terça-feira, 2 de março de 2010

Alfarrábios do Melo

Olá, saudações rubro-negras e um feliz natal flamengo a todos. Essa semana, quero mostrar como o futebol, às vezes, pode ser cruel com suas ironias e coincidências. E um dos protagonistas dessa história é justamente o Galinho, que mostraria toda sua índole de vencedor no episódio. Boa leitura.

A Paixão de Zico e a vingança da bola

1985, Taça Guanabara. Após estrear aplicando categóricos 5-0 no Bonsucesso numa festiva tarde de domingo em Caio Martins, com direito a bela exibição e dois gols de Zico (Paulo Henrique, Bebeto e Tita completaram o placar), o Flamengo vai enfrentar o Bangu pela segunda rodada, numa partida muito aguardada, o encontro entre o Flamengo de Zico, Bebeto, Tita, Leandro, e o vice-campeão brasileiro. Mas o que deveria ser uma noite de belo futebol se torna uma caçada.

Marquinho recebe na direita, domina e leva um pontapé de Ado. Zico recebe pelo meio e tenta o lançamento, mas sofre uma violenta entrada do volante Israel. Leandro avança pela lateral-direita e vai cruzar, mas toma uma rasteira antes que possa completar o lance. Adalberto avança pela esquerda, livra-se de Márcio Nunes e vai entrar na área, mas uma voadora de Arturzinho (!) acaba com a jogada. Assim, pode-se resumir um pouco da exímia disciplina tática mostrada pelo Bangu naquela partida. Mas ainda viria o pior.

Alguns jogadores se notabilizam por marcar três, quatro, até cinco gols em uma partida. Outros se tornam famosos por defender dois pênaltis, ou mesmo três (em decisões de penais). Outros atletas ainda são lembrados pelo número de assistências conseguidos em um jogo. Estatísticas que os craques se esmeram em atingir.

Torção no tornozelo direito. Torção no tornozelo esquerdo. Traumatismo na cabeça do perônio direito. Quatro fendas na canela esquerda. Torção no joelho esquerdo, com ruptura do ligamento cruzado anterior, do tendão da rótula e do menisco interno. Essa foi a marca conseguida pelo lateral-direito Márcio Nunes após uma entrada selvagem que escoiceou de frente as duas pernas de Zico, numa cena medieval que chocou o país. Começava ali o calvário do messias rubro-negro.

Após receber a patada do resfolegante Márcio Nunes, Zico dá início a uma via crucis que levaria cerca de dois anos, entremeada por inúmeras cirurgias, sessões de artroscopia, intermináveis horas de entediante musculação e a convivência com a cruel tentativa de desconstrução de um ídolo. Zico é diversas vezes dado como acabado. Num Fla-Flu, só aguenta 10 minutos em campo. Morto, decretam. Na Copa de 1986, entra frio e chama a responsabilidade de um pênalti decisivo, depois que vários jogadores amarelam. Desperdiça a cobrança, tacham-no de perdedor. Antes do Brasileiro de 1986 vai disputar um treino e se machuca novamente. Revistas e jornais soterram o craque, todos querem tirar uma casquinha do ex-jogador, massacrado por uma mídia que o tacha de decadente, peso morto, marajá, fardo. Toda uma nação sofre a agonia e o martírio de seu ídolo maior, seu líder, seu comandante, seu guia. Em sua Via Sacra, Zico derrama por várias vezes lágrimas de sangue, íntimo de salas de musculação e consultórios médicos.

E ressuscita. Em 1987, um primeiro semestre de cauteloso retorno (onde chega a se reencontrar com seu algoz num Flamengo 2-2 Bangu, pelo Terceiro Turno) e a redenção definitiva durante o Brasileiro. Zico silencia seus detratores e volta a jogar futebol no mais alto nível. Como estava escrito, o Profeta conduz o Flamengo ao tetracampeonato brasileiro e volta a se tornar o maior talento brasileiro em atividade no futebol. Nos dois anos seguintes, recebe várias homenagens pelo Brasil. Em 1989, é ovacionado pela torcida do Cruzeiro em um Mineirão lotado antes de um Cruzeiro x Flamengo, numa cena de arrancar lágrimas. Vitorioso e consagrado, abandona o futebol brasileiro e parte num facho de luz, indo espalhar sua palavra e sua veia pioneira no outro lado do mundo.

Mas a história daquela longínqua quinta-feira de 1985 não terminaria ainda. O obscuro Márcio Nunes, torcedor flamengo na infância, que tantas vezes fora ao Maracanã gritar o nome de Zico, capaz de brigar pelo seu Mengão, seria atingido cruelmente por um dos mais inacreditáveis castigos impostos pelo tortuoso mundo do futebol. Nervosa e saudosa de seu Senhor, a bola se mostraria vingativa, sinistra, quase macabra.

1988, o Vasco vai vencendo o Bangu pela Taça Rio. O alvi-rubro está no ataque, Márcio Nunes avança com a bola, vai cruzar. O zagueiro Fernando, xerifão vascaíno, vem na cobertura e dá o carrinho, mas está atrasado no lance e Márcio consegue alçar a bola. Mas o carrinho de Fernando o atinge. A perna de Márcio prende no chão e se entrelaça com Fernando. O joelho do banguense estala. Márcio urra de dor, pressente o pior, o que é confirmado pelo diagnóstico. Grave lesão dos ligamentos externos do joelho direito, contusão da mesma natureza que quase alijou Zico dos gramados, três anos antes.

Nunca mais Márcio Nunes voltaria a jogar futebol.

Mas ainda faltava o desfecho para o complicado enredo concebido pela bola, essa voluntariosa. Após vários anos servindo como zagueiro do Vasco, Fernando (que estava em Portugal) é contratado pelo Flamengo em 1989, e logo se torna titular da equipe. Em 1990, é peça fundamental durante a campanha do Flamengo na Copa do Brasil. Mais ainda: ao aproveitar cruzamento de Djalminha, testar para as redes goianas e decretar a vitória flamenga por 1-0 no primeiro jogo da final, torna-se herói, marcando o gol que fez do Flamengo o Campeão da Copa do Brasil de 1990.

O primeiro título sem Zico.

Vídeos: Flamengo 0-0 Bangu, 1985 (crédito leomagamon);
Zico reencontra o Bangu, 1987 (crédito rafaelcpedro);
Flamengo 1-0 Goiás, 1990 gol Fernando (crédito aleflamengo).

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