terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Alfarrábios do Melo

Olá, saudações HEXACAMPEÃS a todos. Ainda embalado e moralmente embriagado pela conquista do título de MELHOR DO BRASIL, preparei essa coluna atendendo a vários comentários de colegas que, nessa caminhada, mencionaram que gostariam de ler um texto atual, falando do hexa. Então, taí um relato do jogo decisivo de 2009, que também está disponível no hotsite da página oficial do Flamengo (junto com toda a trajetória do time na competição). É a antecipação do último capítulo de...

A SAGA DO HEXA

Campeonato Brasileiro 2009 – parte final

Imediatamente após ter confirmada a liderança, a diretoria do Flamengo decide realizar a preparação da equipe para a última rodada na Granja Comary, em Teresópolis, com o objetivo de fugir da badalação, das polêmicas e da enorme expectativa a ser criada por imprensa e torcida, dando assim tranqüilidade ao elenco para se concentrar adequadamente na partida decisiva, contra o Grêmio, no Maracanã.

A medida se mostraria acertada, porque transborda polêmica durante a semana que antecede o jogo. Ocorre que o Internacional, grande rival do Grêmio, havia herdado a segunda posição com a derrota são-paulina, e com isso se constitui na principal ameaça ao título flamengo. Os colorados terá uma partida considerada fácil, contra o virtual rebaixado Santo André, no Beira-Rio, e conta com um tropeço rubro-negro diante de seu maior rival para assim conquistar o título. Ciente dessa situação, a torcida gremista pressiona de todas as formas seu time para que “entregue a partida”, impedindo assim que o Internacional se sagrasse campeão. Para agravar a situação, caso semelhante ocorrera em 2008, quando o Colorado pusera em campo um time misto contra o São Paulo nas rodadas finais, onde a disputa pelo título se restringia a paulistas e gremistas. Para a torcida (e alguns dirigentes e jornalistas) chegava a hora do troco.

O Flamengo tenta blindar o elenco de todas as formas, mas no dia do jogo não é possível conter a ansiedade, especialmente após o anúncio de que o Grêmio virá a campo com uma equipe coalhada de reservas e juniores, o que aumenta ainda mais a responsabilidade do rubro-negro. O Maracanã, lotado desde cedo (estima-se que mais de 90 mil tenham entrado no estádio), canta e pula por seus heróis. Vários telões são espalhados pela cidade. O Rio de Janeiro, literalmente, traja-se de vermelho e preto para esperar o fim do jejum de 17 anos sem títulos brasileiros.

Mas a partida ganharia contornos dramáticos. Ainda mais nervosa do que na partida contra o Goiás, a equipe rubro-negra inicia a decisão totalmente irreconhecível, lenta e sem movimentação, não consegue trocar passes, a marcação não encaixa. A garotada gremista, apesar de não ter entrado “comendo grama”, mostra organização e espírito de luta (dizia-se nos bastidores que os jogadores tricolores estavam visivelmente irritados com a celeuma da semana). Logo os cantos e gritos de apoio dão lugar a um silêncio nervoso. O teimoso 0-0 segue truncado, amarrado, e pelo menos no início tudo indica que o sufocante drama contra os goianos se repetirá. Mas logo a ansiedade dará lugar ao desespero.

Numa cobrança de escanteio, o jovem Roberson se antecipa à zaga flamenga, aproveita falha da defesa e abre o placar para o Grêmio. Ninguém entende nada, todos se entreolham, premidos de pavor. Fantasmas antigos e recentes voltam à tona, Cabañas, Santo André, Rezende, o vexame e a chacota parecem novamente gargalhar diante de um estádio atônito. O título vai escorrendo entre os dedos, e indo exatamente para o Internacional, que acaba de abrir o placar em Porto Alegre. O Maracanã congela, tirita açoitado pela gélida e sepulcral ventania da tragédia.

O Flamengo sente o gol. Nos momentos seguintes, não acerta absolutamente nada. Adriano parece ainda sentir a contusão no pé e não consegue dar seqüência a nenhum lance. Petkovic, bem marcado, está apagado e não rende. Os volantes erram passes sistematicamente e não conseguem acompanhar os meninos do Grêmio. Juan e Zé Roberto estão nulos, correm a esmo, inutilmente. Nervosa, a torcida mescla gritos de apoio com apupos: “queremos raça”, gritam. E, quando o Grêmio parece ter a partida nas mãos, surge um escanteio para o Flamengo. A bola é alçada, Airton briga pela bola, que flutua, boba. Adriano faz a parede e a sobra oferece-se límpida para o zagueiro reserva David (que substituía Álvaro, suspenso). O garoto segue o destino que lhe foi traçado e desfere um tiro seco, implacável, empatando o jogo e finalmente fazendo o Maracanã explodir em festa. O Flamengo reage, desafia o fracasso, volta ao jogo e à luta.

Enquanto o estádio canta e empurra o time esperando a virada, os rivais flamengos vão construindo seus placares. Internacional e São Paulo vão vencendo seus jogos (o tricolor não encontra dificuldades contra o já rebaixado Sport), o que obriga o Flamengo a buscar a vitória. O time aperta, vai na raça e aos trancos, mas não consegue superar a bem postada defesa gremista. Os gaúchos surpreendem e atuam com grande aplicação tática. Anulam as principais peças flamengas. E assim termina a primeira etapa em 1-1.

Antes do segundo tempo, os jogadores promovem uma corrente dentro de campo. A grande nação flamenga unge seus heróis, empunha sua maior arma, berra enlouquecida o sacrossanto “Meeeengôôôôôô”. O espetáculo é arrepiante. Diferente da primeira etapa, o rubro-negro parte pra dentro do adversário, arranca esfomeado em direção ao gol, à vitória, à glória. Mas a zaga gremista está segura, não dá chances. O goleiro Marcelo Grohe, em tarde feliz, é um obstáculo à parte. Andrade quer ainda mais agressividade, saca Toró e põe Everton, novamente de volta. O time melhora, agora o jogo está todo no campo gremista. Mas a ansiedade pelo gol que não sai atrapalha, a equipe erra passes, especialmente no último momento. Ninguém pisca. A existência de toda uma nação parece depender de um mísero gol, que teima em se manter guardado em um escuro recôndito. O Grêmio, encurralado, entrincheira-se em sua área. Restam 20 minutos. Petkovic, exausto, vai sair. O chileno Fierro está à beira do campo. Basta que a bola saia. E o Flamengo ganha um escanteio.

Desesperado, David berra ao auxiliar: “espera, espera, ele vai cobrar o córner!”. Fierro não entra. Petkovic vai para aquele que pode ser seu último momento no Campeonato Brasileiro de 2009. Campeonato que marcou a sua redenção definitiva, onde o sérvio calou a todos os que lhe riram da cara quando afirmava que seria protagonista, que seria vencedor. O campeonato que teve a cara de Dejan Petkovic, o herói do tri, outrora esquecido, relegado, e estava de volta, conduzindo o Flamengo ao título, rebentando a massa rubro-negra dos grilhões de um acre jejum. E o gringo ajeita a bola. Vai ao encontro da história.

A bola descreve uma trajetória precisa, curva. Encontra a cabeça de Ronaldo Angelim, o bravo Angelim. A cabeçada é certeira, fulminante, instantânea. 31 anos depois, a alma do “deus da raça” reaparece e é incorporada por Angelim, nordestino cabra-macho arretado, que sempre honrou seu clube com um fervor religioso a cada atuação em campo, que a cada partida ensopa o Manto Sagrado Flamengo com o suor de sua devoção fanática de torcedor. Sim, Ronaldo Angelim estufa as redes gremistas, decreta a virada e corre, pula, sai do chão, festeja como um garoto, é um dos 35 milhões que acabam de entrar em transe. O Maracanã treme, enlouquece, pula junto com uma nação que se amalgama em uma festa épica, bíblica, desumana.

O Flamengo faz 2-1 e está a 20 minutos do hexa.

E esses 20 minutos duram semanas, meses. O Grêmio parece esmorecer, assustado com a força flamenga, mas ainda assusta. Perde gol claro, numa bola espirrada na área. O Flamengo segura o jogo, cria alguns contragolpes, mas a bola teima em não entrar. O destino parece querer que o sofrimento dure até o final, para que o grito de campeão saia num urro, num orgasmo, num só golpe após o estímulo faiscante do apito final.

Héber Roberto Lopes trila o som libertador. O Flamengo é hexacampeão brasileiro.

Um dos títulos mais sensacionais de toda a história flamenga acaba de ser conquistado. Após um campeonato onde toda a sorte de dificuldades foi enfrentada, um grupo de homens mostrou a sua fibra, sua força e sua capacidade de incorporar o verdadeiro espírito flamengo. Demolindo tijolo por tijolo a muralha da empáfia e da arrogância de pretensos favoritos, o silencioso e humilde Flamengo de Andrade foi galgando aos poucos o árduo trajeto que distingue vencidos de vencedores. E ao final da áspera jornada, pôde olhar pra trás e, ao contemplar o campo de batalha com os cadáveres dos vencidos, finalmente cantou bem alto a alegria de ser rubro-negro. De ser campeão.

De ser Rei do Brasil.

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