinco. Após dois amistosos no Oriente Médio, Zico está pronto para retornar aos gramados de forma oficial. Irá se reencontrar justo com o Fluminense, último adversário antes da cirurgia, agora ostentando um arrogante tricampeonato. Estréia de Sócrates no Maracanã, jogo muito falado. Mas o espetáculo é de Zico, que exala toda a energia acumulada por meses de sofrimento e flutua em campo, enlouquecendo 84 mil privilegiados espectadores, que testemunham uma das maiores exibições individuais da história do Maracanã. Um iluminado Zico faz com que a bola deslize aveludada, cintilante, refulgente. Há, entre os outros 21 em campo, nomes consagrados, experientes, plenos de talento puro. Mas naquela tarde Zico está em outro plano. Seu futebol exuberante beija a perfeição, é algo quase divino, etéreo, infinito. Zico desmonta, tijolo por tijolo, a soberba do adversário, erige contundentes 4-1 e silencia todas as vozes bichadas de frustração e inveja. Ovacionado, desce ao vestiário. E chora lágrimas de titã.

O Galinho seguiria alternando momentos mágicos (na Seleção, destroça a Iugoslávia num amistoso, com direito a dois gols de placa) com a angústia de conviver com um joelho pouco confiável, sensível a cada buraco, cada giro em falso. Aos trancos, vai à Copa e é exposto à sanha dos eternos derrotistas. Retorna ao Brasil, o Estadual no Segundo Turno. E lá está Zico, profissional exemplar, exibindo seu talento e expondo seu delicado joelho aos buracos da Rua Bariri e do Godofredo Cruz. Vem o Fla-Flu. Vitória crucial para o Flamengo. Zico alinha com o resto do time. Mas só resiste sete minutos. Um giro em falso, o costumeiro estalo, o inchaço instantâneo. Mais uma vez, fora de combate. Traumatizada com a surra da Guanabara, a torcida tricolor reluta em festejar. Não adianta, apanha do mesmo jeito, o Flamengo faz 1-0 e segue seu trajeto rumo ao título que irá conquistar mais à frente. Mas será sem Zico.

Após sair de campo no Fla-Flu, Zico segue sua enfadonha rotina de recuperação nas salas de musculação. Prepara-se pro Brasileiro. Mas num treino bobo, a dias da estréia contra o Paysandu, pisa em falso e vê novamente seu joelho inflar. As semanas de recuperação são jogadas fora. É o basta. Zico resolve se submeter a uma arriscadíssima cirurgia para reparar os ligamentos. Terá que suportar uma rotina ainda mais dura de recuperação. E as chances de retorno não são muitas. Mesmo assim, o guerreiro ferido vai pra luta. É dado por acabado.

1987. ONZE meses após o fatídico Fla-Flu, lá está Zico de volta, recuperado da cruel lesão nos ligamentos. A cirurgia é um sucesso, embora ainda existam meniscos feridos, o que faz com que Zico tenha que evitar saltar. O tão aguardado retorno é contra um velho conhecido. O Fluminense. Taça Rio, jogo “amistoso”, os dois times sem chances. Domingo de manhã, Caio Martins, TV pra todo o Brasil. Zico atua todo o tempo, novamente mostra diferenciar-se dos demais com toques limpos e agudos. Tem boa atuação, apesar da falta de ritmo. Pênalti para o Flamengo. A transmissão da TV faz onda, cria uma tensão desnecessária. Zico vai lá, faz seu trabalho e converte, como de costume. O jogo termina 1-1, mas Zico é o grande vitorioso do dia. Está de volta. E dali a um mês, estará erguendo mais uma taça de campeão, a primeira após o seu retorno. Dessa vez, é o título do Terceiro Turno. O adversário? O Fluminense, naturalmente, abatido por 1-0 na decisão, gol de Marquinho, após cruzamento do próprio Zico.

1987 marca a redenção definitiva do Zico. A conquista do tetra brasileiro silencia de vez seus críticos, cujas vozes se marginalizam ao ridículo, clamorosamente desautorizadas pelos fatos. O Galinho se torna uma lenda viva do futebol brasileiro, admirado por adversários e cultuado pela nação flamenga. Nos dois anos seguintes, realiza a última cirurgia corretiva (agora nos meniscos), bem mais amena, convive com problemas musculares, mas segue atuando com regularidade. Ao final do seu último contrato, no alto de seus 36 anos, decide encerrar a carreira. A despedida será na penúltima rodada do Brasileiro. Contra o Fluminense.

1989, Juiz de Fora, dezembro, tarde de sábado. Pela última vez, Zico estará em campo vestindo a camisa 10 do Flamengo numa partida oficial. O adversário é um fragilizado Fluminense, dirigido por Telê Santana. Naquele dia, uma nação inteira engalana-se, quer mostrar-se bonita pra seu astro maior, enche o acanhado estádio mineiro, entoa cânticos de amor, mas está ferida. O Flamengo realiza atuação de gala, voa em campo, todos querem mostrar serviço. O resultado é um massacre, o Flamengo faz 5-0 com espantosa naturalidade. Mas é uma goleada estranha. A massa flamenga sorri amarelo, não tripudia o adversário, não enaltece o time. Está triste. Após um último gol de falta e uma bonita atuação, Zico deixa o campo num rastro de luz. A partir daquele momento, pertence à história.

Não deixa de ser curioso constatar que o adversário preferido de Zico era o Botafogo (o Galinho sempre admitiu que tinha prazer especial em derrotá-los). O oponente contra quem ganhou mais taças foi o Vasco. Mas, no zênite de sua carreira, todos os momentos-chave envolvendo afastamentos e retornos sempre tiveram o Fluminense como coadjuvante, numa espantosa cadeia de coincidências. Algo que parece místico.

Se bem que dizem que mística é a marca de um Fla-Flu, não é mesmo?

(créditos vídeos youtube: aleflamengo, jogosdobrasil, alrossi, crespobm)



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