terça-feira, 8 de setembro de 2009

Alfarrábios do Melo

Olá, saudações rubro-negras a todos. Essa semana, publico a penúltima parte da história da conquista do Brasileiro de 1982. Os outros capítulos podem ser acessados aqui. Há links para vídeos nos trechos em negrito. Então, boa leitura.

Campeonato Brasileiro de 1982 – Parte 05

Após a dramática vitória no Maracanã, o Flamengo vai ao Morumbi enfrentar o Santos pelo jogo de volta das Quartas-de-Final, partida em que tem a vantagem do empate. Nunes finalmente retorna, após 33 dias, e sua presença é vista com alívio por Carpegiani, que em nenhum momento conseguira montar um esquema capaz de suprir a sua ausência. Mozer está fora, joga Figueiredo.

No início do jogo, 54 mil vêem um Flamengo diferente de suas características, mais cauteloso, sem se expor muito, buscando administrar a vantagem. A estratégia até dá certo no primeiro tempo, apesar de alguma pressão santista. Mas, na segunda etapa, o ímpeto defensivo de Carpegiani cai por terra, quando o ponta Batistote aproveita uma bela jogada de Pita e abre o placar, ainda com 3’. A partir daí, o jogo se torna um drama para o Flamengo. Muito bem postado em sua defesa, o Santos não dá espaços ao rubro-negro. Pior, consegue encaixar vários contragolpes perigosos, e dá toda a impressão de que tem o jogo sob controle. O tempo vai passando, e pela primeira vez o Flamengo se vê sob sério risco de eliminação. Nada funciona. A ansiedade flamenga vai se transformando em descontrole, a ponto de Carpegiani cogitar a substituição de Zico. O Galinho, muito bem marcado, vinha fazendo sua pior partida no campeonato, não acertava uma jogada, mas não se mexe com o craque do time. E isso ficaria claro para Carpegiani, já a 7 minutos do fim, quando o craque aproveitou um raro cochilo da zaga adversária e emendou forte, para defesa de Marola, a escanteio. Logo depois, bola alçada na área e Zico, sempre Zico, antecipa-se ao zagueiro e apenas dá um tapa de cabeça, tirando Marola do lance, empatando o jogo e tirando o Flamengo do sufoco. O Campeão do Mundo saía do Morumbi com um suadíssimo empate em 1-1 e chegava às Semifinais.

O adversário do Flamengo seria uma parada extremamente indigesta, o Guarani de Campinas. Com uma equipe onde brilhava a dupla formada pelo meia Jorge Mendonça e o atacante Careca, muito bem escoltados pelos pontas Lúcio e Zezé, os zagueiros Jaime e Júlio César e pelo goleiro Wendell, o Bugre fazia até então a melhor campanha da competição, e havia acabado de eliminar o badalado São Paulo, de forma categórica, com duas vitórias (2-0 e 1-0). Havia um clima de euforia em Campinas, que sonhava com a reedição do título de 1978. E o Flamengo, com suas classificações sofridas, não parecia assustar.

Para complicar, Carpegiani tinha problemas. Mozer continuava fora, e também Raul, Tita e Nunes não poderiam atuar, suspensos com cartão amarelo. Figueiredo, Cantarele e Chiquinho entrariam no time. Faltava definir o substituto de Nunes. E então, cansado de dar tantas oportunidades a Reinaldo e Anselmo, Carpegiani, num impulso, resolveu fazer uma experiência num treino. Testou, gostou do que viu, e anunciou sua decisão. Para incredulidade de muitos, o garoto Peu atuaria improvisado como centroavante.

O alagoano Peu chegara ao Flamengo em 1981, como uma aposta para a reserva de Zico. Pouco aproveitado (por motivos óbvios), o tímido e gago Peu acabou sendo uma espécie de “mascote” do grupo, alvo preferencial de dez entre dez brincadeiras do elenco (Zico e Júnior eram particularmente cruéis com o garoto). Naquele Brasileiro, ainda não havia atuado em nenhum jogo, e muitos já consideravam que sua trajetória no Flamengo estava próxima do fim. Mas, sem se abater, Peu sempre esperou sua chance. E ela veio, justamente em um jogo tão importante.

Finalmente, o sol estava de volta ao Maracanã. E, com ele, 120 mil torcedores desaguaram ao estádio, prontos a cantar a alegria de ser rubro-negro. E fizeram um barulho impressionante, cinematográfico, poucas vezes visto. O clima era hipnotizante (mais tarde, o atacante Careca diria que nos primeiros 15’ não conseguia jogar, só prestar atenção na torcida. Aliás, Careca várias vezes mostrou vontade de atuar no Flamengo, mas as transações nunca se concretizaram).

Começa a partida, e todo o ligeiro favoritismo do Guarani é demolido em poucos minutos. E o principal artífice da destruição da defesa bugrina não é Zico, nem Adílio, nem Júnior. É ele mesmo, o menino Peu, o cantinflas Peu, o garoto que, em sua primeira jogada, dá um drible desmoralizante e senta um zagueiro no chão, que devolve ao ataque flamengo uma alucinada correria, que ora está na direita, ora na esquerda, imarcável. A defesa campineira, atônita, se pergunta: de onde saiu esse cara? A torcida do Flamengo não entende nada, só ri das canetas, penetrações inteligentes, passes milimétricos e finalizações preciosas de Peu, como um toque desconcertante por cobertura que deixa Wendell estático e caprichosamente sai por cima do gol.

A superioridade flamenga é escancarada, pornográfica. Só falta o gol, mas ele não demora. 12’. A bola está com Adílio. Peu se desloca para a esquerda, leva um zagueiro. Com isso, Zico ganha espaço, pede a bola livre. Adílio lança. O Galinho domina e emenda, sem chance para Wendell. 1-0, a massa flamenga ensurdece o estádio. Arrepiado, o time segue em cima, não deixa o adversário respirar, quer matar logo o oponente. Agora temos 20’. Zico rouba uma bola no meio, deixa com Peu. Já são três a marcá-lo. Não adianta, Peu está possuído em um facho de luz que simplesmente atravessa o meio dos zagueiros, pés alados como os deuses da mitologia. Chega perto da área, manda a bomba. Wendell ainda faz grande defesa, mas dá rebote. Como se já esperasse, Peu não muda a direção da corrida e, agora sim, está livre, diante do goleiro. Pega a sobra e apenas rola macio, no canto, com extrema categoria, abre 2-0 e vive seu merecido nirvana. “Peu, Peu, Peu, o Guarani se f...!” canta-lhe a apaixonada e agradecida magnética.

Segue o jogo, o barulho, o inferno. A partida está fácil, inacreditavelmente tranqüila. O Flamengo começa a perder gols aos cachos, alterna momentos de ansiedade e preciosismo. Uma goleada de quatro, cinco, não parece nada sobrenatural. Mas aí, já aos 36’, ocorre o lance que muda a história. Peu vai atrás de uma bola perdida, lance bobo, na lateral do campo. O garoto estica demais a perna e sente o peso da inatividade. Distensão muscular. Choro. Silêncio, palmas e consagração. O menino humilde das Alagoas vive seu momento de sonho, em pouco mais de meia hora vive a dor e a delícia de ser rubro-negro. Nunca mais se esqueceria.

A partida segue, o treinador Zé Duarte avança seu time, aliviado por se ver livre de Peu, agora substituído pelo opaco Anselmo. O Flamengo volta a ser previsível, quase burocrático. O Bugre cresce no jogo, agora quem atazana a defesa adversária é seu ponta-direita Lúcio, que vai criando uma jogada atrás da outra. Cantarele começa a aparecer. Mas aos 32’ da fase final, Lúcio entra pela direita, tabela com Ernani Banana e aproveita rebote de Cantarele para diminuir. E o Guarani, já nos momentos finais, ainda perde gol feito, quando Careca, sozinho, tenta dar um toque a mais e permite a defesa de Cantarele. Final, Flamengo 2-1. Frustração pela goleada perdida, apreensão pelo jogo de volta que se anuncia duríssimo. Festa, apenas no vestiário campineiro, que só fala em goleada.

Mais de 50 mil pessoas quebram o recorde de público do estádio Brinco de Ouro, ansiosas pela vitória simples. Ao Flamengo, basta o empate, mas a experiência contra o Santos mostrou que essa vantagem não é das mais confortáveis. Ao menos, voltam todos os titulares, exceto Mozer. E o rubro-negro parece novamente estar diante de um drama, quando Jorge Mendonça, com apenas 3’ de jogo, acerta belo voleio e abre o placar para o time da casa. Mas o rubro-negro está calmo, parecia prever algo do tipo. Começa a envolver o Guarani com um toque de bola primoroso, adota postura agressiva, adianta a marcação, ignora a força do adversário (há mais de um ano invicto em casa), joga como campeão do mundo. E tem Zico. E Zico está (muito) a fim de jogo. E Zico está inspirado. E aí...

Passam-se apenas 20 minutos, e o empate já é questão de tempo. Córner. Bola curta pra Júnior, que cruza para Zico. O Galinho, num movimento extremamente difícil e que mostra a dimensão de seu incomparável talento, dá um passo pra trás e apenas deixa a bola desviar em sua cabeça, ganhando uma trajetória sinuosa que engana completamente o goleiro Wendell. Não adianta, Zico é Zico, e o jogo está 1-1. A multidão se enfurece, começa a atirar objetos no campo, o Flamengo está inabalável.A presença de Nunes devolve o equilíbrio à equipe, que está altiva, prende a bola, irrita o adversário com a beleza do seu jogo. Fosse nos tempos de hoje, caberia o grito de “o campeão voltou...”. Intervalo.

Volta pro segundo tempo, todos esperam um Guarani arrasador, procurando o gol com tudo, a tal pressão inicial. Carpegiani também espera. Mas se antecipa. Surpreende. Põe o Flamengo na frente. É o Campeão do Mundo quem ataca, vai pra cima, encurrala o adversário. E vem tocando, tocando... Lico chega driblando, deixa com Zico. O Galinho, do jeito que vem, emenda de primeira, venenoso, Wendell pula, mas não tem jeito. Flamengo 2-1, “quem tem Zico tem tudo”. Segue a partida, agora o rubro-negro está inteiramente à vontade. Os campineiros começam a mostrar resignação. Zico começa mais uma jogada, deixa com Tita, linda enfiada pra Adílio, Wendell sai e abafa, na sobra Lico chuta, a bola bate no braço do lateral Almeida. Pênalti. Apenas uma formalidade para Zico, que, como em vários grandes momentos de sua iluminada carreira, consuma mais um “hat-trick”. Há jogadores que somem nos momentos decisivos. Outros os evitam. Há ainda os que crescem quando mais se precisa deles. E há os iluminados, como Zico, que nasceu para os grandes momentos. Decidir era seu ofício.

No fim, o Guarani, ainda descontou, novamente com Jorge Mendonça, mas ninguém se incomodou muito com isso. Com os 3-2, O Flamengo estava na final do Brasileiro novamente. Mas engana-se quem imagina que o time teria facilidade.

Seria ainda mais duro que 1980.

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