terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Alfarrábios do Melo

Olá, saudações HEXACAMPEÃS a todos. Com o desfile de craques do Jogo das Estrelas de domingo passado, foi impossível deixar de lembrar outro momento maravilhoso, ocorrido há pouco menos de 15 anos atrás. No final, há link para um vídeo com imagens do jogo.

Aproveito para desejar a todos um Feliz 2010, com muita paz, saúde, e que o Mengão continue nos fazendo felizes.

O primeiro Flamengo x Amigos do Zico

1985. O Rio de Janeiro está mais lindo. A cidade está em festa, tingida de vermelho e preto, o sol brilha mais forte, as festas são mais barulhentas e animadas, uma atmosfera de alegria e felicidade parece permear a tudo e a todos. Não se fala noutra coisa. Zico voltou.

Após uma delicada negociação que durou meses e penou repleta de idas e vindas, finalmente se conseguiu viabilizar o retorno de Zico ao Flamengo. Com o apoio de várias empresas e contando com a decisiva vontade do jogador (que recusou propostas de clubes como Barcelona e Borussia Dortmund), montou-se uma ousada operação, o chamado Projeto Zico, para que o Galinho retornasse ao seu recôndito, à sua casa.

Confirmada a contratação, a cidade literalmente parou para abraçar seu ídolo, com direito a estrondoso desfile em carro aberto, emocionada entrevista de retorno, produção de um filme alusivo ao evento (tudo bem, um filminho prosaico, vá lá...), música nova de Moraes Moreira e principalmente a realização de um amistoso cuja renda serviria para amortizar os custos da contratação. Nesse jogo, o Flamengo, turbinado pela presença de seu novo reforço, enfrentaria uma seleção de craques.

Antes disso, Zico mostrou estar em plena forma, comandando a Seleção na difícil campanha das Eliminatórias para a Copa, onde o Brasil eliminou o forte Paraguai e a perigosa Bolívia, com direito a um gol antológico na partida em Assunção, um dos mais belos de sua carreira, ao receber um passe na corrida e corrigir o quicar rebelde da bola com um suave meneio de calcanhar e, sem interromper a passada, emendar de primeira sem defesa para o incrédulo Fernandez. Classificação para a Copa carimbada, era hora de voltar ao Flamengo.

O rubro-negro retornaria à disputa da Segunda Fase do Campeonato Brasileiro, após a paralisação para as Eliminatórias. A equipe estava em uma chave onde o adversário mais temido era o Bahia, sensação da Primeira Fase. Os demais, Brasil de Pelotas e Ceará, não assustavam. No entanto, o time não vinha convencendo. Após um bom início, onde conseguiu a classificação para a Segunda Fase, o time de Zagallo caiu muito de produção e passou a acumular preocupante número de derrotas. O setor mais criticado era o ataque, onde o limitado Chiquinho (artilheiro do Campeonato Paulista em 84, contratado para substituir Nunes) sentia o peso da camisa e não engrenava, o experiente Tita vivia problemas de relacionamento com alguns jogadores e já não era tolerado pela maior parte da torcida e o jovem Bebeto ainda não conseguia exibir regularidade compatível com seu reluzente talento. O início na Segunda Fase também não havia sido animador, com difíceis empates no Nordeste contra Ceará (1-1) e Bahia (0-0) e uma pálida vitória no Maracanã (1-0) contra o Brasil de Pelotas. Era pouco, muito pouco para uma equipe que possuía um dos melhores elencos do país. Faltava alguma coisa, uma chama, uma centelha.

E é nesse contexto que Zico aparece. O amistoso de reestréia é marcado para uma sexta-feira à noite, encaixado na marra em meio ao Brasileiro. De um lado, o Flamengo de Zico, agora novamente com Zico. Do outro, um timaço com as presenças de craques como Falcão, Sócrates, Toninho Cerezo, Edinho, Branco, Júnior, Roberto Dinamite e Éder. Praticamente a Seleção de 1982 remontada, com um reforço de peso: Diego Maradona. No banco, Telê Santana, naturalmente.

Cerca de 40 mil pessoas, um público excelente (pouquíssimos jogos no Brasileiro superaram essa marca), vão ao Maracanã saudar o retorno de seu ídolo maior. Os Amigos de Zico entram em campo com um sugestivo uniforme de camisas amarelas e calções azuis, lembrando a Seleção Brasileira. E realmente em campo está uma seleção, uma constelação de craques. Todos em pleno ritmo de jogo, às voltas com a disputa do Brasileiro ou das Eliminatórias, encerradas recentemente.

Mas, ao iniciar a partida, é o Flamengo quem esquece o cansaço (atuara dois dias antes pelo Brasileiro) e parte pra cima. Todos estão vivamente motivados com a presença do seu Camisa 10, que parece nunca ter saído do time. Encaixa-se como uma luva à equipe. Craque se encaixa em qualquer lugar. Começa a distribuir passes refinados e lançamentos açucarados, que Chiquinho se esmera em desperdiçar, levando ao desespero a animada Nação. O trio Andrade, Adílio e Zico está lá, novamente junto, dando as cartas e não tomando conhecimento do estelar adversário, fazendo o goleiro Paulo Victor trabalhar intensamente. Até que o Galinho pega uma bola pela direita e faz menção de bater a gol, mas a bola sai mascada e Chiquinho (novamente) não consegue aproveitar a sobra, mas Tita está atento e empurra pro gol. Flamengo 1-0. Feliz, a torcida parece rever um filme maravilhoso, que ficara dois anos guardado em alguma prateleira empoeirada. E canta, como se fosse o último jogo de sua vida.

O jogo segue, o Flamengo continua fazendo a sua melhor partida do ano. Nem nos 6-1 contra o Botafogo (mais obra da absurda atuação de Adalberto) a equipe havia mostrado uma evolução tão desenvolta, tão perfeita técnica e taticamente. Amplia, com Marquinho. Falcão, Júnior, Sócrates e Maradona parecem apenas garotos promissores perto do volume de jogo flamengo. Não fossem Paulo Victor e Chiquinho, os Amigos de Zico estariam sofrendo uma goleada nada amigável. Zico, inteiramente à vontade em sua nova velha casa, segue pintando seus quadros e servindo manjares aos companheiros. E fazendo Paulo Victor sofrer.

Vem a segunda etapa e as alterações naturais e esperadas. O ritmo do jogo cai. Zico permanece em campo, mas agora está circundado por Hêider, Júlio César, Nem, Vinícius e Ronaldo Torres (que anos mais tarde seria preparador físico). Os Amigos do Zico começam a pressionar o gol de Cantarele (que entra no lugar de Fillol). Mas, quando o gol adversário parece iminente, há uma falta na extrema esquerda. Um “córner de calça curta”, diriam os cronistas. Zico ajeita, o natural é cruzar. Mas o Galinho tem outros planos. Quando soa o apito, o Camisa 10 da Gávea inova e assombra. Bate fechado. A bola parece ir no primeiro pau, mas no meio do caminho muda de idéia e se dirige ao gol, obediente. Aparvalhado, o goleiro Gilmar Rinaldi (que substitui Paulo Victor) não sabe como ir na bola, que entra serelepe na exata forquilha do primeiro pau, precisa, incisiva, geométrica. Um espetáculo inacreditável, um gol de falta absurdo. Flamengo 3-0. Zico está, definitivamente, de volta.

Após o escandaloso gol de Zico, pouco há mais a fazer, a mostrar. Os jogadores sentem o desgaste e passam a tocar bola e tentar lances de efeito. E o amistoso se encaminha para um tranqüilo desfecho, quando de repente irrompe na beira do campo o atacante Jacozinho, do CSA de Maceió-AL. Picaresco e folclórico, Jacozinho é objeto de várias reportagens humorísticas no Globo Esporte da época, que o alçam à condição de celebridade instantânea. O irrequieto nordestino entra no lugar de Falcão e, logo em seu primeiro lance, recebe de Maradona na corrida, dá belo drible em Cantarele e toca pro gol vazio. A torcida flamenga, que andava meio acomodada, vibra e ri com a ousadia de Jacozinho, que aproveita intensamente seus quinze segundos. E, após esse breve sobressalto, nada mais acontece e o jogo termina mesmo em 3-1 para o renascido e renovado Flamengo.

Abre parênteses: a participação de Jacozinho na partida gerou várias reclamações de Zico e dos organizadores do evento, visivelmente incomodados com a presença do jogador. Isso gerou vários comentários eivados de ressentimentos e recalques, dando conta de que o Galinho estaria “enciumado” com o sucesso de Jacozinho. Mas o que as cassandras ignoravam, ou fingiam esquecer, é que a irritação decorreu do fato de Jacozinho ser um “produto” da TV Globo, colocado “na marra” para participar de um evento promovido pela TV Manchete, que participou ativamente do “Projeto Zico”. O Galinho, ciente da manobra, chiou muito após o jogo. Mas com Jacozinho não houve ressentimentos, tanto que o Flamengo, semanas depois, enfrentou o CSA em Maceió e os dois posaram sorridentes para fotos. Ah, Zico devolveu a gentileza, comeu a bola e o Flamengo meteu 4-0. Fecha parênteses.

Desde aquele 12 de julho, Zico foi arrebentado, renasceu, perdeu pênalti, foi dado como morto, ressuscitou de vez na epopéia do tetra brasileiro, despediu-se de sua Nação, abriu caminhos no Japão, foi secretário, ministro, cartola, treinador, e agora reúne anualmente um grupo de exemplares da mais alta estirpe da bola para 90 minutos de uma celebração ao amor, ao lirismo, à poesia e ao talento em estado bruto. Futebol sem limites, sem amarras, bem ao gosto dos amantes da bola.

O melhor presente de um Monarca aos seus súditos.

Vídeo: A trajetória de Jacozinho (lances do jogo a partir do minuto 02:30)

Flamengo Net

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