terça-feira, 12 de junho de 2012
Alfarrábios do Melo
Saudações
flamengas a todos.
Enquanto
o Papai Joel começa a ser “aconselhado” a promover os garotos da
base e assim vai se dependurando no cargo, a diretoria (hã?) segue
apavorando fora de campo, dando mostras cada vez mais cristalinas de
seu notório e absurdo despreparo. Se colocar uma banca de revistas
na mão desse pessoal, a banca quebra.
Enquanto
isso, deixo o último texto da série que lembra o centenário do
futebol do Flamengo. Do MEU Flamengo, do Flamengo de uma Nação, não
dessa coisa caricata que se entranhou na Gávea. Boa leitura.
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1912.
O carioca inicia o mês de maio ainda sob o impacto da tragédia do
colossal Titanic, “o navio que nem Deus afunda”, e que afundou
alguns dias antes, matando centenas. As notícias que cobrem as já
infrutíferas tentativas de resgate de sobreviventes e corpos, e a
apuração das responsabilidades já parecem gastas, mas ainda chamam
a atenção. Porém, a cidade segue sua vida, e causa curiosidade o
anúncio dos jogos que darão início ao cada vez mais concorrido
Campeonato Municipal de Futebol.
Nas
Laranjeiras, o campeão Fluminense irá receber o Rio Cricket de
Niterói, mas a expectativa maior está voltada para a estréia do
time de futebol do CR Flamengo, considerado o grande favorito para a
conquista do título, por conta do fortíssimo elenco que migrou das
Laranjeiras. Causou sensação um jogo-treino disputado no campinho
da Praça do Russel, onde o rubro-negro derrotou o bom time do
América, sob o olhar de inúmeros curiosos. E o adversário da
primeira partida está longe, muito longe de assustar.
O
Sport Club Mangueira é um clube incipiente, formado por funcionários
que trabalham na fábrica Chapéus Mangueira. Treina em um campo na
Rua Desembargador Isidro, na Tijuca, nas imediações do local onde
futuramente será erguido o Maracanã. Está de volta à Primeira
Divisão após uma participação desastrosa na temporada de 1909,
onde chegou à lanterna com todas as honras, com direito a sofrer uma
apocalíptica derrota (24-0) para o Botafogo, naquela que terá sido
a maior goleada da história do futebol brasileiro. Usa as cores
rubro-negra em listras verticais (uniforme parecido com o do AC
Milan), e curiosamente seu time exala confiança. Os jornais publicam
notas apregoando a motivação dos mangueirenses em atuar em
igualdade contra o Flamengo de Borgerth, Gustavo e Píndaro. Uma vez
que o SC Mangueira não possui campo próprio, a partida é marcada
para a antiga sede do Haddock Lobo FC, que acabara de se fundir com o
América, na Rua Campos Sales, também na Tijuca.
Sexta-feira,
03 de maio, início da tarde. Os primeiros espectadores começam a se
acomodar nas frias arquibancadas do estadinho da Campos Sales. Um
vento gélido e ameno uiva persistente, parecendo querer desencorajar
a aventura tijucana. O cheiro de grama molhada invade penetrante almas e corações, como que deixando marcas profundas,
indeléveis, sensações inolvidáveis. Há lama, há barro
amalgamado no piso que será, daqui a instantes, enfim aberto para a
prática do desporto.
Chove.
Afugentada
pelo mau tempo, a assistência não é numerosa, mas ainda assim
chama a atenção, coisa de 800 pessoas, algo notável diante do
clima. Sem alarido, o grupo balbucia conversas paralelas, aguardando
o início dos trabalhos num silêncio que só é quebrado quando
finalmente as duas equipes adentram o gramado. O Flamengo alinha com
Baena, Píndaro e Nery, Curiol, Gilberto e Galo, Baiano, Arnaldo,
Amarante, Gustavo e Borgerth. Vai começar o jogo. Vai começar tudo.
O
procedimento se dá através das mãos do ilustre atleta Belfort
Duarte, que terá a honra de apitar o cotejo. O apito estrila um
choro forte, estridente, ouvido em todo o Rio de Janeiro. Nasce o
futebol do Clube de Regatas do Flamengo.
E
o bebê já nasce forte e saudável. A saída de bola é executada
com um toque para a defesa, no lado esquerdo. O irrequieto Galo
recebe e aciona Gustavo, já na meia-esquerda. Gustavo vira o corpo
e, de primeira mesmo, acerta belíssimo lançamento para Arnaldo, que
corre na extrema-direita. Arnaldo estica, vai até a linha de fundo e
cruza rasteiro, para trás. Gustavo, que acompanha o lance, vem na
corrida e emenda rasteiro, forte, indefensável. O Flamengo faz 1-0.
O
Mangueira dá a saída, rapidamente a bola é retomada, e o Flamengo
volta à carga. Após uma saraivada de golpes, onde a bola pererecou
teimando em espirrar aqui e ali, percorrendo toda a área
mangueirense, enfim Gilberto encontra Gustavo livre, e o artilheiro
novamente confere, dessa vez com um toque sutil.
Com
dois minutos de vida, o Flamengo já vence por 2-0.
Após
a incontestável demonstração de força, o rubro-negro reduz o
ritmo e resolve retribuir um pouco do carinho da platéia, com
algumas jogadas de efeito e toques elegantes. O Mangueira se aboleta
em seu campo, resignado. Após perder inúmeras chances por conta de
um certo preciosismo, o Flamengo novamente volta a produzir gols,
dessa vez com Arnaldo, aos 24' e aos 30', ambos completando bela
trama no ataque rubro-negro. O Mangueira, de forma inacreditável,
consegue diminuir quando seu atacante Octavio acerta uma bomba de
longe, surpreendendo o distraído Baena, já aos 35'. Dois minutos
depois, Gustavo amplia, e nada mais acontece na primeira etapa, que
se encerra em 5-1 para o Flamengo, que causa boa impressão ao
público.
Mas
há mais. Se o primeiro tempo mostrou-se incrivelmente
desequilibrado, a segunda etapa será a materialização de um
massacre, um encouraçado ombreando um bote. O irreverente Galo abre
os trabalhos logo aos 5' e a seguir o center-forward (centroavante)
Amarante irá executar um brilhante solo, anotando três gols em
fileira, aos 8', 9' e 15'. Pouco depois, aos 18', o Flamengo atinge
seu décimo gol, por intermédio de Arnaldo.
Após
alcançar os 10-1, o Flamengo volta a reduzir o ritmo, abusando dos
toques e firulas, que assanham o público. Galo, sempre imparável,
dá um chapéu, toca a bola e se curva para receber aplausos. Animado
com o afrouxamento flamengo, o Mangueira finalmente consegue trocar
alguns passes, e consegue uma falta próxima à área, após jogada
individual do médio Plaisant. O atacante Levy cobra forte, um belo
chute sem chance para Baena. O Mangueira chega ao segundo gol. 10-2.
O
golpe irrita os jogadores flamengos, que voltam à carga, dessa vez
com fúria. O time agora quer marcar o maior número de tentos
possível, quer fazer estatística já no primeiro jogo. Agora
Gilberto e Curiol (os craques do jogo) não perdem uma mísera bola e
abastecem alucinadamente o ataque. Desnorteado, o Mangueira se segura
como pode, ajudado pelo lamaçal que se forma na sua pequena área.
As poças d'água salvam um, dois, três gols flamengos. O goleiro
Moggey esbraveja, dá cambalhotas, pula de um lado pro outro, é um
espetáculo à parte. Os gols voltam a aparecer, primeiro com
Gustavo, aos 28', depois com Arnaldo, aos 32'. Já vencendo por 12-2,
o Flamengo ainda desperdiça dois pênaltis. No primeiro, Galo
exagera na pose e chuta fraco, Moggey defende. No segundo, Baiano
escorrega na hora do chute e a bola vai pra fora.
Os
contratempos não desanimam o time, que parte para o assalto nos
minutos finais. Aos 34' Amarante marca o décimo-terceiro. Dois
minutos depois, Borgerth se cansa de apenas servir os companheiros e
ele mesmo arrisca um chute de longe, é o gol catorze. Gustavo, o
artilheiro da tarde, marcará seu quinto gol aos 38' e por fim
Borgerth, no último lance da partida decretará o placar a ser
repetido em inúmeros livros e almanaques: Mangueira 2-16 Flamengo.
A
criança já se mostra grande ao nascer, em breve virará adulto. O
Flamengo, ainda inebriado, irá lambuzar-se com sua grandeza e irá
perder dois campeonatos bobos, até assumir seu lugar de direito e
destino, com o bicampeonato de 14-15. O SC Mangueira seguirá sendo
surrado pelos times maiores (no segundo turno o Flamengo quase
repetirá o escore, parando em “apenas” 14-0), até fechar as
portas em 1927 (o maior feito de sua história será um 0-0 contra o
Fluminense, em 1917). Mas a região seguirá em evidência, por conta
de um grupo de samba que está começando a se organizar.
Gustavo
(ou Gustavo de Carvalho), o grande personagem da estreia, ainda
atuará em algumas partidas, mas logo se afastará para concluir seus
estudos. O mirrado e baixinho atacante (alguns o chamam de
Gustavinho) retornará em 1917, quando marcará também o primeiro
gol do Flamengo em uma partida internacional, no empate em 1-1 com o
argentino CS Barracas. Anos mais tarde, assumirá a presidência do
Flamengo e será o responsável por reerguer o clube após grave
crise, terminando de montar uma das maiores equipes da história
flamenga e conquistando os títulos de 1939 e o primeiro tri.
E,
cem anos passados, o Flamengo, o verdadeiro Flamengo continua
irreverente, encharcado, enlameado, forte, vencedor e querido. E os
oitocentos brotaram, e se multiplicaram, e povoaram uma cidade, um
país, uma nação.
Uma
nação que, por mais que acossada, jamais envergada.
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