terça-feira, 6 de outubro de 2009

Alfarrábios do Melo

Olá, saudações rubro-negras a todos. De astral renovado após a chinelada de domingo, sigo contando a história da conquista do Brasileiro de 1983. Após os dois primeiros capítulos meio tensos (acesso aqui), finalmente a grande virada começava. Links para vídeos nos negritos. Boa leitura.

Campeonato Brasileiro de 1983 – Parte 03

Após empatar com o Guarani, o Flamengo, em função de uma combinação de resultados, seguia na liderança de seu grupo da Terceira Fase. Mas a disputa era apertada, na prática todos tinham chance de classificação. No domingo seguinte, o time pegaria o forte Corinthians, no Maracanã, ainda diante das incertezas que pairavam sobre a escolha do seu novo comandante.

O Corinthians de Sócrates, Zenon, Wladimir, Biro-Biro e Casagrande era a equipe mais comentada pela imprensa naquele início de 1983, muito em função da revolucionária gestão implantada por seu diretor de futebol, Adílson Monteiro Alves, onde os jogadores tinham voz e participavam de todas as decisões referentes ao futebol. O sistema, denominado Democracia Corintiana, caía como uma luva para seus atletas, de forte personalidade. Mas além de democracia, o time também tinha futebol. Montado em 1982, já impressionara no Brasileiro anterior, onde chegara às Semifinais. No final do ano, atingira o seu auge, ao conquistar um badalado campeonato paulista com um chocolate sobre o São Paulo na final. Agora, falava até em Libertadores, e a vinda do goleiro Leão supria um dos principais problemas do elenco. No Brasileiro, o time já chamara a atenção ao golear o Tiradentes por 10-1 e vinha fazendo uma campanha sólida, tendo vencido sem sustos seus grupos das fases anteriores, apesar do início de alguns atritos entre Leão e os líderes do elenco. Chegava ao Rio de Janeiro com banca de favorito, por viver um melhor momento que o conturbado Flamengo. Mas ninguém imaginava o que estava por vir.

Frustrada com o fracasso de Carlinhos, a diretoria foi atrás de um nome mais expressivo para ocupar o cargo de treinador. Porém os nomes mais caros não estavam disponíveis, as negociações seriam demoradas. Aí, alguém teve a idéia de trazer Carlos Alberto Torres, que estava em Nova York, curtindo sua aposentadoria dos gramados aos 39 anos. Contactado, Torres topou na hora.

Sábado de manhã, o Capitão do Tri desembarca e segue direto pra Gávea. Sua primeira medida assombra os mais conservadores: junta o grupo, os repórteres e dá uma preleção aberta à imprensa. A seguir, anuncia que está extinto o regime de concentração. Avisa à diretoria que quer de volta todos os profissionais afastados por brigas com Carpegiani. Fala em liberdade, responsabilidade e em comandar um grupo de homens, não de jogadores. Chama Zico num canto e troca idéias. Deixa claro: “o craque do time é você, a referência é você. Comande!”. Dá um treino, recebe informações do auxiliar Cléber Camerino e surpreende a todos ao comunicar como quer o time jogando: “quem são os melhores? Zico, Adílio, Leandro e Júnior. Então, são esses que vão armar o jogo, sem obrigação defensiva.” O Capitão quer Leandro e Júnior livres pra apoiar, Adílio solto na esquerda e Zico mais próximo a Baltazar, quase como um segundo atacante. “O gênio precisa atuar perto do gol”. E dá o pulo do gato: efetiva os jovens Élder e Júlio César no time titular. Junto com Vítor, são três homens de forte marcação, o que garante o povoamento do meio-campo, acabando com o gasto esquema de 81 e seu volante único.

Em apenas uma tarde, Carlos Alberto Torres, trabalhando incessantemente, mudava todo o astral na Gávea. Na sua condição de um dos Heróis do Tri, quase um semideus, Torres era um cidadão internacional. Havia atuado com Pelé e Beckenbauer, entre outros. Era ídolo da juventude da maioria dos jogadores flamengos, que certamente haviam vibrado com seu golaço na inesquecível final de 70, e ainda suspiravam ao relembrar o gesto levantando a Jules Rimet. Pois agora ele estava ali, em carne e osso, dando moral ao novato Élder, dando liberdade a Júnior, Raul e Zico tratarem dos problemas do elenco com a diretoria, acenando com uma nova concepção tática, distribuindo a todos um sorriso fácil e muito bom humor, atendendo a repórteres e torcedores com a mesma paciência. A alegria estava de volta à Gávea. A tensão dava lugar ao riso fácil.

Chega o domingo, sol, 91 mil no Maracanã. O Corinthians perde Casagrande e Biro-Biro, contundidos. O Flamengo não tem problemas (salvo Andrade e Lico) e vai a campo com Raul, Leandro, Marinho, Mozer e Júnior, Vítor, Élder, Júlio César e Zico, Baltazar e Adílio. O time começa cauteloso, estuda e respeita o adversário, os jogadores ainda vão se ambientando à nova formação. Mas já se percebe uma nova disposição, a equipe vai pro pau, disputa todas as divididas, come grama em campo, como não se via há tempos. O esquema vai se mostrando interessante, a defesa parece sólida, o Corinthians não ameaça. O primeiro tempo segue em ritmo intenso, o Flamengo começa a criar chances. Até que aos 39’ o time vem tocando. Vítor abre pra Leandro na direita, o lateral tenta cruzar, a bola repica em Wladimir, volta com Leandro que ajeita e cruza de esquerda mesmo, mas a pelota não ganha altura. Como que para homenagear o Capitão do Tri, Júlio César incorpora Tostão e dá um espetacular toque de calcanhar, achando Pelé, quer dizer, Zico livre dentro da área. O Galinho apenas tira de Leão e abre o placar. Podia ser Guadalajara, mas é Maracanã e o Flamengo faz 1-0.

O gol muda a história do jogo. Era o último sopro de confiança que o time, finalmente aguerrido como sua nação tanto pedia. Torres manda a equipe partir pra cima, manda sufocar, aproveitar a torcida, quer o nocaute. Os garotos seguram o piano, o time ataca, mas está mais consistente, retoma mais rapidamente a bola. Segue apertando, segue no ataque, Flamengo como nunca. Um beque corintiano, desesperado, mete a mão na bola. Falta. Leão fecha o canto que Zico costuma bater, o direito. O Galinho não se aperta, bate de três dedos no canto esquerdo mesmo. A bola queima o chão e entra rasante, é o segundo, 2-0. Podia ser Pelé em Guadalajara, mas é Maracanã, que vira uma grande panela, abafado pelo infernal barulho da nação rubro-negra, finalmente feliz com seu time e com mais um gol de seu astro maior.

Vem a segunda etapa. O Corinthians está grogue, não espera tamanha demonstração de ousadia e força. Mas do outro lado está o campeão brasileiro. O Flamengo segue em cima, Carlos Alberto proíbe o time de recuar. Sete minutos. Agora os jogadores vão mostrar ao seu treinador do que são capazes. Vão transformar o gramado em uma grande tela. E começa a obra: Zico bate falta rápido, a bola vai a Júnior, que num rápido meneio serve de cabeça a Adílio na esquerda. O neguinho mata no peito e sem deixar cair deixa com Élder, no meio. O garoto amacia no peito e também sem deixar cair no chão lança a Baltazar, na direita. Até mesmo o estabanado atacante vive seu momento Uri Geller, entorta um zagueiro e cruza. Adílio já está na área, livrinho, pra escorar com a testa e assinar a magistral pintura, gol de Maracanã lotado, gol pra passar de novo na roleta, gol pra repetir mil vezes, gol pra mostrar ao Capita que ali também tem muita bola.

O Flamengo vai destruindo, demolindo, implodindo o favoritismo corintiano. Já está 3. O time parece ter levado um choque elétrico, está ligado na tomada. O adversário agora é só um espectro do que um dia vinha sendo considerado apressadamente o melhor time do país. Está posto na roda pelo renascido Flamengo, que volta a encantar. É 1981 ali de novo, diante dos olhos de todo um país, premiado com a transmissão da TV. Mas ainda tinha muito mais. Trinta minutos, a galera já está rouca de tanto olé. Escanteio. Zico cobra na cabeça de Mozer, que com incrível categoria golpeia colocado, encobre Leão e mete o quarto gol. No banco, Torres ri como uma criança. O Flamengo, seu novo brinquedo, segue em cima, não dá um segundo de folga ao Corinthians. Os paulistas só desejam que aquele inferno acabe logo, já estão entregues, doloridos de tanta chinelada. Mas ainda há contas a acertar. Não com o Corinthians, mas com os críticos, os detratores, os abutres que vaticinavam o fim de um Zico, de um Júnior, de uma Nação. E, sedento de sangue e gols, o rubro-negro segue em cima, alimentado pelo urro sobre-humano de uma massa faminta que está diante de seu repasto de gols, fantasia e arte. E segue o massacre. Zico vem pelo meio, lança Élder, completamente livre. O menino agora está sozinho, com apenas Leão, o monstro sagrado Leão, o Campeão Mundial em 70, à sua frente. Mas agora o monstro é ele, Élder, que dá um rabo de vaca no consagrado goleiro e enfia em suas redes a quinta bola, dando a Leão a duvidosa honra de, pela primeira vez em sua carreira, receber cinco gols em um só jogo. Isso, o Flamengo faz CINCO A ZERO.

Talvez por sentir o choque de estar levando de cinco, o Corinthians, em seu último suspiro, ainda consegue um espasmo de reação e faz seu gol de honra, com Sócrates. Mas o Flamengo segue enlouquecendo o adversário, ainda faz mais TRÊS gols, todos legítimos, genuínos, cristalinos, só que o inacreditável e medonho árbitro gaúcho Roque Gallas simplesmente se nega a validá-los. Gallas se arroga a missão de decretar que ninguém pode tocar o céu com os dedos e define em cinco o que deveria ter terminado em OITO. Evitando três gols, certamente foi o grande nome corintiano naquela tarde. Assim, o frágil, combalido, morto Flamengo, acabava de enfrentar o poderoso, forte, democrático Corinthians. E no placar do Maracanã estava lá, Flamengo 5-1 Corinthians. O verdadeiro Flamengo finalmente estreava na competição.

No final do jogo, um fato dava bem a dimensão do que havia acabado de acontecer. Normalmente muito assediado, o craque Zico atendia, com toda a calma, a dois repórteres, enquanto do outro lado do vestiário 17 jornalistas se acotovelavam para ouvir a grande estrela do dia. O sujeito que, em apenas dois dias, já virava todo o Brasileiro de 83 de pernas pro ar.

Era Carlos Alberto Torres, o homem que devolvia o Flamengo à sua Nação.

(crédito vídeo Flamengo: http://www.youtube.com/user/aleflamengo)

(créditos fotos: Revista Placar, acervo pessoal)

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