No dia do último tri, eu estava...
E escrevi, à época, as seguintes linhas, que não poderia escrever melhor agora.
Segundos eternos
Quarenta e dois minutos do segundo tempo. O Flamengo vence o Vasco por dois a um. Placar insuficiente para ser tricampeão. O tempo se esvai, mas a torcidarubro-negra não sai do estádio. Porque acredita. Acredita pois aprendeu a crerno possível e no impossível, acredita na mística da camisa, acredita que, maisque ninguém, ela merece aquele título. Acredita porque viu um time com raça,característica que acompanhou o Flamengo em todas suas grandes conquistas, seimpor sobre um Vasco de quem se insiste dizer ser superior na qualidade técnica,mas que mais uma vez acovardara-se, apequenara-se ante ao rival. A torcidaacredita, enfim, porque é Flamengo. Porque dela nascem os milagres. E sabe que oFlamengo não irá decepcioná-la.
Quarenta e dois minutos, vê Zagallo em seu relógio. Coça a cabeça, segura aimagem de Santo Antônio de Pádua. Rege a reza das arquibancadas. O comentaristaWashington Rodrigues, rubro-negro confesso, tem a visão: "Acaba de chegar noestádio São Judas Tadeu". Não podia ter mais razão. A torcida do Flamengo,ritualmente, balança as mãos. Sabe que aquela é a hora. Aquela ou nenhuma outra.
Os jogadores também sabem. Edílson, artilheiro do campeonato, autor dos doisgols do jogo, aproxima-se daquele que vai cobrar a falta. "Você está se sentindobem? Porque se não estiver, toca pra mim que eu entro na área e faço o gol. Setiver, cobra a falta. Mas decide essa p...". O cobrador ouve. Ele está bem. Jásimulou esse momento várias vezes, quando no treino seus companheiros diziam:Finja que essa é a última falta no último momento do campeonato. Invariavelmenteconvertia. Mas agora era a vida e a morte. Era a falta.
Vestia a camisa 10, o cobrador. A mesma camisa que imortalizara Zico noscorações rubro-negros, que antes do Galinho fora de Dida, herói do segundo tri.A mesma camisa que se imortalizara com seus donos, que tinha uma místicaprópria, a mesma camisa que vestia Rodrigo Mendes ao marcar o gol do título em1999, o título que em primeiro lugar proporcionara estar em jogo ali umtricampeonato. Vestia, enfim, a mais tradicional camisa do mais tradicional dosclubes do Brasil. E tinha que honrá-la, tinha que imortalizá-la mais uma vez,mais que isso, tinha que imortalizar-se vestindo-a.
Já quarenta e três minutos. O cobrador, Dejan Petkovic, eis seu nome, avançapara a bola. Chuta, com seu pé direito. Segundos eternos conduzem a bola ao gol.O goleiro cruzmaltino Hélton se estica, pula, faz o possível. Não é suficientepara conter a cobrança perfeita do camisa 10 da Gávea. Entre a mão de Hélton e otravessão, a bola entra no único espaço possível. É gol. Gol da camisa 10. Golde Petkovic. Gol do Flamengo. Gol do tricampeonato.
A torcida explode. Chora, ajoelha-se, agradece. Do outro lado do Estádio MárioFilho, os vascaínos, que jamais compreenderão o que é Flamengo, que jamaisaceitarão a mística de seu manto, observam, assombrados. Boquiabertos. Naquelessegundos eternos, o título muda de dono, o sonho do tri torna-se real, e otri-vice-campeonato do time da Cruz de Malta, a dura realidade com a qual seustorcedores terão de viver.
O artífice dessa desilusão de um lado, e da explosão de júbilo do outro, aindanão acredita no seu feito. Crê, modestamente, que sua bola bateu no lado de forada rede. A comoção das arquibancadas, uníssona àquela de 35 milhões detorcedores, o traz à doce realidade. A bola tocara a rede, mas do lado dedentro. Ele a podia ver, descansando atrás da linha da meta de Hélton.
É a vez do craque explodir em júbilo. Corre para a beira do gramado e deixa-sequedar sobre o palco de seu triunfo. É coberto pelos companheiros, que celebramo feito do novo imortal rubro-negro. É coberto pela torcida, que para sempreguardará o feito de Pet, carinhoso apelido que não espelha a grandeza de seugol, na memória e no coração.
Quarenta e quatro minutos. O placar marca, Vasco 1, Flamengo 3. Zagallo beija osanto, vê que a fé compensa. Petkovic ergue-se do gramado. A torcida vascaínadeixa o estádio, o jogo se reinicia. Cinco minutos depois, nova explosão. Fim dojogo, Flamengo tricampeão. Nada mais importa agora. A cidade pode vestir-se devermelho e preto e celebrar seu novo rei. E tanto ele quanto ela irão sercapazes para sempre de recordar-se dos segundos eternos de Dejan Petkovic, ossegundos eternos do Flamengo.
Rodrigo Rötzsch, 26, é jornalista, carioca, e rubro-negro _não necessariamente nessa ordem.
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