terça-feira, 9 de março de 2010

Alfarrábios do Melo

Olá, saudações rubro-negras a todos. Dias tensos na Gávea... Deixando as polêmicas de lado, essa semana iremos nos encontrar com um velho conhecido, o Vasco. Clássico sempre eletrizante, pela forte rivalidade que une os dois clubes. Assim, quero contar um pouco das origens dessa rivalidade, falando de uma partida antológica, que ficou marcada na história. Boa leitura.

O Basco é uma Putência!

1923. Após sete anos patinando na terceira e na segunda divisão do futebol carioca, finalmente a colônia portuguesa consegue ver sua equipe disputando a divisão principal. Resultado da fusão entre o Lusitânia (clube de futebol) e o Vasco (clube de remo), o Vasco da Gama é a novidade da competição.

Não que isso chame muito a atenção. Os favoritos são os de sempre, Flamengo, Fluminense, Botafogo e América. O Flamengo já não conta com a vitoriosa geração dissidente do Fluminense, mas já começa a apresentar jogadores talentosos, uma equipe respeitável. É o caso dos zagueiros Penaforte e Telefone e dos atacantes Candiota, Nonô e Moderato. O veterano inglês Sidney Pullen, espécie de coringa (atua na meia e no ataque) é o maior ídolo flamengo.

No entanto, nas primeiras rodadas logo se percebe que o Vasco não fará figuração. O cruzmaltino começa a vencer todos os seus jogos, e o mais intrigante é que o time da colônia sempre consegue suas vitórias da mesma forma, saindo em desvantagem na primeira etapa e atropelando os adversários no segundo tempo, mostrando exuberante forma física (e criando o mito do “time da virada” que até hoje persiste).

Na verdade, os portugueses arregimentaram entre os cortiços e terrenos baldios da cidade os melhores entre os desocupados das peladas. Deram-lhes empregos “de fachada” nas quitandas, armazéns e padarias de que eram donos, e em troca os rapazes deveriam submeter-se a um rigoroso trabalho de preparação física, comandado por um treinador uruguaio contratado a peso de ouro. Tudo isso da forma mais discreta, pois o profissionalismo é proibido. Assim, os vascaínos vão se impondo, para alegria dos portugueses, que estão obcecados pelo título.

O campeonato segue, a conquista vascaína é questão de tempo. Exultante e insuportável, a colônia portuguesa infesta seu comércio de faixas e bandeiras. “O Vasco é uma potência”, “somos os portugueses, os bons”, “viemos ensinar os brasileiros a jogar bola, ora pois”. Não é raro saírem discussões mais ásperas, mesmo brigas. O sentimento antilusitano na cidade ainda é forte, a Independência é relativamente recente. E, com a fantástica campanha, os lusos cismam: querem o título invicto, ganhando todos os jogos. Batem no peito, berram-se invencíveis.

O Vasco chega à nona vitória, na nona partida. Restam poucos jogos para o final. Parece que o desejo dos portugueses irá se cumprir. Algumas tascas já exibem tabuletas “campeão invicto”. E anseiam pela décima partida. Contra o Flamengo.

O Flamengo faz campanha razoável. Vence alguns clássicos, mas perde pontos que o distanciam da taça. Seu grande destaque é Nonô, que já mostra o apetite que o fará um dos grandes goleadores da história flamenga. Sem pretensões na competição, o rubro-negro vai montando a base que será vitoriosa nos anos seguintes.

Seja pela arrogância vascaína, seja pela vasta popularidade de que o Flamengo já desfruta, seja pela forte rivalidade procedente do remo (as regatas entre Flamengo e Vasco sempre foram duras, encarniçadas), o jogo acende todo o Rio de Janeiro. Os vascaínos falam em goleada. O Flamengo fala em defender sua honra. A cidade fala em dar uma lição aos portugueses, e “elege” o Flamengo como seu vingador. A semana é movimentada, cheia de provocações de parte a parte. Jamais o Rio de Janeiro esperou tanto por um evento esportivo. Aliás, o jogão de domingo será tudo, menos uma partida de futebol. Ali se dará um acontecimento social.

Domingo, Laranjeiras, gente, muita gente. Uma multidão se despeja pra dentro do estádio, um oceano humano fermenta dentro do acanhado campo, capaz de acolher cerca de 10 mil pessoas com certo conforto. Sem conforto, pode-se alojar 15 mil, como na final do Sul-Americano de 1919. Pois bem, os jornais estimam 50 MIL almas se espremendo, invadindo o gramado, ocupando a pista de atletismo, tendo que ver o jogo de pertinho, mesmo que apertado e sem poder esboçar movimento.

O cotejo se inicia, e como esperado o Flamengo mostra mais ímpeto e fome de vitória. O bom ataque formado por Candiota, Nonô, Junqueira e Moderato começa a acossar o gol de Nelson, excitando a multidão, maioria absoluta flamenga. O Vasco resiste, mas está calmo. A história do jogo parece com a de outras vitórias, é natural o adversário dominar no início. Mas desde o começo o público percebe algo diferente no élan flamengo, o rubro-negro morde cada bola, disputa cada tufo de grama. E tanto pressiona que chega ao primeiro gol, com Candiota. A estrutura das Laranjeiras balança, a massa compacta urra e pula. E antes que se acalme, lá vem o segundo gol, feito por Nonô. E não há tempo para mais nada, termina o primeiro tempo, Flamengo 2-0. No intervalo, os flamengos cantam. Os vascaínos, calmos, falam em virada.

E a certeza da reação vascaína só aumenta quando, no comecinho da segunda etapa, Ceci diminui. Agora são os portugueses a fazer barulho e a empurrar seu time. Mas algo parece fora do roteiro. O Flamengo não cansa, não sente o ritmo. Seus jogadores acompanham cada pique do adversário, que, como é usual, aumenta muito a velocidade da partida. Mas o rubro-negro está vivo, responde a cada ataque, continua agressivo, criando chances. Isso desnorteia os portugueses, que não esperavam pelo fogo flamengo (o fato é que os rubro-negros, apenas naquela semana, deixaram o amadorismo de lado e treinaram à noite, em segredo, buscando aprimorar a condição física para que pudessem acompanhar o rival).

Empolgada com a raça dos seus jogadores, a torcida rubro-negra começa a fazer a diferença. Grita, assobia, canta, empurra. E incendeia o time, que acua o Vasco. Atônitos, os camisas pretas recuam, estão nas cordas. E levam um duro golpe, quando Junqueira desfere o petardo que vaza as redes cruzmaltinas pela terceira vez. O Flamengo abre 3-1, para delírio de uma multidão incrédula.

Ferido em seus brios, o Vasco parte pro ataque, mas o time vira coadjuvante de uma tourada. O velho Sidney Pullen comanda um toque de bola insinuante e macio, põe o outrora invicto Vasco na roda, provoca risadas de uma torcida insaciável, num ardente jogo de gato e rato, uma incontestável demonstração de superioridade do onze flamengo. Alguns lances chegam a provocar palmas dos mais exaltados.

Súbito, numa bola perdida, o Vasco desconta, com Arlindo. Faltam quatro minutos. O cruzmaltino ensandece e parte para uma pressão desesperada. Os portugueses, que andavam cabisbaixos, tentam chamar o time ao empate, que manterá a sonhada invencibilidade. Mas nada irá tirar a vitória do Flamengo. A pressão é forte, mas o goleiro Iberê está bem e a zaga, segura, manda pro inferno todas as bolas. Isso dura até o final, quando o apito redentor de Carlito Rocha encerra o embate. Flamengo 3-2 Vasco. O Vasco perde a tão acariciada invencibilidade. Não é mais imbatível.

A vitória do Flamengo vira o Rio de Janeiro de pernas pro ar. A festa dura semanas. Multidões invadem o centro da cidade em corsos e carros abertos, tocando cornetas, batendo bumbos, gritando “o basco é uma putência!” em falsete, provocando os portugueses. Muitos nem abrem as quitandas e padarias. Uma estátua de Cabral é enfeitada com um colar feito de réstias de cebola. Um tamanco é roubado de uma sapataria e pendurado na porta da sede do Vasco. Muitas lojas portuguesas recebem fúnebres coroas de flores. O Vasco ganhará o título, mas a cidade só fala Flamengo, só respira Flamengo, só pensa no Flamengo.

O Rio de Janeiro, definitivamente, se apaixonou pelo Flamengo.

Flamengo Net

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