Olá, saudações hexacampeãs a todos. Essa semana inicio uma nova série aqui no blog, em que quero contar alguns dos momentos em que o Flamengo mostrou-se à altura das grandes potências mundiais. É a série “Grandes Jogos Internacionais”. Para começar, o dia em que o Flamengo deu um chocolate no legendário Arsenal da Inglaterra. Boa leitura.
Série Grandes Jogos Internacionais
Flamengo x Arsenal – 1949
1949. Estamos às vésperas da IV Copa do Mundo de Futebol. E o Rio de Janeiro, às voltas com as obras do monumental Estádio Municipal, já se prepara para o evento. Não se fala outra coisa na Capital Federal, especialmente porque a Seleção Brasileira parece enfim inspirar confiança, até por ter conquistado, meses antes, o Campeonato Sul-Americano de Futebol (hoje Copa América). Para aumentar a intensidade da expectativa, é confirmada a presença em gramados cariocas, para uma curta excursão, do poderoso Arsenal, da Inglaterra.
O futebol inglês povoava a imaginação de mentes e corações, com sua aura intocável de inventores do futebol. Mas, independente disso, o Arsenal realmente possuía uma bela equipe, uma das melhores da Europa (trazendo a dias de hoje, ao nível de Manchester United ou Barcelona, por exemplo). Havia conquistado o Campeonato Inglês do ano anterior sem dificuldades. Com vários jogadores na Seleção Inglesa, tinha como principais destaques o legendário goleiro Swindin (que se destacava por sua liderança), o seguro zagueiro Barnes, o vigoroso médio Macaulay, o velocíssimo ponta Logie e sua estrela maior, o truculento atacante McPherson, conhecido pela pouco alvissareira alcunha de “Coice de Mula”. Um time coeso e experiente, que ao desembarcar no Rio de Janeiro foi logo mostrando o cartão de visitas, ao trucidar o Fluminense com impiedosos 5-1. Mas o confronto que vinha mobilizando toda a cidade e servindo de assunto em todos os bares, botequins, praças e pontos de encontro era, evidentemente, a partida marcada contra o Flamengo.
O rubro-negro não atravessava um bom momento. Vivendo um jejum de títulos que já chegava ao quarto ano (ainda iria se prolongar até 1953), a equipe dependia muito de Zizinho, seu craque maior (que estava fora de combate, com apendicite, e não iria jogar contra o Arsenal), e tinha no mirrado Jair da Rosa Pinto um dos poucos parceiros de qualidade. No mais, os destaques eram o experiente médio Biguá (talentoso e extremamente raçudo), o clássico médio Modesto Bría, o corpulento zagueiro Juvenal (que seria titular da Seleção em 1950) e o goleador Durval. O restante da equipe era formado por jogadores esforçados e/ou medianos. Mesmo assim, a torcida flamenga vivia um momento de especial euforia, pois estava confirmada a contratação do goleiro paraguaio Sinforiano Garcia, que havia sido o grande destaque do Sul-Americano, inclusive com uma atuação sobre-humana no triunfo do Paraguai sobre o Brasil (2-1), naquela que seria a única derrota dos brasileiros na competição. Atordoado com a qualidade de Garcia, o radialista Ari Barroso (que era um misto de torcedor, corneteiro e dirigente) tomou um avião para Assunção e garantiu a vinda de Garcia ao Flamengo. Recebido com estardalhaço no Rio (com direito a desfile em carro aberto), Garcia iria estrear justamente na partida contra os ingleses.
A partida entre Flamengo e Arsenal foi marcada para domingo. Na sexta-feira, todos os 25 mil ingressos colocados à venda pelo Vasco (o jogo seria em São Januário, o principal estádio da cidade) esgotaram rapidamente. Ainda era possível encontrar entradas nas mãos de cambistas, a preços exorbitantes. No dia do jogo, as ruas nos arredores do estádio já estão intransitáveis às 9 da manhã. Os portões abrem às 11, e em duas horas já não cabe mais ninguém. O jeito é arrombar, e a polícia, apesar da farta distribuição de cassetetes e coronhadas, não consegue conter a multidão. Estima-se que cerca de 40 mil pessoas conseguem entrar no acanhado estádio. Outros tantos permanecem fora, mostrando que o Flamengo precisa mesmo de um templo maior para acomodar sua imensa torcida. A superlotação é tão evidente que é necessário acomodar alguns torcedores à beira do campo.
Os times entram perfilados, à européia. A diferença física é cômica, os jogadores flamengos parecem juvenis diante dos armários ingleses. Mário Vianna trila o apito, começa a partida. O Arsenal dá a saída, bola com Daniels, daí a Macaulay, que deixa com Lodge. O ponta encara a marcação do jovem Beto e subitamente arranca para a linha de fundo. Sozinho, olha o movimento na área e cruza com mortal precisão na cabeça do atacante Goring, que testa forte, fora do alcance de Garcia. Não temos nem um minuto de jogo, o Flamengo ainda não tocou na bola, e o Arsenal já está vencendo.
Parte do estádio vibra, alucinado. São os vascaínos, aboletados nas sociais. Irritados, vários rubro-negros pulam o alambrado e vão tirar satisfações. A polícia intervém e na base da porrada consegue acalmar as coisas. No campo, o Flamengo parece mais tranqüilo, e tenta encaixar seu jogo. Agora temos 8’, o rubro-negro tem uma falta a seu favor. Parece longe, mas Jair ajeita a bola assim mesmo. Vai mandar direto.
Ao contemplar aquela figura esquálida, os cambitos que não sequer sustentam os meiões, os ingleses se entreolham e não conseguem conter o riso. Swindin recusa-se a armar barreira. Não sabe com quem está mexendo. Jair não perde a calma e faz cafuné na bola. Toma distância e manda o tiro raso, faiscante. No trajeto, a primeira curva. Swindin ajeita o corpo e se prepara para encaixá-la. Mas, ao se aproximar do goleiro, a bola esboça um malicioso sorriso, faz outra curva e rebenta, às gargalhadas, na rede do aparvalhado arqueiro inglês, que, incrédulo, está de joelhos. O Flamengo empata o jogo, e o estádio agora dança.
Com o gol, o Flamengo se solta, perde o medo, resolve brincar de bola. O Arsenal parece um andaraí, um bonsucesso. Os grandalhões ingleses são reduzidos a camundongos que, bêbados, tentam em vão acompanhar a louca correria flamenga. Alucinado, Jair faz de seus marcadores meras testemunhas. Os ponteiros Luizinho e Esquerdinha são uma eterna ameaça à integridade dos ingleses, prestes a vergar e quebrar no meio diante de seus dribles. O goleiro Swindin faz defesas absurdas, que arrancam palmas entusiasmadas dos espectadores. E é graças ao goleiro inglês que a primeira etapa termina em 1-1.
Mas não duraria muito. No segundo tempo, o Flamengo impõe uma pressão ainda maior. Jair, possuído, joga por si e pelo ausente Zizinho. Parece estar em uma pelada em Barra Mansa, driblando seus parceiros. 8 minutos. Jair (ou Jajá) recebe de Luizinho e avança. Vem pelo meio. Faz a bola correr em linha reta e vai pedalando, tirando zagueiros de sua frente como quem espanta moscas. Passa por Barnes, abre para a direita, seu pé cego. Manda de direita mesmo, o chute sai mascado, a bola ganha altura, novamente faz uma curva marota, ri da cara de Swindin e vai repousar nas redes. O Flamengo vira e faz 2-1.
Irritados com a derrota, a festa da torcida e principalmente com o futebol moleque do Flamengo, o Arsenal manda a fleugma pro espaço e começa a apelar. E mostra grande talento na arte de bater, espanca sem dó os irrequietos rubro-negros. McPherson tenta passar por Biguá, que lhe segura a camisa. O Coice de Mula, nervoso, acerta violento pontapé no médio flamengo, o que dá início a um forte rebu. Mais tarde, Garcia faz difícil defesa, e o atacante Bryan dá-lhe um pau. Nova confusão, dessa vez é Biguá quem dá na orelha de um inglês.
No entanto, se nas brigas ainda existe certo equilíbrio, na bola só dá Flamengo. O rubro-negro agora põe na roda, a torcida não para de rir. O gol de Swindin é objeto de um massacre, um bombardeio, uma verborragia. E o jogo não terminaria sem mais uma cipoada no lombo inglês. O médio Luís Rosa descobre o atacante Durval livre na área. Sem cerimônia, o avante flamengo domina e executa o brioso Swindin, que estaca exangue no chão enquanto a bola toma o rumo das redes pela terceira vez. O mitológico Arsenal é reduzido a pó.
Termina a partida, Flamengo 3-1 Arsenal. Os números, nada frios, contam 20 defesas (13 milagrosas) de Swindin, contra seis de Garcia. Nos chutes a gol, espantosos 51 arremates flamengos, contra 28 dos ingleses. A multidão, inebriada com o chocolate, desce num festivo cortejo que vai parar na sede antiga, na Praia do Flamengo, num carnaval extemporâneo que vara a madrugada.
Nos jornais, o fim da Revolução Chinesa, com a entrada de Mao Tse-Tung em Xangai, é notícia em todo o mundo. Mas no Rio, o acontecimento histórico leva um chega-pra-lá e vai ocupar as páginas secundárias, enxotado pelo Flamengo e seus heróis, que demoliram um gigante.
Mas, pensando bem, o gigante ali era o Flamengo.
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