terça-feira, 20 de julho de 2010

Alfarrábios do Melo

Olá, saudações rubro-negras. Mengão no G-4, maravilha, mas é bom ter calma. Ganhar do Botafogo (freguês) e do lanterna (jogando mal) são “façanhas” que devem ser relativizadas, embora mostrem que nosso elenco não é tão medonho assim.

Isso não quer dizer que estou pessimista com o time, longe disso. Pelo contrário, a luta e a competitividade da equipe estão impressionando bastante, e as vitórias vão dando confiança. E confiança é a chave para ter sucesso com o Manto. E esse Manto é pesado, muito pesado. Basta conferir a história que deixo a seguir. Boa leitura.

Grandes Jogos: Pelé no Flamengo

1979. O Brasil acompanha, estarrecido, à catástrofe que se abate sobre Minas Gerais. Um dilúvio de proporções bíblicas deságua durante 35 dias, cobrindo de água o Vale do Rio Doce e deixando 37 cidades ilhadas, centenas de mortos e milhares de desabrigados, naquela que é considerada a “Grande Enchente”, a maior tragédia da história mineira. Uma onda de solidariedade percorre todo o país, com campanhas de arrecadação de mantimentos e outras iniciativas, dentre as quais se destaca a realização de um amistoso no Maracanã, entre o campeão carioca e o campeão mineiro, Flamengo e Atlético-MG, renda revertida aos desabrigados. Mas a grande bomba ainda será detonada. Disposto a participar da corrente de auxílio à sua terra natal, Pelé aceita o convite de atuar 45 minutos vestindo a camisa do Flamengo.

Inativo desde 1977, quando encerrou sua vitoriosa aventura no futebol dos Estados Unidos, Pelé, aos 38 anos, segue em melhores condições do que muito garoto. Mas prefere curtir sua aposentadoria e sua vida de estrela, disseminando seu nome pelo mundo. No entanto, sensibiliza-se com a situação de seu estado e, ciente da força de seu nome, resolve ajudar a promover o amistoso, atuando pelo Flamengo. Será uma forma de viver uma experiência única. E que o marcará mais do que o esperado.

O Flamengo vive um excepcional momento. Após o histórico título de 1978, o clube enfim trabalha em paz, livre de cobranças e da desconfiança que pairava sobre Coutinho e seus comandados. O time constrói uma das mais impressionantes hegemonias que o futebol carioca já conhecera, conquista invicto o Primeiro Turno do Campeonato Estadual Especial e segue sem ser incomodado no Segundo Turno. Andrade, Adílio, Júlio César, Raul, Júnior e Rondinelli compõem uma virtuosa espinha dorsal de uma equipe onde vicejam a classe de Carpegiani e todo o talento genial do jovem Zico, que poucos dias antes do amistoso trucida o Goytacaz marcando SEIS gols em apenas um jogo. O desempenho rubro-negro acende forte debate, pois muitos já consideram o Flamengo o melhor time do país. E nisso já se vão mais de 30 jogos invicto (a série só será interrompida bem mais tarde).

Mas o Atlético-MG promete ser um rival à altura. O campeão mineiro mantém boa parte da base surgida no final dos anos 70, e que por pouco não conquistou de forma invicta o Brasileiro de 1977. Os principais jogadores deste timaço são João Leite, Luizinho, Cerezo, Paulo Isidoro e Ziza. É verdade que a estrela maior, Reinaldo, está ausente, abatido por sérios problemas no joelho. Mas o velho ídolo Dario, o Rei Dadá, é contratado para repor sua falta. O Galo está na “ponta dos cascos”, e o amistoso contra o Flamengo servirá para encerrar a pré-temporada, às vésperas do início do Campeonato Mineiro (atrasado por causa das chuvas).

Maracanã, noite de sexta, leve chuvisco. 140 mil pessoas lotam o estádio, sedentas pelo momento em que o Rei do Futebol enfim irá viver a mitológica paixão de ser rubro-negro. Num gesto de gentileza e reverência, Zico cede a Camisa 10 ao Rei e irá atuar com a 9. Mas isso pouco importa, diante da perspectiva de um recital inesquecível que se ensaia dali a instantes. Sob grande tumulto, o Flamengo entra em campo. Todos os olhos, todas as lentes, todas as luzes estão desviadas para Pelé. O estádio urra por Pelé, celebra Pelé, grita Pelé. E então o inimaginável acontece.

Pois Pelé, o craque dos 1300 gols, o homem que parou uma guerra, campeão do mundo cinco vezes, o atleta que estabeleceu um inédito paradigma de excelência no futebol, o craque que jogou em todos os estádios, ganhou todas as honrarias, encheu-se de condecorações, viu abertas à sua frente as portas mais restritas, desfrutou da companhia de reis, presidentes, estadistas e dos homens mais poderosos do planeta, Pelé está diante da torcida do Flamengo. Ouve, sente, vive a torcida do Flamengo. E se arrepia. E treme. Como um garoto.

Todos estão nervosos. O Flamengo reverencia Pelé, demora a entrar no jogo. Pelé também está cauteloso, tem medo de errar, dá toques curtos pro lado. O time não rende, erra passes, está travado. Os mineiros percebem e se aproveitam e numa jogada pelo lado esquerdo o atacante Marcelo emenda para as redes de Cantarele (Raul estava fora, machucado). Silêncio no estádio, Atlético na frente.

Paradoxalmente, o gol mineiro faz bem ao Flamengo. A equipe finalmente se solta, Carpegiani passa a ajudar Pelé nas jogadas de meio. E o Negão, mais calmo, começa a despontar. Primeiro, num passe sensacional de voleio a Júlio César. Depois, numa bela triangulação com Tita, que quase termina num gol de Zico. E ainda numa tabela espetacular com Zico e Carpegiani, que arrepia o Maracanã.

O empate amadurece. E Tita, após bela jogada individual, é atropelado pelo estabanado Osmar Guarnelli. Pênalti, o estádio pede Pelé, mas o Negão deixa a tarefa a cargo de Zico. Maroto, dirá ao final, “o time é dele, não meu, o certo era ele bater”. Zico cobra forte e empata, tornando mais justo o placar.

Após o empate, pouco acontece no primeiro tempo, que termina mesmo em 1-1. Na segunda etapa, Pelé dá lugar a Luizinho das Arábias, e Zico volta à ponta-de-lança. O espetáculo do primeiro tempo dá lugar à competição. Mais motivado e empurrado pela torcida, o Flamengo deixa o caráter amistoso de lado e vai pra cima, vai pra dentro. Desnorteia o adversário com seu ímpeto esfomeado, começa a erigir uma impensável goleada. O grande destaque é Júlio César, que incorpora Garrincha, a noite é realmente especial. O “urigeller” enlouquece e entorta quem aparece à sua frente, arranca risos de uma platéia embevecida. E os gols vão aparecendo: Zico devagarinho, Zico de barriga (após carnaval de Júlio César), Luizinho. Até Cláudio Adão, que anda em má fase e às rusgas com Coutinho, entra no final e faz o seu, numa bomba que rebenta na forquilha de João Leite. Em apresentação de gala, numa verdadeira homenagem ao futebol, o Flamengo faz 5-1 no Atlético-MG.

A amassada terá algumas conseqüências: o Flamengo passa de vez à condição de “time do momento”, “melhor do país”, a imprensa se desmancha à arte de Zico & Cia. Mas os atleticanos voltam pra casa humilhados, irritados pelo Flamengo ter esquecido o caráter amistoso da festa e seguido procurando mais e mais gols. Está plantada a semente daquela que virá a ser uma das mais ferozes rivalidades interestaduais do futebol brasileiro.

E Pelé? Dizem que “calado é um poeta”, mas após o jogo o Negão falaria sobre sua experiência, em depoimento à revista Manchete Esportiva. Alguns trechos são de uma precisão profética arrepiante:

“Nunca podia imaginar que uma torcida fosse mexer tanto comigo. Nunca vivi isso. Graças a Deus, pude ter a experiência de jogar no Flamengo. Jamais vou esquecer.”

“Jogar com o Zico me fez relembrar a época do Santos. Ele tem uma percepção absurda, dribla um zagueiro só com o olhar. Só os gênios fazem isso.”

“Esse time do Flamengo é o melhor do Brasil, sim. Dá gosto jogar com esses garotos. Quando pegar mais experiência vai ser um dos melhores do mundo. Tem tudo pra ir muito longe, alcançar o nível que a gente chegou lá no Santos.”

Palavra de Rei.

Flamengo Net

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