terça-feira, 21 de setembro de 2010

Alfarrábios do Melo

Olá, saudações flamengas a todos. Essa semana quero explorar um pouco de uma característica recorrente na história do Flamengo, a identificação com jogadores estrangeiros. Com efeito, ao longo do tempo vários forasteiros souberam honrar o Manto Sagrado, tornando-se ídolos. E hoje conto a trajetória do primeiro deles. Então, boa leitura.

Sidney Pullen, de carrasco a ídolo

1912. Nascido de uma cisão do elenco do Fluminense, o time de futebol do Flamengo se prepara para a disputa do Campeonato Carioca. Já no ano de nascimento é o favorito ao título, erigindo-se protagonista desde o início de sua existência. No entanto, para surpresa de muitos o time, após disputa muito equilibrada, perde o título para o Paysandu Cricket, por apenas dois pontos de diferença. E a perda dessa primeira conquista muito tem a ver com o desempenho de um jogador em especial: Sidney Pullen.

O Rio de Janeiro é habitado por uma numerosa e ativa comunidade inglesa, que possui participação expressiva no comércio e na indústria da cidade. Vários clubes são criados para o entretenimento dos forasteiros, e entre eles está o Paysandu Cricket, que se dedica à pratica de esportes tipicamente ingleses, como o futebol. Sediado na rua de mesmo nome (terreno de propriedade do Conde d’Eu), monta um time formado exclusivamente por jogadores ingleses, que se impõe pela força física e disciplina tática de seus atletas. Nas partidas decisivas contra o Flamengo, o Paysandu vence por 2-1 e, no segundo turno, segura o empate em 1-1 que lhe dá o título. Em ambos os jogos, o avante Sidney Pullen se destaca com gols decisivos, negando ao rubro-negro a glória de ser campeão no primeiro ano de sua existência (talvez daí venha a célebre sede flamenga por títulos e mais títulos).

A perda do campeonato tem efeitos imediatos. De imediato, o Flamengo tenta contratar Sidney Pullen, mas o inglês prefere permanecer no Paysandu. De qualquer forma, o namoro está iniciado. Alguns anos passam, e em 1914 o Flamengo enfim conquista o título da cidade. Além disso, a diretoria do Paysandu, incomodada com a má campanha e diante da necessidade de trocar de sede, decide fechar o departamento de futebol. Todos os seus jogadores estão livres. Entre eles, Sidney Pullen.

Em 1915, Pullen chega ao Flamengo, e logo conquista a todos com sua simplicidade, sem a fleugma e a frieza típica dos britânicos. Rapidamente conquista uma vaga na equipe, tornando-a ainda mais forte. Com uma facilidade constrangedora, conquista o bicampeonato, dessa vez de forma invicta, com destaque para goleadas como os 5-0 no Fluminense e 4-2 no América, os dois principais rivais. Sidney Pullen, atuando como center-half (algo como o camisa 10) forma uma dupla devastadora com o goleador Riemer.

Dotado de extrema mobilidade, o que o torna quase imarcável, Pullen é dono de uma mortífera perna esquerda, que coloca a bola onde quer. É verdade que não tem a ginga e a malícia do jogador brasileiro, características ainda em gestação no imberbe futebol dos anos 10, mas sua extraordinária capacidade de enxergar o jogo e colocar a bola onde quer, com assistências açucaradas e suculentas, é o que o distingue dos demais. Além disso, Pullen canta o jogo o tempo todo, orienta, motiva, esbraveja, é um verdadeiro líder. Rapidamente se torna a referência da fortíssima equipe flamenga e um dos seus jogadores mais admirados. Com o prestígio em alta, Pullen é chamado, em 1916, para integrar a Seleção Brasileira que irá disputar o Campeonato Sul-Americano, tornando-se o primeiro estrangeiro a vestir a camisa do Brasil. Até hoje, é o único.

Mas logo surgem percalços. O Flamengo começa a se ressentir do desgaste de sua primeira base de jogadores. Os primeiros heróis, como Gustavo, Borgerth, Gallo, Píndaro, estão envelhecendo ou simplesmente parando de jogar para se dedicar às suas profissões. O rubro-negro não consegue, num primeiro momento, reposições à altura e perde espaço para América e Fluminense. Além disso, no final de 1916, Sidney Pullen é convocado para servir ao exército inglês na Primeira Guerra, que devastava o solo europeu. O Flamengo é privado do seu melhor jogador, que embarca para a Grã-Bretanha numa despedida emocionante.

Pullen sobrevive às agruras da guerra, e em 1917 está de volta para defender o clube pelo qual já se apaixonou. O Flamengo ainda sofre com um período de transição, mas já começa a revelar jogadores como Junqueira, Candiota, Kuntz e Telefone. Em 1920, o time já está pronto para brigar novamente pelo título carioca.

E 1920 é o campeonato de Sidney Pullen. Motivado e no auge de sua forma física e técnica, o inglês gasta a bola na competição da cidade, arrancando uivos e suspiros de uma platéia cada vez mais embevecida. Versátil, atua como avante, meia avançado, meia recuado e até mesmo zagueiro, sempre desfilando sua visão de jogo aguçada e sua capacidade de consagrar goleadores. Como fizera com Riemer em 1915, Pullen faz do atacante Junqueira o principal goleador do Flamengo, que conquista de forma inapelável o campeonato, saindo de um jejum de cinco anos. É a consagração definitiva de Pullen, já alçado ao posto de ídolo da torcida do Flamengo.

Pullen seguiria jogando e conquistando campeonatos até 1923, ano em que abandonou a carreira, com um saldo de três títulos conquistados (1915, 1920 e 1921), 47 gols marcados e incontáveis assistências, além do carisma e da capacidade de liderança, que o fez figura extremamente querida nas hostes flamengas.

Em 1925, Pullen aceita o desafio de integrar o Ground Committee (a comissão técnica) do Flamengo, ajudando a montar aquele que talvez seja o primeiro grande esquadrão da história do Flamengo, uma máquina de jogar bola com vários jogadores de seleção, gente como Hélcio, Penaforte, Candiota, Nonô e Moderato, um timaço que não tomou conhecimento dos rivais, a ponto de conquistar o título carioca goleando o América por 4-0 no jogo decisivo.

Até o final de sua vida (nos anos 50), Sidney Pullen jamais se afastaria do ambiente do futebol. Carismático, transitaria livremente por vários clubes, sendo muito bem aceito em todos (costumava jogar tênis nas Laranjeiras). O Flamengo seguiria recrutando e sendo bem sucedido com jogadores estrangeiros, como Bria, Valido, Benitez, Garcia, Doval, Reyes, Petkovic e tantos outros, construindo uma sólida história e desenvolvendo na nação flamenga a capacidade de respeitar, reverenciar e idolatrar forasteiros que se destacam vestindo o Manto. Tradição que se iniciaria lá, no longínquo 1915, com aquele inglês pequeno, falastrão e bom de bola.

Um inglês alçado de carrasco a herói.

Flamengo Net

Comentários