terça-feira, 14 de julho de 2009

Alfarrábios do Melo


Olá, saudações rubro-negras a todos. De volta após viagem, essa semana quero dar continuidade à história do primeiro título brasileiro do Flamengo, conquistado em 1980. Esse é o terceiro e penúltimo capítulo, os dois anteriores podem ser vistos aqui. Nas partes em negrito, há links para vídeos. Então, boa leitura.

Campeonato Brasileiro de 1980 (Parte 03)

O Rio de Janeiro amanheceu em festa após a inédita conquista da vaga às semifinais pelo Flamengo, após a categórica vitória por 2-0 sobre o Santos. Um estado de excitação, quase euforia, permeava a torcida, a crônica e mesmo alguns dirigentes. Mas não havia muito tempo para curtir a vaga entre os quatro melhores, porque quarta-feira já havia jogão decisivo. E uma verdadeira pedreira, contra o Coritiba, no Couto Pereira.

O Coxa chegava à sua segunda semifinal seguida, curiosamente enfrentando outro time do Rio de Janeiro (em 1979, caiu diante do Vasco). Era uma equipe altamente técnica, que praticava um futebol refinado, comandada pelo experiente Aladim, o atacante Escurinho, o habilidoso ponta-de-lança Freitas, os combativos meias Vílson Tadei e Almir e o vigoroso zagueiro Gardel, todos esses comandados por Mário Juliato. Foi uma das melhores formações do clube em toda a sua história, e até hoje esse time é lembrado com carinho pela torcida paranaense.

Para chegar às semifinais, o Coritiba passou por um grupo com Corinthians, Botafogo e Grêmio. A classificação foi obtida de forma dramática, ao vencer o Botafogo por 1-0 com um gol de Gardel, já nos descontos. A cidade vivia grande empolgação para o confronto com o Flamengo, até porque o time estava invicto em casa. Um espetacular público de 58.311 pessoas pagou ingressos para assistir ao jogaço.

O Flamengo teria um desfalque importante para as semifinais: Carpegiani havia se contundido contra o Santos, e assim Adílio entraria em seu lugar, formando o meio-campo que soaria nos anos seguintes como música para o torcedor rubro-negro: Andrade, Adílio e Zico. Esperava-se que o Coritiba exercesse grande pressão por atuar em casa, e que o Flamengo adotasse postura mais cautelosa, jogando em contragolpes.

Mas não aconteceu nada disso. Com incrível personalidade, o Flamengo entrou em campo com uma postura bastante agressiva. Com as linhas avançadas, o time conseguiu impor a sua melhor categoria e, com maior posse de bola, não deixou o Coritiba crescer na partida. O meio-campo com Andrade, Adílio e Zico encaixou-se de forma perfeita. E Zico simplesmente brindou os paranaenses (e os milhares de flamengos presentes ao estádio) com a sua melhor atuação no campeonato. O próprio Galinho reconhece ter sido essa uma de suas grandes partidas na carreira. Sem Carpegiani, o Galo chamou a responsabilidade, pediu bolas, deu esporro, ajudou no combate, lançou bolas primorosas e, como se não bastasse, decidiu o jogo. Logo no início, aos 14’, Júnior vem tabelando com Zico pelo lado direito, dá um drible sensacional num zagueiro e serve com açúcar pro Galinho, que apenas tira do goleiro, 1-0. Já no segundo tempo, Adílio vem com a bola, passa por um oponente e toca pro lado. Zico ajeita e manda uma bomba de longe, no ângulo, sem chance para o goleiro Moreira. O Flamengo quebra a invencibilidade do Coritiba, vence por 2-0 e abre uma enorme vantagem. Está virtualmente classificado para as finais.

Enquanto isso, os outros semifinalistas, Atlético-MG e Internacional, fazem grande jogo no Mineirão e empatam em 1-1, resultado que dava a vantagem do empate à equipe gaúcha. Tudo indicava que a final do campeonato seria entre o Flamengo de Zico e o Inter de Falcão.

Quase 90 mil pessoas lotaram o Maracanã para assistir à partida decisiva entre Flamengo e Coritiba. Nem o mais pessimista torcedor rubro-negro acreditava na possibilidade de eliminação. O Flamengo poderia perder por até dois gols de diferença, os paranaenses precisavam de uma goleada, isso no Maracanã. O time de Coutinho já estava invicto há 16 jogos. Somente uma hecatombe de proporções bíblicas tiraria o Flamengo das finais.

Trinta minutos. Foi o bastante para que uma multidão estarrecida percebesse que não se brinca com as coisas do futebol, nenhuma verdade é tão absoluta que não possa ser soterrada. Nesse breve intervalo de tempo presenciou-se um verdadeiro massacre, um vareio de bola do Coritiba em cima de um nervoso e assustado Flamengo, que pareceu sentir o peso da responsabilidade de se tornar um time vencedor. O lateral Gílson Paulino procura a cabeça de Escurinho. O atacante escora e Vilson Tadei entra pra tocar na saída de Raul e abrir o placar. Pouco depois, Freitas recebe lançamento pela direita e cruza para Aladim, que acerta um belo voleio e amplia, 2-0. Para piorar, Zico sente forte contusão muscular e sai do jogo. Logo depois, Júlio César também se machuca, é outro a deixar o campo. Em seus lugares, Coutinho põe Reinaldo e um impetuoso garoto chamado Anselmo. Mas a situação era crítica, o Coritiba dominava amplamente o jogo, só precisava de mais um gol para conseguir um feito inacreditável. Raul fazia grandes defesas. Velhos fantasmas voltavam a rondar o Maracanã, tomado pelo medo de que se repetisse a humilhante eliminação de 1979 (quando o time saiu do campeonato goleado pelo Palmeiras).

Sem Zico, sem Carpegiani (ainda contundido), os jogadores se entreolhavam, pareciam aturdidos, sem reação. Foi aí que a torcida flamenga começou a perceber que o time precisava dela, e passou a berrar a plenos pulmões, pegando o time pela mão. Contagiados, os jogadores esqueceram os pudores, ignoraram que estavam na partida mais importante da vida deles e passaram simplesmente a exercer sua vocação natural, o prazer de jogar no ataque, em bloco. E então o Maracanã presenciou algo de magistral, de mitológico. Em apenas 10 minutos, o Flamengo proporcionou à sua inflamada torcida uma experiência lisérgica, o êxtase absoluto, um orgasmo coletivo, uma das mais espetaculares viradas da história do futebol. O segundo gol de Aladim acabara despertando uma assustadora simbiose entre jogadores e torcida, e o jogo virou um convite ao inferno para os talentosos paranaenses. Primeiro, Andrade lança Nunes, que vai na corrida e chuta forte, diminuindo a desvantagem e acendendo o rastilho de pólvora. Agora é Andrade de novo, ele cruza pra Tita, que ajeita. Nunes vem no embalo e enfia o pé, arromba as redes com raiva, com violência, é o empate, é o delírio. Mas o melhor ainda faltava: O Coritiba volta a se abrir, Vilson Tadei vem com a bola, faz boa jogada, mas adianta demais. Carlos Alberto (que substituía Toninho, suspenso) faz o desarme e arranca da sua intermediária, vai numa correria alucinada. Todo o estádio corre com ele, e corre, e corre, e atravessa o campo todo. E de repente Carlos Alberto parece alado, inalcançável, etéreo. Os vinte e um jogadores restantes parecem congelados, somente Carlos Alberto e uma nação se movem, premidos pelo instinto natural de quem vai atrás de uma bola. E o momento mágico é consumado com um petardo violentíssimo, que rebenta no ângulo, sacramentando a épica virada por 3-2. Já não se ouvem gritos, agora a torcida urra o gozo que jorra de suas entranhas.

Após o espetáculo sobrenatural da primeira etapa, era natural que o ritmo caísse no segundo tempo. O Flamengo passou a administrar a vitória e o Coritiba, atônito com a virada, não se expôs muito. De qualquer forma, ainda houve tempo para Tita lançar o garoto Anselmo, que deu um lindo drible no goleiro e colocou com categoria no gol (quase) vazio. Já no último minuto, o Coxa fez sua homenagem ao grandioso público, uma maravilhosa tabela entre Vilson Tadei, Escurinho e o golaço de Luís Freire, tudo sem a bola cair no chão, o que rendeu merecidos aplausos. Fim de jogo, Flamengo 4-3 (outro vídeo aqui). A conquista do Brasil estava ali pertinho, a dois jogos.

E o adversário na final, para surpresa de muitos, não seria o Internacional de Falcão, mas o Atlético-MG, que numa exibição de gala calara 60 mil pessoas em pleno Beira-Rio com um contundente 3-0, numa primorosa atuação de Toninho Cerezo.

Para entender um pouco o que aconteceria dali por diante, é necessário recordar rapidamente a final do Brasileiro de 1977. Naquele ano, o Atlético-MG, invicto, com campanha irrepreensível e favoritíssimo, viveu o maior trauma de sua história ao perder o título em casa, nos pênaltis, diante de 102 mil pessoas, para a catimba e a violência do São Paulo de Chicão, Antenor e Waldir Perez, com direito a perna quebrada de Marcelo, um de seus melhores jogadores. Aquela derrota foi tão marcante que o clube passou a perseguir o título de forma obsessiva. E o primeiro passo foi a assimilação de uma cultura mais aguerrida, mais maliciosa (o time de 1977 foi considerado muito “inocente”). Assim, em 1980 formou-se a combinação perfeita entre o talento puro e a catimba, a manha. O Galo teria que ir “pras cabeças” de qualquer jeito, nem que fosse “na marra”. O Flamengo que se preparasse. Porque o que viria pela frente transcenderia uma simples decisão de campeonato.

Iria começar uma guerra.

(créditos vídeos: www.flamuseu.blogspot.com e Canal 100).

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