quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

HEXACAMPEÃO

*Pelo grande amigo - se assim me permitir - José Eustáquio Cardoso.

Baixada a poeira levantada pelo país inteiro, e quiçá pelo mundo, e devidamente deglutida pelos adversários de todos os matizes, pela torcida arco-íris, a altissonante vitória, cumpridamente atroada por trinta e cinco milhões de gargantas roufenhas e assoberbadas por outros trinta e cinco milhões de corações ansiosos de uma ansiedade de dezessete anos, talvez já nada restasse por ser dito.

Mas eu tenho que dizer, deixem-me dizer! Eu tenho que dizer da minha particular felicidade, permitam-me fazê-lo. Como não dizer que meu filho e meu amigo, dessa e de outras jornadas, despencou lá da altura do mapa, lá de Washington, DC, em uma impensável viagem de avião que lhe demandou mais de trinta horas, entre voos, conexões e esperas, para o aconchego e o brilho de meu olhar flamengo como o dele e para a certeza da glória num Maraca tão lotado como deveria e só poderia estar? Como não dizer que eu próprio, no breve de uma tímida racionalidade absolutamente incompatível com o momento de paixão, o repreendi, dizendo-lhe do impensado do gesto? Como não dizer que o brilho de seu olhar e a doce irresponsabilidade desse gesto me arrastaram como torrente irresistível do caudaloso rio de amor que tomou conta da cidade, do país, para o desaguadouro natural de tanta emoção junta? Como não dizer do insano trabalho para se conseguir a bênção de dois simples ingressos, àquela altura irremediavelmente esgotados? Como não dizer da longa e penosa espera em uma interminável fila, tão mais interminável quanto menor a educação dos que ousavam furá-la, sob um sol que lhe queimava o pescoço e me ardia na careca? Como não dizer da alegria, de mistura com a ansiedade por entrar, com o medo de não entrar, de se estar irmanado a tanta gente vestida de vermelho e preto com apenas um sonho no olhar? Como não dizer do júbilo por vencer todos os obstáculos e estar, finalmente, na rampa das arquibancadas, em ascensão rumo à infalível explosão de alegria? Como não dizer do inusitado e incompreensível conforto de duas simples e duras cadeiras amarelas a descortinarem um palco verde de tanta história de glórias e conquistas? Como não dizer do sensível e até audível compasso de um coração ao meu lado, um coração já nem mais filho, mas simplesmente irmão? Como não dizer do pulsar aflito de oitenta e cinco mil corações juntos e irmanados? Como não dizer da indizível beleza das bandeiras que se desfraldavam, das camisas que se agitavam, das bolas vermelhas e pretas que subiam em conhecido mosaico rumo ao céu? Como não dizer de um canto e um grito em uníssono? Como não dizer dos milhares de esperançosos sorrisos de todos os sexos, tamanhos e idades, de todos os credos e cores, mas afinal de uma só crença em duas cores juntas?

Como não dizer de tudo isso, meu Deus? Eu tinha de dizer para quem quisesse ou não quisesse ouvir. E afinal o digo. Digo do desencanto do gol adversário, a suscitar, todavia, o mesmo canto de fé e esperança: “Vamos, Flamengo! Vamos ser campeão, vamos, Flamengo!” E digo da aflição dos minutos seguintes, a culminarem, no entanto, com o berro de um estádio inteiro e do Brasil inteiro: “Gol! Gol do Mengão! Mengo! Mengo! Mengo!”

Mas não era bastante: os telões do estádio anunciavam em altas e más letras que o adversário, o verdadeiro adversário, fazia a sua parte da festa e da angústia, vencendo e estando prestes a nos roubar o que de direito nos pertencia. Por isso digo da sombra que se abateu em pleno sol sobre arquibancadas, cadeiras e gramado. E digo do sofrimento e da ansiedade do infindável intervalo: era preciso voltar logo e vencer e acabar com aquilo, porra!

Voltamos todos, jogadores e torcedores: todos no estádio, todos no campo: “Dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe, ô! Mengão do meu coração!” Ora, quem poderia resistir a um time de oitenta e cinco mil jogadores com outros trinta e quatro milhões, novecentos e quinze mil no banco? Nem todos os times do mundo! E eis que após mais vinte e quatro minutos de angústia e sofrimento, explode e retumba o estádio inteiro, a cidade inteira, o país inteiro, o mundo inteiro na magistral e certeira, indefensável e inalcançável cabeçada de nosso Ronaldo, o Ronaldo da nação, o Ronaldo do Flamengo, o Ronaldo Angelim, gente! É gol do Mengão, o Mengão vence, o mundo inteiro se rende e se enfeita, a vida já tem sentido, não existe dor, só existe gozo, um múltiplo e inumerável orgasmo coletivo! Como ainda não dizer disso? Ora, pelo resto da vida direi! Direi aos meus netos, que dirão aos seus netos...

E direi sobretudo da ternura de um menino – que para mim sempre o será – chorando ao meu lado, primeiro de aflição, por constatar que o tempo passava e o gol não vinha, depois de pura felicidade, por berrar todo o mundo que o gol veio, e mais depois por clamar aos céus, de braços abertos, como em prece de pura gratidão: – Hexacampeão!
E direi, por fim, dos soluços que altos me sobrevieram e imperiosos me assoberbaram, banhados de santas lágrimas e iluminados de aparentemente destoantes e contrastantes sorrisos. Sim, permitam-me dizer deste sexagenário que outra vez se fez menino ao olhar feliz de seu menino. Como não dizer? Chorei, sim. Chorei e solucei e como ele abri os braços para o céu. Eu mereço. Junto com trinta e cinco milhões de corações e junto sobretudo com o coração de meu menino, que veio de tão longe para outra vez multiplicar minha felicidade, eu pude gritar e gargalhar e outra vez gritar, de rosto colado a um outro, que mais se colava ao meu pelas lágrimas comuns: – Hexacampeão! Mengão do meu coração!

E deixem-me ainda dizer, mesmo que não pareça importante, que dias antes meu menino dissera: – Eu não posso deixar de estar ao seu lado nesse dia, Pai.


Niterói, 15/12/2009

Flamengo Net

Comentários