terça-feira, 19 de outubro de 2010

Alfarrábios do Melo

Olá, saudações flamengas a todos. E chegou a bonança, após dez meses de tempestade... mas será que ainda haverá graça nesta temporada? Vai ter arrancada? (está parecendo). Seja como for, antes de deixar o texto da semana, permito-me dar dois pitaquinhos:

1 – Z-4 é o cacete;
2 – Quantos pontos nos separam do Fluminense mesmo?

Observando as recentes peripécias do nosso digníssimo Val Baiano, que, contrariando todas as expectativas enfim se mostrou útil e importante (a ponto de ser um desfalque lamentado por alguns, ora vejam...), lembrei-me de uma história semelhante, que também envolve descrença, superação e a incrível capacidade da Nação de encontrar ídolos nos jogadores mais insólitos (o Obina é um exemplo recente). E é essa trajetória, que vem lá dos tempos do primeiro tri, que conto agora. Boa leitura.

A Reviravolta de Quirino

1944. O ano mal se inicia e a torcida rubro-negra está apreensiva e assustada com os insistentes rumores de que seu ídolo maior, o zagueiro Domingos da Guia, está sendo negociado com o Corinthians. Os dirigentes flamengos negam veementemente a possibilidade e realmente não parecem muito dispostos a vender o craque. Mas, quando os paulistas desembarcam na Gávea e oferecem a assombrosa quantia de 700 contos de réis, um valor fora de qualquer referência no mercado da bola, a diretoria do Flamengo não se vê diante de outra alternativa. É muito dinheiro, e Domingos, já com 32 anos, já vislumbra próxima uma merecida aposentadoria (embora ainda atue em altíssimo nível). Assim, o negócio é fechado e a crise tem início.

Domingos era considerado uma das chaves para a busca do inédito tricampeonato estadual, que o Flamengo tentará na temporada. Seu estilo refinado, sua habilidade inverossímil para um zagueiro, sua capacidade de entortar atacantes adversários mesmo dentro de sua própria pequena área, arrancando suspiros em corações mais fracos (e nos mais fortes também), e acima de tudo a sua recusa em recorrer a chutões, tudo isso fez de Domingos um dos jogadores mais populares do país. Agora, o Flamengo se vê órfão do craque. Protestos na porta da Gávea, apupos nos primeiros jogos da temporada, uivos de lamentação. A Nação está triste. E desmotivada.

E a insatisfação aumenta quando se percebe que o substituto de Domingos será o esforçado Quirino. Revelado no Atlético-MG, Quirino foi parar no Bonsucesso e, por esses mistérios insondáveis da bola, chamou a atenção de Flávio Costa, que o levou ao Flamengo. Ao conferir as primeiras apresentações de Quirino, ninguém entende onde diabos o treinador estava com a cabeça. Totalmente desengonçado, quase dois metros de altura (e outros dois de largura), chuteira 44 bico largo, pés chatos e abertos, Quirino passa facilmente por um estivador, um leão de chácara. Jamais por um jogador de bola.

E desde cedo Quirino e a bola deixam bem claro a inviabilidade de qualquer tipo de entendimento. Agressivos, rejeitam-se mutuamente, é comum partirem para as agressões mútuas. Quirino espanca a bola sem dó, não quer contato, manda-lhe o mais longe possível. Sai daqui, e tome bicuda, porrada, espanada. Cheia de hematomas e sangrando, a bola se vinga, nega-se a Quirino, recusa-se a domesticar. E o agride com narigadas, caneladas, jocosamente passa-lhe entre as pernas, enfim. Assistir aos convescotes de Quirino com a bola é uma experiência deprimente, especialmente diante da intimidade lasciva de Domingos da Guia com a arte de jogar futebol. Preocupados, dirigentes acenam a Flávio Costa a possibilidade de trazer reforços. O treinador se recusa e banca Quirino. Fortes emoções estão à vista.

O início da temporada não é fácil. O Flamengo sofre várias derrotas, muitas delas contundentes, e o tricampeonato já começa a ser visto com pessimismo na Gávea. O ataque segue fortíssimo (com nomes como Zizinho, Pirilo, Perácio e Vevé), e o time ainda tem destaques como o goleiro Jurandir, o defensor Biguá e o médio Bria. Mas a defesa sente demais a falta de Domingos, que além de referência técnica era o refúgio moral da equipe, que sentia segurança no craque. Quirino logo é responsabilizado pelos maus resultados, é rejeitado pela torcida e ridicularizado pela imprensa. A diretoria age rápido e traz da Argentina o zagueiro Coletta, tentando solucionar o problema.

No entanto, Coletta não dá certo. Seu futebol é leve demais para um zagueiro, o sistema de marcação desmorona de vez. Sem falar que o argentino possui especial tendência a viver machucado, sempre desfalcando a equipe. Já com certa má vontade em relação ao reforço, Flávio decide manter Quirino no time. Vai ter que ser com Quirino mesmo.

O Flamengo começa bem o campeonato, mas sofre com desfalques e vai perdendo pontos importantes. Uma derrota contundente para o Botafogo parece por fim ao sonho do tri, mas após esse jogo o grupo, com os brios feridos, começa a enfileirar vitórias em seqüência, iniciando uma das já célebres arrancadas na reta final. E nesse entretempo, começa a se dar um fenômeno interessante: a massa rubro-negra, após se deliciar em risadas com a falta de jeito de Quirino, começa a perceber no zagueiro algumas qualidades. Com efeito, Quirino se atira aos lances de forma comovente, corre como um esfomeado, empapa a camisa de suor em cada treino, cada jogo, mesmo amistoso. A grande área é seu território, sua casa, e ninguém lá entra sem sua permissão, nem a bola. Não, ninguém corre mais que Quirino, ninguém folga com Quirino. Pode não jogar bola, mas demonstra um fervor quase religioso à camisa que defende. Ao perceber, o torcedor começa a ver Quirino com outros olhos. E o despreza. Mas se apaixona.

O Flamengo chega à última rodada precisando vencer o Vasco, na Gávea. A história todos conhecemos, o tri chega já perto do fim, na mitológica cabeçada do febril e aposentado Valido. Mas antes, no decorrer da partida, a zaga flamenga precisa se defender do verdadeiro bombardeio imposto pelo ataque vascaíno, que formará nos anos seguintes o “Expresso da Vitória”, o melhor time formado pelo bacalhau. Quirino agride a bola, mastiga e cospe fora de sua área nomes como Ademir Menezes, Lelé e Chico. É tosco. É rudimentar. Mas funciona. E emociona. A cidadela flamenga segue imaculada, e pela primeira vez no ano o Vasco sai de campo sem marcar gols. O Flamengo é tricampeão, graças ao sacro gol de Valido. E a heróis como Quirino.

Nas comemorações que varam as ruas do Rio, a Nação se curva em reverência a Zizinho, Valido, Perácio, entre outros. Mas, carinhosa e jocosa, confere ao humilde Quirino tratamento especial. Em transe, rebatiza o jogador, entoando um coro que se tornará famoso nos campos cariocas nas temporadas seguintes.

A partir de agora, é QUIRINO DA GUIA.

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