terça-feira, 10 de maio de 2011

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos.

Flamengo é Flamengo”, assim falou Ronaldinho Gaúcho, nos momentos finais da novela que definiu sua ida para a Gávea, ganhando instantaneamente o apoio de robusta parcela de rubro-negros, muitos deles de finíssima cepa. Passados uns meses, alguns gols, dois turnos e um Estadual no bolso, o simpático fora-de-série dentuço começa a perceber todo o peso e a complexidade de sua sentença enganadoramente simples. Sim Ronaldinho, Flamengo é Flamengo, em toda a sua plenitude. E às vezes o caminho entre o pleno êxtase da semidivindade e o escuro limbo da execração pode ser muito curto, à distância de um drible mal dado ou de um gol perdido. E a mais eloqüente manifestação da Nação Flamenga é a vaia.

Atuar no Flamengo requer forte capacidade de absorver apupos e loas, muitas vezes desferidos com intensidade hiperbólica, nem sempre justa, nem sempre razoável. Mas ser Flamengo não é ser sensato, não é aceitar explicações lúcidas. Ser Flamengo é sentir o Flamengo, é demonstrar-se ao lado de uma Nação, é jogar junto, é sofrer derrotas na pele, é emocionar-se nas vitórias, é se amalgamar até a quase conversão, como o recente caso de amor vivido com Fábio Luciano. Encarar o Flamengo como “mais uma etapa”, “mais um clube” costuma redundar em fracasso certo.

E a Nação, tão generosa em alçar mericas, fios e obinas a um inverossímil estrelato, também pode se mostrar particularmente cruel. É o caso de Jair da Rosa Pinto, uma das poucas estrelas a luzir em um limitado time flamengo no final da década de 1940. Um dos melhores meias-atacantes do país (titular da Seleção), Jair era uma ilha de talento em um time onde vicejavam figuras como Job, Bodinho e Gringo. Um dia Jair (ou Jajá da Barra Mansa) comeu a bola em um rumoroso amistoso contra o Arsenal, em que o Flamengo meteu 3-1. Jajá, que marcou dois, saiu carregado de campo, virou estrela, celebridade e tal. Três meses e OITO jogos depois, o Flamengo vencia o Vasco, e Jair perdeu um gol absurdo, inacreditável. O Vasco reagiu e virou. Apontado como o responsável pela derrota, Jair saiu escorraçado da Gávea (consta que sua camisa foi-lhe arrancada e queimada). Nunca mais atuou pelo Flamengo.

Mas a pressão de atuar pelo Flamengo já era sentida nos primórdios do futebol. Em 1927, enquanto o clube tentava montar sua equipe para a disputa do Carioca, após escapar de polêmica suspensão, o zagueiro Penaforte, craque de seleção e uma das principais estrelas flamengas, anunciou que iria se casar e pediu ao Flamengo a troca de toda a sua mobília, recebendo a negativa da diretoria, às voltas com problemas de caixa. Amuado, Penaforte bandeou-se para o América, que lhe pagou o enxoval. Ironicamente, Flamengo e América acabariam decidindo o campeonato, e Penaforte sentiu o peso das vaias, ofensas e impropérios a ele dirigidos. Irreconhecível, foi presa fácil do ataque rubro-negro, falhando sistematicamente, até o ponto de marcar contra um dos gols da vitória (2-1) que deu o título ao Flamengo. Não satisfeita, a torcida rubro-negra ainda promoveu o enterro simbólico de Penaforte, nas imediações da sede do América, sob intenso alarido.

Nem mesmo o time da Era Zico, que construiu o período mais vitorioso da história do clube, escapou da pressão. A Nação demonstrava menos paciência com alguns jogadores específicos, como Tita, e cada atuação menos convincente daquela equipe fantástica era coroada com vaias ao camisa 7. Um certo individualismo, um temperamento polêmico (vivia querendo jogar com a 10 de Zico) e mesmo a lembrança do pênalti perdido em 1977 faziam a torcida mirar em Tita. Não são raros os momentos em que Tita comemora seus gols com explosões de raiva e até xingamentos. Ou mesmo nem comemora...

Outro alvo da torcida era Nunes. Nem mesmo os vários gols decisivos lhe serviam de salvo-conduto. Nunes era um goleador exímio, mas por vezes demonstrava afobação ao finalizar. Além disso, nunca foi um primor de técnica. Quando a bola não entrava, o João-Danado várias vezes acabava sendo o alvo de uma torcida mal-acostumada. Após a perda do título de 1982, acabaria “dando um tempo” na relação com o Flamengo (para onde voltaria em 1984). Para seu lugar veio Baltasar, artilheiro no Grêmio. Mas não adiantou. O Artilheiro de Deus era ainda mais afobado que Nunes, sem o carisma do antecessor. Rapidamente angariou as atenções, a crítica e a pressão antes dirigidos a Nunes e Tita (outro que saiu temporariamente em 1983).

Os tempos mais recentes mostram uma miríade de jogadores agraciados com vaias, casuais ou preferenciais, de forma que se poderia passar semanas comentando casos específicos, como Edu Marangon, Bobô, Bebeto (segunda passagem), Aílton, Juan Marrentinho, Jônatas, ou mesmo Júnior, volante de esquecível passagem (e futebol ainda menos digno de lembrança) nos anos negros (2004, 2005), que após uma sessão entorpecedora de vaias, saiu-se jocosamente com “eles vaiam porque sabem que eu tenho potencial”.

Hoje as vaias, ainda preferencialmente distribuídas ao voluntarioso (e estabanado) Wellington, aos limitados Alvim ou Egídio (quem estiver por ali) e ao estático Deivid já começam a soprar na direção de Ronaldinho. O dentuço mostrou vontade, determinação e razoável futebol na Taça Guanabara, sendo realmente importante para a conquista do turno. Depois, seu futebol caiu de forma assustadora e consistente, e isso não tem a ver com posicionamento em campo. O torcedor possui uma sensibilidade anormal para esse tipo de fenômeno. E percebe. E cobra. E no Flamengo, amigo, cai na vaia.

Então Ronaldo, está contigo. Você mesmo já sabe que “Flamengo é Flamengo”. Enquanto as bolas entrarem e as taças chegarem, tudo estará bem, mesmo com esse futebolzinho nike que você anda jogando. Mas, pela sua relevância e pela sua história, a Nação quer de você protagonismo. Liderança. Capacidade de trazer resultados positivos. E, principalmente, IDENTIDADE com nossas crenças e objetivos.

Mostre isso e serás semideus, sentando ao lado dos imortais. A alternativa? A vala comum destinada aos relegados. Justo? Racional? Não.

Simplesmente Flamengo.

Flamengo Net

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