Quando o objetivo de um clube é desfrutar do poder de compra de sua torcida, existem coisas mais importantes a fazer do que simplesmente levá-lo a frequentar o estádio. Afinal, tecnicamente, só pode frequentar um estádio de futebol aquele torcedor que more na cidade onde o time manda seus jogos, ou em seus arredores (digo tecnicamente pois estou ignorando possíveis viagens e caravanas vindas de longe, mas que acabam representando um percentual pequeno do público presente em uma partida). No caso especifico do Flamengo, que tem 80% de sua torcida fora do estado do Rio de Janeiro, uma atitude inteligente é fidelizar o torcedor que mora longe, disponibilizando produtos de qualidade e fácil acesso, e serviços que façam com que ele se sinta mais perto do clube – e do próprio estádio aonde não pode comparecer. Ignorar a paixão de um torcedor simplesmente por achar que “torcida à distância” não é “torcida de verdade” é tapar os olhos ao fato de vivermos num país de dimensões continentais, possuidor da quinta maior população do mundo.
No que tange à crítica de que “o torcedor do interior não é genuíno, pois torce para dois times”, isto é algo que estamos cansados de ouvir. Esta velha máxima virou a grande desculpa dada pela torcida do Corinthians, ressentida pelo fato de não possuir a maior torcida do Brasil. Vira e mexe, somos obrigados a assistir na TV torcedores (e até mesmo pseudo-jornalistas) corintianos afirmando que a torcida do Flamengo não é a maior, pois “ela é grande no Norte e no Nordeste, onde o cara torce pelo Ceará e pelo Flamengo, ou pelo CSA e pelo Flamengo”. Trata-se de uma visão míope sob duas óticas. Primeiro, como eu disse anteriormente, parece que a torcida do Corinthians se esquece de que hoje eles também são uma torcida nacional, portanto existem centenas de milhares de “torcedores do Fortaleza e do Corinthians, do Avaí e do Corinthians”. Eu mesmo conheço alguns. Segundo porque o fato de dividir seu amor (em proporções diferentes, é bom ressaltar) entre um time do coração e um time da terra-natal é uma característica intrínseca ao torcedor de futebol, e não existe mal nenhum nisto. Não me canso de dar o exemplo de que, certa vez, conheci um italiano morador da cidade de Veneza, torcedor do Venezia, mas ainda mais fanático pela Juventus de Turim! Este colunista que vos fala é outro que, sendo natural da cidade de Volta Redonda/RJ, nutre um enorme carinho pelo Tricolor de Aço – mesmo sendo um time do mesmo estado e que participa da mesma competição que o Flamengo. Ora, foi lá que eu nasci e cresci, o que posso fazer? A questão é que quando um pesquisador aborda um torcedor, ele deixa bem claro que a resposta a ser dada é “qual o seu PRIMEIRO time”. Sendo assim, a maioria dos torcedores que torcem pelo Flamengo e pelo Moto Clube, têm o rubro-negro como time do coração, e é isso que interessa. Os paulistas não conseguem enxergar isto por conta de um bitolamento que só os permite enxergar o que acontece na realidade da região metropolitana de São Paulo – com seus vultosos 18 milhões de habitantes. Lá, o time do coração e o time da terra-natal convergem. Sendo assim, o torcedor da capital só tem um time, igualzinho na cidade do Rio de Janeiro, em Belo Horizonte ou em Porto Alegre.
Tendo abordado estes dois aspectos, podemos retomar a questão que envolve a torcida do Flamengo no interior do Brasil. Como existem rumores de que nosso projeto sócio-torcedor está para sair do papel (conforme se verifica no edital de licitação de material esportivo, tema de minha coluna da semana passada), é de suma importância que este projeto respeite a característica nacional da Maior Torcida do Mundo, dispensando tratamento especial para a chamada “torcida off-Rio”. Talvez pensando nisso é que o nosso projeto provavelmente não seja baseado na facilidade de adquirir ingressos – como é o caso dos clubes gaúchos. No Sul, queiram ou não, 90% dos torcedores se encontram em seu estado de origem, facilitando o deslocamento caso haja interesse de assistir aos jogos no estádio. Como este não é o caso do Flamengo, é mais inteligente que nosso projeto sócio-torcedor seja baseado na disponibilização de brindes e produtos oficiais.
Minha preocupação com a “torcida flamenguista do interior” não é sem motivo. Passeando por um sem-número de pesquisas, a análise deixa bem claro que quanto mais afastado da capitais – seja qual estado for – maior o número de rubro-negros. Talvez isto configure um verdadeiro “axioma rubro-negro”, tão forte quanto aquele que diz que nossa torcida se concentra nas classes mais baixas da população – o que não quer dizer que não sejamos também a maior torcida entre os mais ricos e os mais estudados.
A começar pela última e mais abrangente pesquisa realizada, a Datafolha/2008 (http://datafolha.folha.uol.com.br/po/ver_po.php?session=538), percebemos que o que eu disse é verdade até mesmo para o próprio estado do Rio de Janeiro. Na capital fluminense, o Flamengo é o time preferido por 43% da população. No estado como um todo, este percentual sobe para 46% - três vezes maior do que a torcida do Vasco! Só de puxar para cima o número de torcedores em representativos 3 pontos percentuais – possuindo apenas 2/3 da população do estado – o interior do Rio mostra que é amplamente dominado por torcedores do Flamengo.
Fora do nosso estado de origem, o mesmo acontece. Confiram um cálculo feito por mim para a configuração de torcidas do estado de Minas Gerais, me baseando nas informações da pesquisa Datafolha e do jornal “O Tempo” (http://www.otempo.com.br/otempo/noticias/?IdNoticia=66651):
Grande BH: (5 milhões de habitantes)
38% Cruzeiro = 1,9 milhão
34% Atlético = 1,7 milhão
1% Flamengo = 50 mil
Estado de Minas
Cruzeiro = 5,6 milhões (29%)
Atlético = 3,5 milhões (18%)
Flamengo = 1,75 milhão (9%)
Resto do estado (ou seja, estado MG - região metropolitana)
Cruzeiro = 3,7 milhões
Atlético = 1,8 milhões
Flamengo = 1,7 milhões
Ou seja, mesmo com dois times fortes, tradicionais e competitivos em seu estado, o Flamengo bate de frente (e empata com o Atlético Mineiro) até na condição de forasteiro.
Em outros “interiores”, a maioria torna-se esmagadora. Em Santa Catarina, o Flamengo sai de 12% em Florianópolis (contra 16% do Figueirense) para 16% no estado todo, 3 pontos percentuais acima do více-líder Grêmio (e o Figueirense some do mapa, atingindo míseros 2% em seu estado-natal). No Ceará, o Flamengo atinge 13% dos torcedores da capital Fortaleza, ficando pouco abaixo dos times locais (Ceará e Fortaleza). Novamente, no estado como um todo, assumimos a liderança com 17% dos cearenses, contra 8% dos dois times citados. Mas é na Bahia que nossa presença no interior torna-se verdadeiramente impactante. Enquanto 40% dos moradores de Salvador torcem pelo Bahia (e 22%, pelo Vitória), no estado como um todo o Flamengo atinge incríveis 21%, deixando para trás o Tricolor baiano (16% no total). Falar nos outros estados do Nordeste, Norte, Centro-Oeste ou Espírito Santo é chover no molhado. Sendo assim, preferi terminar minha análise com dois estados de características peculiares: Paraná e Pernambuco.
Cultural e geograficamente, uma parte significativa do estado das araucárias pode ser vista como uma extensão do estado de São Paulo. Não a tôa, o Paraná é um dos únicos estados brasileiros que não tem maioria rubro-negra. Lá, a maior torcida é a do Corinthians, e a nossa ocupa apenas a sexta posição, com 6,2% do total (http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/esportes/conteudo.phtml?tl=1&id=840219&tit=Capital-usa-diplomacia-no-interior). No entanto, o mesmo movimento verificado em estados tipicamente rubro-negros também se enxerga por lá. À medida com que nos afastamos da região metropolitana de Curitiba (onde temos apenas 2,5% da torcida), nossa participação vai subindo a ponto de, no interior do Paraná, ocuparmos o posto de quarta maior torcida com 8% do total, perdendo apenas (e por pouco) para o trio-de-ferro paulistano. Mesmo num estado com pouca ligação com o Rio de Janeiro, o Flamengo possui uma torcida que é maior do que a torcida do Santos no estado de São Paulo. E em quatro cidades litorâneas do Paraná, a maior torcida é a do Flamengo, como podemos verificar na reportagem do jornal Gazeta do Povo, responsável pela maior pesquisa de torcidas já realizada na história (mais de 100 mil entrevistados): http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/esportes/conteudo.phtml?tl=1&id=840224&tit=Paranagua-se-rende-ao-mais-querido-do-pais .
Já o estado de Pernambuco também se destaca por uma cultura de apego às tradições e por refutar tudo aquilo que vem de fora. Talvez por isto seja o único estado do Nordeste que tem um time local (o Sport) como maior torcida. Apesar disso, o Flamengo também cresce quando migramos para o interior do estado, saindo dos 2% em Recife para 7% no estado como um todo. Neste caso, salta aos olhos o fato de uma outra pesquisa ter sido realizada no ano passado pela federação Pernambucana de Futebol. Nela, o Flamengo apareceria com apenas 3,9% da torcida total do estado. Não dou credibilidade alguma a esta pesquisa, uma vez que neste caso, ocorre um conflito de interesses: é mais do que evidente que seria vantajoso para a federação local valorizar seus três principais times (Sport, Santa Cruz e Náutico). É o que aconteceu nesta pesquisa, onde o trio de Recife ocupa a ponta das preferências do estado, em clara oposição ao que diz o Datafolha, o Ibope e todas as outras pesquisas sérias já realizadas. Mesmo assim, achei interessante o fato de mesmo uma pesquisa “viciada” ter mostrado o Flamengo como a maior torcida de parte do interior de Pernambuco - no caso as regiões do São Francisco e do Sertão pernambucanos (http://www.fpf-pe.com.br/pesquisa2008.asp).
Após esta longa e tediosa explanação, espero ter deixado claro o importante papel desempenhado pela torcida do Flamengo no interior do Brasil, posto que vivemos um interessante fenômeno de “rubro-negrização interiorana”. Parte desta explicação pode ser dada pelo fato de haverem 25 milhões de antenas parabólicas em operação no Brasil (comuns no interior e em cidades de geografia acidentada - http://www.gazetamercantil.com.br/GZM_News.aspx?parms=2320588,13,1,1) levando para todo o território nacional os jogos do Flamengo transmitidos pela Globo. Mas a paixão pelo Flamengo não pode ser apenas explicada por um dado ou estatística fria. Ela é fruto de um fascinante fenômeno de massas. E é urgente que este fenômeno seja bem explorado pela diretoria do clube neste calamitoso período de crise financeira por que passamos.
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