sexta-feira, 27 de maio de 2011

O Impossível

*Por Gustavo de Almeida

Em 27 de maio de 2001 eu vivi três segundos estranhos na minha vida feita de trilhões de segundos. Foi quando em um segundo eu tive uma ilógica certeza quando deveria ter dúvida. No segundo seguinte, parei de pensar, mas só por um segundo. Eu não poderia alcançar o nirvana porque no terceiro segundo eu tive uma forte dúvida quando deveria ter certeza.

É claro que estou falando do gol que ora comemoramos. E dele já se falou tudo o que era possível falar. Porque é um momento para ser co-memorado pela imensa família rubro-negra agora e sempre. É a afirmação de Mark Twain, ou melhor, as duas afirmações. Uma, quando ele diz que “Eles não sabiam que era possível, por isso fizeram”, e a outra, mais famosa, “Os boatos sobre a minha morte são um tanto exagerados”. Sim, o Flamengo, São Judas Tadeu (que havia chegado segundos antes ao estádio, segundo Washington Rodrigues), Dejan Petkovic e todos os espíritos do Morro da Viúva eram dados como mortos, mas não sabiam que era impossível retornar deste degredo para onde Caronte levou. E por isso retornaram, com um disparo fenomenal, um segundo de certeza e dúvida, uma incredulidade revestindo o coração mais cheio de felicidade que já apareceu na Terra – o coração rubro-negro.

Foi assim mesmo: por um segundo, apenas um segundo, eu tive a certeza, eu e milhões de rubro-negros, que a bola entraria. Não sei de onde tirei a certeza, mas sei que veio na hora da última passada do Petkovic. Foram dois passos e o chute. Eu me lembro de que a certeza irracional veio no segundo passo, naquele décimo de segundo, a perna dele no ar, antes do chute.

Aí a bola seguiu, depois do impacto do pé. Lembrando agora, parece que durou minutos o chute. Porque naquele momento eu parei de pensar. Sabe quando você desmaia, por queda de pressão ou anestesia, mas acorda segundos depois e tem a sensação de ter sonhado, de ter dormido horas – mas na verdade foram apenas segundos? Pois foi assim. Não lembro da trajetória, o que todos nós pensávamos. Mas na hora em que a bola sacudiu a rede, de longe, e vimos tudo girar, vibrando e se derramando, houve essa coisa estranha de ter dúvida na certeza, de simplesmente não acreditar que aquilo havia acontecido.

Vivíamos o racionamento, e por conta disto o jogo havia sido às 15h. Como uma prima que até hoje mora no exterior estava no Rio e ia embora naquele domingo, nem cogitei ir ao Maracanã – queria me despedir dela, eu a via de anos em anos. Aliás, até hoje é assim.

Fui para a casa do então endiabrado – hoje mais light – Alexandre Lalas. Havia, como sempre, uma multidão no apartamento do Leblon. Multidão esta que se jogava uns nos outros, no chão, aos berros, enlouquecida diante do que havia acontecido. A lembrança mais sutil, doce e comovente foi ver o irmão do Lalas, Vinícius, diante da TV no minuto após o gol do Petkovic:"INVADE O CAMPO! INVADE A PORRA DO CAMPO, CARALHO, TOMAR NO CU, ACABA O JOGO, TEM QUE INVADIR".

Segundos depois desse berro, foi possível ver o nosso Beto, meio-campo sujeito homem, cracaço, tirando a camisa do Flamengo, enrolando na mão e chamando para a porrada todo o time do Vasco. Todo o time não. Chamou o time, os dirigentes, a torcida inteira, Aldir Blanc, Paulinho da Viola, Fernanda Abreu (ainda não havia a Lei Maria da Penha), Mário Soares, o fantasma de Salazar, José Saramago, o conjunto Madredeus e os funcionários do Adegão Português, todos, todos para a porrada. E todos amarelaram.
O jogo acabou e evidentemente comemoramos até altas horas. No Baixo Gávea, o ambiente parecia um santuário rubro-negro, com homens e mulheres felizes, subindo nas mesas, cantando o hino, derramando chope e luxúria. Não me lembro daquela segunda-feira. Jamais, em tempo algum, lembrarei daquela segunda-feira.

Mas eu, e você, todos nós, nunca, nunca esqueceremos aquele domingo. E que ele seja contado todos os anos, aos nossos filhos, aos nossos netos, como se conta a eles a história do Natal, da Semana Santa ou do Primeiro de Maio. O nosso 27 de maio é feriado universal.

É esta história verbal, passada de pai para filho, de irmão para irmão, de primos para primos, que faz o Flamengo – não apenas títulos, que estes, principalmente sobre o Vasco, são muito fáceis de conquistar. Pelo menos muito mais fáceis de ser tudo o que o Flamengo é.

Seríamos o mesmo Flamengo que somos hoje mesmo sem um título sequer.

Mas o grande paradoxo, e que torna os três segundos mais incompreensíveis ainda, é que a glória daqueles 43 minutos de 27 de maio nos ajuda a ser amais Flamengo ainda.

Impossível, mas nós não sabíamos.

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