terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Alfarrábios do Melo

Olá, saudações rubro-negras a todos. Antes de mais nada, aviso que os Alfarrábios voltarão dia 23, pois estarei fora do ar durante o Carnaval. De qualquer forma, aproveitando a expectativa para as semifinais da Taça GB, aí vai um texto sobre uma das mais espetaculares vitórias da história flamenga. Então, boa leitura.

Nós também gostamos de “vo-seis"

1981. O Estadual está no Terceiro Turno. Flamengo e Vasco, campeões dos turnos anteriores, já estão nas finais. Aproxima-se a sétima rodada. O líder Flamengo (10 pontos) enfrenta o Botafogo (8 pontos), segundo ao lado de Vasco e Fluminense. Uma vitória botafoguense pode levar a um sensacional empate quádruplo, a quatro rodadas do final. E a julgar pela estatística recente, isso não parece absurdo.

O Botafogo possui uma boa equipe, onde se destacam o goleiro Paulo Sérgio e o volante Rocha (nomes de seleção), além de Mendonça, Perivaldo, Mirandinha e Ziza. Sem falar no ídolo maior, o veterano atacante Jairzinho, que está de volta. Um time que surpreendeu o país, ao cair nas Semifinais do Brasileiro diante do São Paulo, com a ajuda decisiva da arbitragem. Uma equipe que crescia nos clássicos (vencera o Vasco por 3-1 semanas antes), e que não perdia pro Flamengo há quase um ano, ou quatro jogos, tendo eliminado o rubro-negro do Brasileiro e do Segundo Turno do Estadual. Um oponente duríssimo, apesar dos rumores de problemas internos em seu elenco (o volante Rocha denunciara as “escapadas” de alguns jogadores para o treinador, o que foi muito mal digerido pelo grupo).

Mas o Flamengo não parecia estar muito melhor. O time vencia, mas não convencia. Seu elenco era sabidamente forte, a base do título brasileiro de 80 havia sido mantida, mas o time não encaixava, parecia jogar sem alegria. Vencia joguinhos com placares apertados, às vezes no sufoco (vinha de um dramático 1-1 contra o Serrano, em Petrópolis). O final do ano se aproximava, e o pálido futebol apresentado até ali preocupava. Apreensivo, o treinador Carpegiani procura os líderes do elenco para trocar idéias. Algo tinha que mudar. E rápido.

Domingo, Maracanã, 69 mil. Vai começar o clássico. No Flamengo, ninguém entende nada quando a camisa 11, até então de Baroninho, um dos artilheiros da temporada, aparece vestida por Lico, pouco mais que um obscuro reserva do meio-campo. Alguns torcedores torcem o nariz. A partida começa aberta, com as duas equipes mostrando índole ofensiva. O Botafogo busca o ataque, mas o Flamengo está bem, compacto. E em seu primeiro lance agudo chega ao gol, aos 7’, numa bela jogada de Lico, que termina com Nunes escorando cruzamento de Adílio.

O gol desnorteia o Botafogo, que já mostra nítido nervosismo, quase descontrole quando o Flamengo começa a rodar a bola e a girar seus jogadores, numa ciranda alucinante que simplesmente destrói a marcação adversária. Lico se encaixa como uma luva na equipe, com sua técnica refinada e incrível mobilidade. O Flamengo vai toureando a presa, num mortal jogo de gato-e-rato. Cansado e nervoso, o Botafogo abre a guarda e começa a dar espaços. E em apenas treze minutos, o Flamengo mata o jogo. 27’, Zico pega uma sobra, emenda de sem-pulo e faz o segundo. 33’, após linda tabela dentro da área, Lico arremata, inapelável, 3-0. Por fim, Adílio fulmina de cabeça aos 40’ e fecha o primeiro tempo com ofuscantes 4-0. Paradoxalmente, ali acaba a diversão. Vai começar o drama.

Retrocedemos rapidamente a 1972, Campeonato Brasileiro. Numa sombria quarta-feira de novembro, o rubro-negro é goleado (0-6) pelo rival, com três gols de Jairzinho (um de letra), dando início a uma verdadeira era de agonia e trevas, em que cada botafoguense faz questão de lembrar com minúcia de detalhes cada lance, cada gol, cada minuto daquela noite infeliz. Por mais títulos que o Flamengo conquistasse, por mais pesada que fosse a crise do Botafogo (e não foram poucas), sempre havia uma faixa (“6x0”, “nós gostamos de vo6”), um sinalzinho com as mãos, um ritual traumático e sufocante do qual a torcida flamenga precisava se libertar.

E por que seis? Flamengo e Botafogo já andaram se surrando reciprocamente por coisa maior, tipo oito, nove. Mas os 0-6 de 1972 eram o único bálsamo capaz de atenuar a seca botafoguense. Azucrinando o seu maior rival, cada alvinegro se esquecia do próprio sofrimento que já ia ao 13º ano. E a goleada era recente, tava ali pertinho. Ferida, fustigada, a nação flamenga passa a ansiar pelo dia da libertação, do troco. Em 1975, o time abriu 3-0 logo no início, Parecia ser o dia. Mas o atacante Luisinho enjoou de perder gols fáceis, o Flamengo “só” fez 4-0, saiu vaiado e entrou em crise (Luisinho chegou a ser agredido na saída do estádio). Outras oportunidades vieram, mas algo sempre acontecia e ficava no quase. Mas naquele 1981, com 4-0 no intervalo, a torcida sentiu que estava chegando, “seis, queremos seis”. Com esse coro ensurdecedor, o Flamengo entra para a segunda etapa.

A perspectiva de devolver os 6-0 acirra, afoba os jogadores. Muitos deles também foram torcedores, padeceram na infância com as gozações rivais. Entram pilhados, agressivos. Isso atrapalha e trunca o jogo flamengo. E o Botafogo, mais calmo, começa a crescer. Sua torcida pede apenas um gol. Unzinho, para quebrar o encanto. Jairzinho entra, cadencia, enerva. O Botafogo avança a marcação, quase chega ao gol, o Flamengo responde. A luta dos jogadores dos dois times é comovente, parece final de campeonato. Vale mais que taça. Vale a honra de um pavilhão.

Aos poucos, o Flamengo vai novamente controlando a partida e criando chances, Lico, Zico, Andrade. A mina é o lado esquerdo, com Tita ou Adílio nas costas de Perivaldo. Aos 30’, Adílio entra livre e é derrubado por Rocha, pênalti. Zico esquece a habitual classe e dá uma porrada, a bola matreira ainda rela na trave, mas entra. O Flamengo faz 5-0. Faltam 15’. Dá tempo. É hoje. Tem que ser hoje.

“Vamos pra dentro, vamos pra cima!”, Zico comanda, general. O Maracanã inflamado não para de gritar. Os botafoguenses pressentem o pior e vão embora. O Botafogo agora joga na base de bicuda e contragolpes. O Flamengo esquece movimentação, tática, classe. Agora é um bando atrás do gol redentor, da libertação, da alforria.

Não sem sofrimento. O Flamengo, apressado, pouco produz. Sorrateiro, o Botafogo se aproveita. Jairzinho, o algoz de 1972, entra livre na cara de Raul, chuta raspando e gela a espinha do estádio. Mais duas chances claras do Botafogo, o gol amadurece. Nunca um 5-0 fora tão dramático. O tempo está se esgotando. “Seis, queremos seis!”

Restam três minutos. Andrade dá a Adílio, que cruza a Zico, seis, queremos seis, o Galinho escora, queremos seis, sobra pra Andrade, o Camisa 6 arrebenta as redes, explode os grilhões que acorrentavam toda uma massa, liberta a nação de um sofrimento de nove anos. Novembro de 1981, o Flamengo se livra de cada olho e cada dente de novembro de 1972. Tá lá escrito, Flamengo 6-0 Botafogo. Desconhecidos se abraçam, idosos choram copiosamente, jogadores pulam transtornados, não sabem o que fazer. Não são profissionais, ali são torcedores em campo. Jairzinho, atordoado, balbucia “não pode ser, é muita crueldade”. Pois é, Jair...

Nunca mais faixinha, nunca mais mãozinha, nunca mais musiquinha.

A história dessa partida se encerra com um vídeo. Um vídeo aterrador, comovente, de arrepiar. Convido todos a acessar este link e a posicionar o cursor em 0:58. Depois, é só escutar a narração de Jorge Cury. A narração do gol de Andrade, do grande momento, do gol da vingança.

O apaixonado relato de um torcedor.

Vídeos: Documentário Jogos Para Sempre (SporTV): partes 1, 2, 3, 4, 5 (crédito alrossi)

Vídeo: Canal 100 (crédito aleflamengo)

(crédito vídeo Jorge Cury: melsamba)

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