Alfarrábios do Melo
A SAGA DO PENTA - O Campeonato Brasileiro de 1980 (Parte 01) 1980. O elenco do Flamengo iniciava a temporada ainda em choque, atônito com a traumática eliminação ocorrida no final do ano anterior, quando, diante de 112 mil pagantes, fora goleado pelo Palmeiras de Telê Santana (1-4) em pleno Maracanã e com isso perdera a vaga para as semifinais, que estava tão perto (bastaria uma vitória simples). Definitivamente, aquela derrota humilhante não estava nos planos dos comandados de Cláudio Coutinho, o time de Zico, Carpegiani e Júnior, que vinha de um tricampeonato estadual arrasador, moendo seus adversários. Um time que se impunha de forma tão retumbante no plano doméstico e era incapaz de atingir o topo do futebol nacional. Pior, via seus rivais cariocas, tantas vezes batidos, chegarem muito mais próximos da Taça, como o Vasco (semifinalista em 1978 e vice em 1979) e o Botafogo (eliminado nas quartas em 1978). A sensação era de desconforto, quase inconformismo. O Flamengo tinha time e futebol para alçar vôos mais altos e isso parecia vir sendo desperdiçado. O Flamengo já havia chegado perto das semifinais algumas vezes. Em 1974, o time começou atropelando, mas sucumbiu à maior experiência de Palmeiras e Cruzeiro, perdendo a vaga pro quadrangular final. No ano seguinte, a eliminação foi traumática: com quase 80 mil torcedores no Maracanã, caiu diante do surpreendente Santa Cruz (1-3), em jogo onde bastava o empate para chegar às semifinais. A derrota beneficiou o Internacional, que marchou para a conquista de seu primeiro título. Em 1976, outra excelente campanha nas fases iniciais e mais uma derrota decisiva, dessa vez para o Vasco (0-1), que novamente alijou a equipe da fase semifinal. E, por fim, o amargo revés de 1979 para o Palmeiras. Para a temporada de 1980, o rubro-negro ainda se depararia com um problema adicional: ao se desentender com Coutinho, o atacante Cláudio Adão, que formava uma devastadora dupla de ataque com Zico, foi emprestado ao Botafogo. A aposta de Coutinho era o garoto Gerson Lopes (que vinha fazendo muitos gols nos amistosos da pré-temporada), mas a uma semana do início do Brasileiro o atacante sofreu séria contusão e não pode ser utilizado na competição. Outra questão era a defesa. Ainda não se havia encontrado o companheiro ideal para Rondinelli, o estabanado Manguito não conferia nenhuma tranqüilidade ao setor. Atenta, a diretoria trouxe do bom time do Londrina o zagueiro Marinho, destaque em dois Brasileiros. Completando o elenco, vieram os pontas Carlos Henrique (muito veloz, mas com pouca técnica) e Reinaldo (rápido, finalizador), além do lateral-direito Carlos Alberto. A base seguia formada por Zico, Raul, Carpegiani, Júnior, Toninho (vigoroso lateral-direito), Rondinelli, Andrade, Adílio, Tita e o driblador Júlio César, conhecido como “Uri Geller”, pela facilidade em entortar adversários (Uri Geller foi um paranormal israelense célebre nos anos 70 por deformar talheres com o poder da mente) formando um excepcional grupo de jogadores. Em 1980, o Brasileiro passou por grande reformulação. Pressionada pelos grandes clubes, a recém-criada CBF reduziu o número de participantes para 40 (a competição chegou a contar com 94 times, em outros anos), criando a Taça de Ouro, uma espécie de Primeira Divisão. De forma habilidosa, acomodou interesses ao criar a Taça de Prata, também com 40 times, algo como uma Segunda Divisão, mas com um diferencial: promovia o acesso de quatro equipes no mesmo torneio. Desse modo, teoricamente o título brasileiro era disputado por 80 equipes. Na Primeira Fase, os 40 times foram divididos em quatro grupos de dez, classificando-se os 7 primeiros de cada chave para a fase seguinte: o Flamengo recebeu a companhia do então campeão Internacional, mais Santos, Ponte Preta e Náutico, entre outros menos cotados. E a estréia seria contra o perigoso Santos, no Morumbi. O Santos possuía um time forte, cuja base eram os “Meninos da Vila” campeões paulistas de 1978. Jogadores talentosos como o goleiro Marola, os meias Gilberto Costa e Pita e os atacantes Nílton Batata e João Paulo compunham uma equipe veloz e combativa. E um excelente público, de quase 75 mil pessoas, foi ao Morumbi, a maioria santistas acreditando na vitória da equipe da casa. Mas logo no início o atacante Reinaldo (que entrava na vaga deixada por Cláudio Adão) fez boa jogada pela direita e serviu a Zico, que vinha na corrida e emendou forte, sem chances para Marola. O Santos ainda pressionou bastante o gol de Raul, mas a equipe soube manter o 1-0, mostrando nítida evolução em seu sistema defensivo. O Flamengo começava o campeonato de forma perfeita. Sem um centroavante de ofício, Coutinho resolveu inovar. Abriu Reinaldo na ponta-direita, improvisou Adílio (mais disciplinado taticamente) na ponta-esquerda e fez Zico e Tita se revezarem no comando do ataque. O time, com isso, ganhava em movimentação e poder de marcação. No entanto, perdia em profundidade. De qualquer forma, a segunda partida seria um teste ainda mais duro para as convicções de Coutinho. O tricampeão brasileiro Internacional, no Maracanã. Quem foi ao Maior do Mundo naquele ensolarado domingo de março assistiu a uma partida belíssima, aberta e disputada com extrema técnica. Um duelo de gigantes, um desfile de craques como Zico, Júnior, Batista, Mauro Galvão, Carpegiani e Mário Sérgio, entre outros. O Inter sem Falcão, mas o conjunto colorado ainda era muito forte. Início de jogo, os dois times jogando pra frente. As chances de gol começam a aparecer. Zico é travado por Mauro Galvão quando se preparava para marcar, a bola sai mascada. Depois, Adílio se livra de Mauro Pastor, mas bate alto demais, longe do gol. O Inter responde: Jair cruza na cabeça de Bira, mas Rondinelli consegue desequilibrar no tranco legal o atacante colorado. Segundo tempo, os 80 mil empurram o Flamengo à frente, o time pressiona. Até que Reinaldo apanha bola na direita, cisca na frente de Cláudio Mineiro, recua para Andrade, que vê Zico se projetando e dá com açúcar. O Galinho fuzila na saída de Gasperin, é Flamengo 1-0, festa no Maracanã. Inebriado pelos gritos da torcida, o Flamengo vai todo à frente, quer o segundo, perde mais gols. Adílio dá a Zico, que toca de calcanhar, lance de gênio. Reinaldo recebe e manda na trave, um pecado. Mas o Inter assusta, não está morto. Bira recebe lançamento primoroso, avança livre, mas quando vai empatar, chuta o chão de forma bisonha, Raul apanha a bola fraquinha. Depois do susto é fim de jogo, o Flamengo derrota o bicho-papão Internacional, todos começam a acreditar que a equipe tem, sim, bola pra brigar pela taça. Com apenas duas rodadas, o Flamengo já é o time mais badalado do campeonato. Mas logo a euforia perderia espaço. Na quarta-feira seguinte, o Flamengo recebeu o inexpressivo Botafogo-PB no Maracanã. Falava-se abertamente em goleada, coisa de seis, sete. No entanto, o time paraibano, cheio de jogadores rodados, fechou-se em uma feroz retranca e, com paciência, aguardou o desespero rubro-negro para encaixar dois contragolpes fulminantes e vencer a partida por 2-1, uma zebra desconcertante. Coutinho começava a perceber que, sem um homem de área, o Flamengo teria muitas dificuldades no campeonato, o que foi demonstrado nos jogos seguintes, vitórias sem brilho contra Mixto (2-0, em Cuiabá) e Ferroviário-CE (2-1 no Maracanã, sob vaias). O time ainda golearia o Itabaiana (5-0, show de Zico, que fez quatro), mas novos tropeços, contra o Náutico (2-2 em Recife, partida que vencia por 2-0) e o São Paulo-RS (0-0 em Rio Grande, num jogo violento) evidenciaram que o ataque dependia muito de Zico. Só que o Galinho, para render melhor, precisava de um homem de referência na área. Mas logo ele viria. ROBERTO DINAMITE NO FLAMENGO? A notícia caiu como uma bomba na Gávea. Enquanto o time penava com a falta de um centroavante, a diretoria se movimentava, e foi buscar o ídolo vascaíno na Espanha. Ocorre que o Vasco, após a conquista do vice brasileiro de 1979, havia negociado o jogador com o Barcelona. Mas a equipe catalã vivia péssima fase, e Roberto, encarado como um “salvador da pátria”, não resistiu à pressão que lhe foi imposta e passou a empilhar péssimas atuações. Execrado pela torcida e ironizado pela crônica, Dinamite viu com bons olhos a possibilidade de retornar ao Brasil e aceitou o convite do Flamengo. Com todas as bases acertadas, a negociação foi dada como fechada e Roberto chegou a dar entrevista como jogador rubro-negro. Mas, desesperados com a perspectiva de perder o ídolo para o maior rival, os dirigentes vascaínos voaram à Espanha e, aproveitando-se de uma parcela da venda não paga pelo Barcelona, conseguiram reverter a negociação com o Flamengo, “recomprando” Roberto Dinamite (cogita-se que o Vasco pagou ao Barcelona um valor maior do que havia recebido pela venda do jogador). Assim, Roberto desembarcou no Rio de Janeiro para defender não o Flamengo, mas o seu time do coração. Aparentemente, o Flamengo havia levado uma “volta”. Acontece que, desconfiados que o Vasco iria, de alguma forma, atravessar a negociação de Roberto, os dirigentes do Flamengo executaram o “Plano B”, que já estava costurado. Foram ao México e trouxeram um atacante que, segundo eles, tinha “a cara do Flamengo”. Não era grande coisa tecnicamente, mas era rápido, movimentava-se bem, atuava com incrível garra e fazia muitos gols (e perdia outros tantos). Seu nome: Nunes. Nunes havia se destacado no Santa Cruz e no Fluminense, marcando gols que inclusive o levaram à seleção. Mas, com o mau desempenho do tricolor das Laranjeiras, acabou negociado com o Monterrey, do México. Ao ouvir a proposta do Flamengo, seu clube de coração, aceitou correndo. E sua estréia foi marcada para a partida contra a Ponte Preta, a última da primeira fase. Um público de 75 mil torcedores foi ao Maracanã assistir à primeira partida de Nunes, o João Danado. E só precisou esperar 18 minutos, para ver Nunes receber de Tita e bater forte, na saída de Carlos, e marcar seu primeiro gol com a camisa do Flamengo, num jogo que terminaria empatado em 2-2 (a Ponte Preta possuía uma equipe certinha, vice-campeã paulista, e endureceu o jogo). Mas o resultado pouco importava.
O melhor foi constatar que o Flamengo finalmente completava seu time, tinha enfim seu centroavante. Mas Coutinho, os torcedores, a crônica e os dirigentes mal poderiam imaginar que o time ganhava mais do que apenas um goleador, um atacante eficiente.
Nunes seria muito mais do que isso.
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