Por José Eustáquio Cardoso - Mineiro de Perdões e rubro-negro desde o segundo tri, e Juiz de Direito aposentado, no Rio de Janeiro. Mora em Niterói.
Era assim: comodista até por força da idade, eu não queria ir, não me dispondo a enfrentar trânsito, flanelinhas, desconforto. Ele, porém, me arrastava com o simples brilho do olhar. Se já era assim à mera perspectiva da vitória, imaginava quão mais intenso ficaria à confirmação desta, a cada gol berrado da arquibancada... E afinal não resistia. Ia. E a recompensa me vinha com a alegria de meu menino, a se somar à minha, a se somar à sua, a se multiplicar pelo número de bandeiras e camisas agitadas... Ou até com a infalível solidariedade recíproca ante a derrota.
Mas um dia ele se foi. E eu nunca mais fui ao Maraca, como ele chamava o templo de nosso culto. Foi para longe: para Brasília, para Buenos Aires, para Genebra...
Sábado, ele estava ainda mais longe: em Paris. Como ir ao Maraca sem aquele brilho de olhar que me arrastava e enfeitiçava? Não fui.
Deixasse estar, porém, que eu escrevera na manhã daquele dia um comprido número de telefone num pedaço de papel. E ele me pedira:
– Me liga, Pai, assim que acabar o jogo.
– Só ligo se o Mengão ganhar – eu lhe respondi. – Se eu não ligar, você já sabe por quê...
Colei-me à televisão. Sozinho, que até meu outro menino, que me cumula de iguais arrebatamentos a cada gol e a cada vitória, assim me deixara, indo acampar com a namorada. E o jogo começou, com um Felipe endiabrado e um Zinho equilibrado e equilibrante. Sem embargo de impor-se quando necessário, não era, porém, o equilíbrio que se destacava; era o ímpeto. De Felipe, de Jean. E quem se impunha, afinal, era a mística de duas cores juntas, era o time todo, que, convenhamos, tricolores, jogava melhor, não havia dúvida.
E veio o primeiro gol, ainda no primeiro tempo, na falta caprichosamente cobrada por Zinho, na bola colocada como se com a mão na cabeça de Fabiano Eller. Pulei, gritei, senti à distância (quanta!) certo abraço, certo beijo, certo brilho de olhar.
Mas veio o segundo tempo e com ele o lance fortuito do gol de empate. Ouvi próximos outros gritos. Calei-me, engoli em seco a injusta alegria alheia e lembrei-me do pedaço de papel no bolso esquerdo da bermuda. Apertei-o como se fosse um amuleto e vi à distância (quanta!) um olhar brilhante de confiança e de esperança. Falei sozinho:
– É por você, meu menino! Vamos lá, Mengão!
E imediatamente Diogo pedalou como Robinho, descobrindo Rafael que se embarafustava pelo meio da zaga e, entrando pela área, tocou para o pé e o coração rubro-negro de Jean, que, adiantando-se ao goleiro e a dois zagueiros, pôs um para fora do peito e da camisa e outro para dentro da bola e para dentro do gol!
Outra vez apertei o bolso como se apertasse o coração.
E eis que outra vez a injustiça revoava por nossa área e por nossa meta: infelicidade do menino Henrique, maior infelicidade do meu menino, tão longe, não podia, não podia ficar sem aquele prometido telefonema... Não existe justiça na Terra?
Existe. Não faltou nem mesmo tardou. Apertei convulsamente o papelzinho de tantos algarismos dentro do bolso, e, uns cinco minutos depois, eis que surge outro predestinado pé, novamente adiantando-se a dois zagueiros e ao goleiro: o abençoado pé esquerdo de Roger, mal tocando a bola, que rolou mansinha, devagarzinho, fingiu que ia para a linha de fundo, deu ela própria um drible de corpo na torcida contrária, fez uma curva aparentemente impossível e aninhou-se chorosa no cantinho da rede, no cantinho do gol. Foi o gol da justiça, que naquele momento, se se preferir, com a devida licença do ilustre e saudoso tricolor, poderia atender pelo nome de Sobrenatural de Almeida. – Estava escrito há cinco milhões de anos! – diria ele, o ilustre e saudoso tricolor, que como ninguém sabia reconhecer a justiça e a injustiça.
Pois bem, arrastados os minutos finais, corri ao telefone e digitei tremendo aquele número comprido. Atendeu-me uma voz dizendo em francês o nome de um hotel. Pressuroso, pedi:
– La chambre deux cents deux, s’il vous plaît.
A voz me respondeu como se cantasse uma canção:
– Ne me quittes pas.
Ora, por nada no mundo eu abandonaria aquele fone trêmulo em minha mão. Outra voz, conhecida do coração, conhecidíssima, rubro-negra como um coração distante e aflito, soou do outro lado como se esperasse uma carícia. Pus ao fone o radinho de pilha, que cantava para Paris e para o mundo:
– Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer!
E gritei, ou berrei, eu próprio:
– Mengo!!!
Em resposta, ouvi e vi, pelas artes de mil antenas e satélites, um sorriso de menino. E senti um abraço sufocar-me e um beijo estalar em minha face.
Rio, 27/2/2004
|