terça-feira, 21 de abril de 2009


Alfarrábios do Melo

Olá, saudações rubro-negras a todos. Essa semana vou pegar um gancho no post da nova colega de blog, a Raysa Himelfarb, cuja descrição do retrospecto entre Flamengo e Botafogo me fez lembrar de uma das mais dramáticas conquistas de toda a história rubro-negra. Então, boa leitura.

O Campeonato Carioca de 1927

1927. “Eu teria um desgosto profundo, se faltasse o Flamengo no mundo.”

Esse trecho do hino popular do Flamengo, que todo rubro-negro conhece, ainda não havia sido criado (Lamartine Babo somente o comporia em 1945), mas essa era a sensação que dominava todos os torcedores flamengos no início daquele ano. Sim, porque o Campeonato Carioca estava para começar, e o Flamengo simplesmente não poderia disputá-lo.

Não, não se tratava de rebaixamento, repescagem ou coisas do tipo, com as quais a turma arco-íris possui tanta intimidade. Pelo contrário, os anos 20 vinham sendo extremamente positivos para o clube, que vinha aumentando vertiginosamente sua popularidade, pois estimulava o contato e a aproximação de um público cada vez mais interessado pelo futebol (o que a empáfia aristocrática de Fluminense, Botafogo e América, e a arrogância do novo-rico Vasco inibiam). Além disso, vinha de vários títulos, só naquela década já colecionara três conquistas.

Então, por que o Flamengo estava fora do campeonato?

Para entender, vale lembrar que na época o futebol era praticado de forma amadora, mas esse amadorismo agonizava, pois com o aumento do interesse do público, as competições se tornavam mais renhidas, a cobrança mais forte, os interesses já surgiam nos bastidores (por exemplo, o Fluminense havia sido, com todas as honras, o ÚLTIMO colocado do campeonato de 1921 e deveria ser rebaixado, mas a revolta entre seus associados foi tamanha que o clube pressionou junto à Federação e conseguiu disputar uma repescagem com o campeão da Segunda Divisão, o Vila Isabel). Com o aumento da repercussão dos jogos, algumas equipes passaram a lançar mão de artimanhas para driblar o amadorismo reinante. O exemplo mais célebre é o do Vasco, que recorreu a jovens de ótimo porte físico, que perambulavam pelas ruas fazendo biscates, jogando futebol nas horas vagas. Os portugueses deram-lhes empregos “de fachada”, pagando-os para treinar em tempo integral, o que nenhuma outra equipe fazia. Esse artifício deu ao bacalhau o título de 1923 e eternizou uma cascata que até hoje é muito repetida pelos lados de São Januário, a tal “abertura democrática para os negros”. Era o “amadorismo marrom”, pra inglês ver, resultado de um anacronismo que logo iria estourar em cisões, boicotes e campeonatos com asterisco.

Algumas escaramuças entre clubes e federações já vinham acontecendo. Por exemplo, a Federação Paulista resolvera admitir a prática do “amadorismo marrom” sob certas condições, cedendo às pressões dos clubes de lá. Mas o Paulistano, justamente o clube mais tradicional de São Paulo na época, recusou-se a aceitar as novas regras e liderou a fundação de uma Liga paralela. Por conta desse ato de rebeldia, foi suspenso por um ano de todas as competições nacionais. Solidário com o co-irmão paulista, o Flamengo, que também era adepto do amadorismo puro, cedeu o campo onde mandava seus jogos, na Rua Paissandu, para o Paulistano disputar alguns amistosos. Por causa disso, o Flamengo também foi suspenso pela CBD (precursora da atual CBF) por um ano de qualquer competição nacional. Estávamos no final de 1926, e isso significava que o clube estava alijado da disputa do Campeonato Carioca de 1927, que teria início em maio.

Foi com um misto de apreensão e inconformismo que o público encarou a perspectiva de não ter a presença do Flamengo no Carioca de 1927. Sem o Flamengo a competição perdia a graça, o charme. Os jogos do Flamengo sempre eram disputados em campos apinhados de gente, os resultados do time sempre tinham maior repercussão. Não, a punição era um absurdo e tinha que ser revogada. E, finalmente, após grande pressão do público, da crônica, dos dirigentes e mesmo dos clubes rivais a CBD atenuou a pena, reduzindo-a a um prazo suficiente para que o Flamengo pudesse disputar o Campeonato Carioca daquele ano.

Mas o período em que esteve suspenso e a incerteza quanto à sua participação no campeonato deixara seqüelas. O fantástico time campeão de 1925 havia sido praticamente desmontado. Vários jogadores, diante da perspectiva de ficarem inativos, resolveram desistir da carreira ou foram defender outros clubes. A poucas semanas do início da competição, o Flamengo estava praticamente sem time. O vexame estava batendo à porta.

Entre os jogadores remanescentes das conquistas anteriores, havia atletas a nível de seleção brasileira, como o goleiro Amado, o zagueiro Hélcio e o atacante Moderato (o melhor de todos). Também seriam efetivados de vez jogadores razoáveis e de certo talento, como o zagueiro Hermínio, o meia Benevenuto e os atacantes Vadinho e Fragoso. Mas era pouco para encarar a disputa de um campeonato com jogos duríssimos, por vezes violentos. Faltava um elenco. Vários garotos tiveram que ser aproveitados, dos quais o mais famoso seria o jovem meia Flávio Costa (que anos mais tarde seria famoso treinador). O nível de desespero chegou a tal ponto que o goleiro Amado começou a rodar pela cidade atrás de garotos que quisessem atuar pelo Flamengo. Consta que até mesmo Oscar Niemeyer, que à época batia sua bolinha nos juvenis do Fluminense, foi convidado mas recusou, pois não queria seguir carreira como jogador. O clube ainda conseguiu trazer três jogadores do Bangu (os meias Frederico e os atacantes Cristolino e Pastor), mas a impressão geral é que o Flamengo estava aos pedaços. Ninguém apostava um vintém na equipe.

E essa impressão não se desfez após os primeiros jogos do novo time, que em amistosos e nas primeiras rodadas sofreu várias goleadas, algumas delas humilhantes. Mesmo as vitórias contra times pequenos eram verdadeiras epopéias, como nos 3-2 contra o fraco Andaraí (aquele da música do Don-Don, que aliás jogava nessa época). Coberto de descrédito, o time chega a ocupar a quinta colocação nas primeiras rodadas.

Mas, apesar das limitações, o time nunca deixa de brigar. Mostrando incomparável espírito de luta, os garotos do Flamengo empolgam sua torcida com suas semanais demonstrações de bravura. Comandado pelas defesas de Amado, a força física de Hélcio, os dribles e arrancadas de Moderato e os gols de Vadinho, o time vai começando a vencer seus jogos. Numa partida-chave, o Flamengo toma a liderança do Fluminense, ao vencer o tricolor por 1-0, mesmo sendo bombardeado durante todo o jogo. A raça flamenga já é o assunto da cidade. O time, totalmente desacreditado, está à frente de equipes estelares, como Fluminense, Botafogo e América. Mas ainda sofreria um duríssimo golpe, o maior de todos.

Empolgado e embalado pela liderança, o Flamengo atropela o Vasco, impondo ao bacalhau categóricos 3-0, com três gols de Vadinho. O centroavante se entende às mil maravilhas com Moderato, completando com eficiência as fantásticas jogadas do ponta-esquerda, que até então vinha sendo a referência e o ponto de desequilíbrio nos jogos. Mas, justamente nessa partida contra o Vasco, Moderato começou a sentir dores agudas no abdômen. Corajoso, resistiu até o final da partida, mas a seguir estava lívido, suava frio, a barriga acusava inchaço e estava quente. Vai ao médico e o diagnóstico é cruel: Moderato está com apendicite supurada (estourada), o caso é grave, requer cirurgia urgente. Hoje em dia uma operação desse tipo é rápida, mas em 1927 a coisa não era tão simples. Moderato, o craque do time, ídolo da torcida, melhor jogador da competição, estava fora do campeonato. E ainda faltava todo o segundo turno.

Os torcedores rivais passaram a zombar do Flamengo, e parecia que a “alegria iria durar pouco” mesmo. O time perde para América e Botafogo, volta a exibir nítidos sinais de fragilidade técnica, os gols de Vadinho escasseiam. O Flamengo ganha só de 1-0 de um dos sacos-de-pancada do torneio, o SC Brasil (que sediava seus jogos na Praia Vermelha, na Urca). O SC Brasil tomou 75 gols nesse campeonato, pra se ter uma idéia de sua debilidade.

Mas o torneio é muito equilibrado. Os jogos vão se sucedendo, SEIS times estão separados por poucos pontos, e a três, quatro rodadas do final ninguém arrisca o campeão. O Flamengo vai se mantendo entre os primeiros. Empata com Fluminense e São Cristóvão, outros concorrentes diretos, sempre na raça, sempre no sufoco. Vence o Vasco por 2-1 num jogo épico e vai pra última rodada dependendo somente da vitória para conquistar o título. A partida é contra o América, que também disputava o título, junto com Fluminense e Vasco. Um desfecho sensacional, que deixou a cidade em polvorosa. E torcendo pro Flamengo, comovida com a superação da equipe.
Ainda não se tinha visto nada. Ninguém, absolutamente ninguém, acreditou quando os onze jogadores do Flamengo entraram no campo da Rua Paissandu para enfrentar o favorito América. Entre eles, estava Moderato, convalescente da delicadíssima cirurgia de apêndice, que naquele momento deveria estar de cama, em repouso absoluto. Pois Moderato meteu uma cinta na barriga, pediu a camisa e negou-se a ficar de fora da decisão.

A presença de Moderato em campo inflamou os milhares de torcedores presentes àquela partida. Palmas, urros e cantos eram entoados em estímulo ao Flamengo. O time, mais do que nenhum outro, MERECIA o título. Mas tinha que mostrar em campo. Moderato se esquece da cicatriz e joga com muita raça. Corre como um maluco, contagia o time. O Flamengo se multiplica. O América, mais técnico, não resiste à correria inicial rubro-negra. É acuado pela simbiose entre um time e uma cidade. O Flamengo, em pleno 1927, já é raça, amor e paixão, já é superação. Depois de tanto sofrimento, não vai perder agora essa taça. Vai pra cima, vai pra dentro, pras cabeças. O atacante Nonô faz 1-0, a massa explode. Antes que o América consiga reagir, o iluminado Moderato dribla um zagueiro, a cicatriz, as dores lancinantes e chuta forte, para fazer história e virar mito. Flamengo 2-0, o acanhado estádio “vai abaixo”.

O América se recompõe, tem um bom time, cadencia o jogo e a poucos minutos do final ainda diminui. Mas naquele dia ninguém ganharia do Flamengo. Ninguém derrotaria aquele grupo de jogadores que suportara a humilhação e o descrédito, passando por cima de adversários muito mais qualificados no papel. Ninguém tiraria o sabor de vitória da boca de uma torcida que dera a mão aos seus jovens representantes, empurrando-os e incentivando-os em cada pontinho conquistado. E, principalmente, ninguém ganharia de Moderato, o craque que, mais do que nunca, já nos longínquos anos 20, entendeu como ninguém o que é Ser Flamengo, escrevendo com sangue o seu nome na galeria dos imortais de um clube que, após essa dramática, sofrida e finalmente vitoriosa saga, transcendia de uma vez por todas a sua simples condição de agremiação esportiva.

Passava a ser uma nação.

* Em tempo: Moderato atuou pelo Flamengo até 1930, ano em que encerrou a carreira. Ainda em 1930, disputou pela Seleção Brasileira a Copa do Mundo no Uruguai, e apesar da pífia campanha do time, foi um dos seus poucos destaques e marcou dois gols.

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