terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas, mais uma vez desejando que 2012 seja um ano vitorioso e pleno para todos nós. Os rumores sobre a vinda de Wagner Love aumentam, espero que já tenham combinado com os russos.


Falando em russos, vou deixar aqui uma pitoresca passagem que agitou uma das pré-temporadas do Flamengo, mostrando que essa época do ano até pode (ou podia) às vezes despertar algum interesse. Boa leitura.



Yashin no Flamengo



1965. Após curto período de férias para as festas de fim de ano, o Flamengo retoma as atividades, tendo em vista a temporada que está prestes a iniciar. Sem grande capacidade de investimento, o time aposta suas fichas na já experiente base formada pelo goleiro Marcial, os zagueiros Ditão e Ananias e a dupla de médios Carlinhos e Nelsinho. Para o ataque, o veterano Evaristo retorna após vitoriosa passagem na Espanha. Mas o restante do elenco é formado por jogadores limitados, como Berico, Fefeu e Paulo Choco. Parece pouco para disputar títulos contra equipes como Santos, Botafogo e Palmeiras. Para complicar, o treinador Flávio Costa, já caminhando para o terceiro ano no cargo, já começa a se indispor com alguns jogadores do time, especialmente o atacante Aírton Beleza, e suas convicções passam a ser contestadas de forma mais veemente por setores da imprensa, e mesmo do clube, especialmente diante das perdas do Campeonato Carioca e da Taça Brasil, no final da temporada anterior. Mas um fato irá agitar a Gávea, desanuviando um pouco um ambiente que teima em se manter duro, pesado.

 
Com surpresa e certa incredulidade, os jornais cariocas anunciam que está confirmada a vinda do mitológico goleiro Lev Yashin ao Rio de Janeiro para passar férias, após receber autorização do governo soviético. Trata-se de um monstro sagrado do futebol internacional, um goleiro que transmite extrema segurança na saída de gol, e principalmente encanta com uma elasticidade absolutamente invulgar. Grande e alto, assusta com uma envergadura que lhe vale o apropriado apelido de Aranha Negra, em função de seu uniforme totalmente preto e de seu tamanho. Yashin está no auge de sua forma física e técnica, tendo sido o único goleiro a conquistar o prêmio de melhor jogador do futebol europeu (célebre honraria conferida pela revista France Football), um ano antes. É, de longe, o melhor goleiro da Europa e do planeta. Uma megaestrela, um superstar, um sujeito que, mesmo do alto de seu pedestal de sumidade, escolhe o Brasil para seu período de descanso, por um prosaico motivo, “quero tentar entender porque os brasileiros são tão bons no jogo de bola.”


Com 15 dias de atraso (em função de uma inesperada enfermidade de sua esposa), Yashin desembarca no Rio de Janeiro, sendo recebido com todas as honrarias e cobertura de superastro. Muito requisitado para entrevistas e programas de TV, o Aranha Negra desde cedo mostra-se disposto a manter seu programa de treinamentos, não quer perder a forma. Yashin treinará no Flamengo, cujo acolhimento já havia sido acertado com antecedência, num eficiente trabalho de sua diretoria. Pretende-se aproveitar o período para que o soviético transmita alguns ensinamentos aos goleiros do elenco flamengo, um verdadeiro intercâmbio.

 
A ideia inicial é fazer Yashin atuar pelo Flamengo em alguns amistosos, mas desde cedo Flávio Costa se mostra reticente. O time está em preparação e precisa de resultados, não é hora para festejos. Além disso, o período de permanência do goleiro, previsto para um mês, é encurtado por conta do atraso na chegada, e Yashin teme não entrar em forma a tempo. Assim, o Aranha Negra ficará mesmo treinando e participando de algumas atividades na Gávea.


E assim acontece. Sempre sorridente, sempre vestido com uma camisa do Flamengo, encantado com o calor, a cidade e o carinho do povo carioca, Yashin se mostra solícito às abordagens. Alguns treinos são filmados, acompanhados por uma multidão de curiosos, que se impressionam com o tamanho e a agilidade do gigante russo. Paciente, Yashin orienta os goleiros Marcial, Franz e Marco Aurélio, mostra-lhes segredos, atalhos, dicas e manhas. Mas é um outro discípulo, um jovem goleiro que ainda está para sair dos juniores, que acompanha tudo com extrema atenção, concentrado, olhos esbugalhados, fome e ânsia de aprender, absorver.


Enquanto Yashin é um dos assuntos do verão carioca, o Flamengo viaja a Goiânia, onde conquista um torneio local, ao superar o Vasco na decisão. O rubro-negro tem viagem marcada, irá ao Peru excursionar, último compromisso antes do Rio-São Paulo, que deverá iniciar logo após o Carnaval. O título conquistado em cima do rival amacia o ambiente, e é com astral renovado que a equipe viaja para Lima. Algumas especulações já dão conta de que o Flamengo está interessado na contratação do polêmico atacante Almir, mas a coisa ainda irá render alguns meses.


E assim, quinze dias após seu desembarque, Lev Yashin, o Aranha Negra, o mitológico gigante soviético, volta a Moscou para dar prosseguimento à sua carreira. Extremamente bronzeado e incapaz de remover seu magnético sorriso estampado no rosto, Yashin mostra-se marcado e impressionado com a experiência curta e intensa vivida no Rio de Janeiro. Sabe que, provavelmente, jamais terá acesso às demonstrações de idolatria demonstradas pelo quente e amoroso povo do Rio de Janeiro. E especialmente pela Nação Flamenga, que lhe entope de bandeiras, camisas e flâmulas. “Nunca vou esquecer o Brasil. Nunca vou esquecer o Flamengo.”

 
A passagem de Yashin deixará frutos. O jovem goleiro que tanto se concentrara nas aulas do Aranha Negra irá crescer. Não ficará no Flamengo, será transferido, sem oportunidades. Mas vencerá. Evoluirá na carreira, ganhará a posição de titular do Atlético-MG, conquistará títulos. Será campeão brasileiro e um dos principais nomes do time mineiro. Voltará ao Flamengo. Será campeão pelo rubro-negro, depois pelo Fluminense, por fim pelo Bahia. Será goleiro de Seleção, irá à Copa do Mundo. Campeão por onde terá passado, vencedor e líder, Renato mostrará ter assimilado muito da filosofia transmitida por Lev Yashin.


Cerca de quatro anos mais tarde (por volta de 1969), o Vasco viaja a Caracas, e em um dos amistosos encontra-se com o Dynamo Moscow, time de Yashin. Trêmulo e ansioso, o goleiro vascaíno Valdir vislumbra o momento em que irá se encontrar com o ídolo maior. Os times entram em campo, Valdir leva uma flâmula do Vasco. Cogita entregar a Yashin uma camisa cruzmaltina, um presente. Aproxima-se do mito, mal consegue balbuciar algumas palavras de admiração em inglês. Muito educado e simpático, Yashin estende um magnético sorriso e responde, num surpreendente e claro português:


Gosto muito do futebol brasileiro e do Vasco, mas torço mesmo é pelo Flamengo. Boa sorte.”



Narrativa desenvolvida a partir de trecho do livro “A Bíblia do Flamengo”, de Luís Miguel Pereira.



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