Alfarrábios do Melo
Enfim, vamos à história. Boa leitura,
O papel higiênico e o show do "Mané" Adalberto
1985. Todas as atenções do país estão voltadas para a internação do presidente eleito Tancredo Neves, operado de um tumor no intestino na véspera do dia em que iria tomar posse. E a percepção da imprensa e do público é até otimista (logo iria mudar). Comenta-se que Tancredo deverá ter alta em alguns dias, inclusive se cogita marcar a data da sua posse no cargo. Mas, naquele domingo de março, o carioca daria um breve tempo na vigília por Tancredo, pois Flamengo e Botafogo mediriam forças em um jogo que vinha sendo muito falado. Certeza de casa cheia.
A torcida do Flamengo não tinha muito do que se queixar. Aliás, vinha de bem com o time, treinado por Zagalo. A equipe seguia apostando na mescla entre os remanescentes do time campeão mundial (Leandro, Mozer, Andrade, Adílio) e os jovens valores que iam consolidando seu lugar na equipe (Bebeto, Jorginho, Adalberto, Élder, Júlio César). Reforços, apenas pontuais. Para o ataque, o clube trazia o ponta-direita Hêider, goleador no Náutico, mandando em troca para o clube pernambucano o atacante Nunes (já bastante desgastado no Flamengo), por empréstimo. Para o comando do ataque, a aposta era Chiquinho, artilheiro do Campeonato Paulista do ano anterior pelo Botafogo-SP. E, fechando o ciclo de contratações, o Flamengo trazia o falso ponta Marquinho, ex-Vasco, o que propiciaria a Zagalo voltar a escalar Adílio no meio-campo, como era desejo do jogador. Além de Nunes, Tita também vinha em baixa no elenco, o que fez com que o promissor meia Gilmar Popoca, muito talentoso, começasse a ser aproveitado com mais freqüência.
E o time não decepcionara naquele início de Brasileiro. Mantendo a base e com o time entrosado, o Flamengo mostrou que ainda tinha uma das melhores equipes do país, e já no primeiro turno da competição conseguiu o primeiro lugar do seu grupo, alcançando assim, de forma antecipada, a classificação para a segunda fase, após vencer o Grêmio por 1-0 no Maracanã (jogo duro, gol no finalzinho, Marquinho de falta).
Bons ventos, sem dúvida. Mas o que vinha realmente fazendo a massa flamenga sorrir era a perspectiva cada vez mais concreta de contar com o retorno de seu ídolo maior, Zico. Numa operação iniciada no final de 1984, o publicitário Rogério Steinberg vinha costurando a formação de um “pool” de empresas com o objetivo de ajudar a repatriar o Galinho. E, pelo que saía na mídia, as negociações vinham evoluindo. A Udinese ainda relutava (queria envolver outro jogador na transação, falava-se em Bebeto), mas já considerava negociar o jogador. E a simples possibilidade de contar com Zico de volta fazia arrepiar o torcedor rubro-negro mais cético.
Mas para aquele jogo contra o Botafogo, já pelo segundo turno, Zagalo tinha problemas. O experiente treinador teria que lidar com o natural relaxamento do grupo, em função do objetivo atingido de forma tão precoce. Todo o segundo turno seria composto de jogos “amistosos”, pois o Flamengo já estava na fase seguinte. Além disso, teria alguns desfalques importantes para o clássico: Bebeto, Leandro e Marquinho.
Enquanto isso, o Botafogo estava otimista. Aliás, a relação entre o Botafogo e sua torcida era algo sui-generis naqueles anos 80. O longo jejum de títulos, que já chegava a 16 anos, deixara o torcedor botafoguense em um estado de neurose absoluta. Qualquer boa vitória da equipe era encarada como o sinal da redenção, do retorno aos “anos gloriosos”. Quando isso acontecia, normalmente sua torcida enchia o Maracanã, apenas para testemunhar uma nova decepção e abandonar a equipe até que uma nova vitória lhe renovasse as ilusões.
E era exatamente nesse estágio de euforia e esperança que o torcedor botafoguense se encontrava naquela semana de clássico contra o Flamengo. O time de General Severiano, após um mau início, vinha se recuperando no segundo turno e brigava por uma das vagas para as finais. Tinha uma boa equipe, onde despontavam o lateral Josimar, o volante Alemão, o meia Elói e o atacante Baltazar. Além deles, havia nomes promissores, como o veloz ponta Helinho e o meia-atacante Berg. No comando, o jovem Abel Braga.
O Botafogo vinha de duas vitórias seguidas, sendo que numa delas engolira o São Paulo de Careca (3-1), o que fez com que sua torcida se mobilizasse para o clássico. E acabou se mobilizando demais... Na época destacava-se a figura de Russão, chefe de torcida organizada que se envolvia nos assuntos internos do clube e era uma espécie de porta-voz botafoguense para a imprensa. Pois, a dias do jogo, Russão foi dar uma entrevista bem-humorada para uma reportagem do Globo Esporte. Ao ser indagado sobre a grande quantidade de papel higiênico que separara para o jogo, o sujeito mandou: “é que isso aqui é pros jogadores do Flamengo, que se borram todos quando enfrentam a gente.” Zagalo soube explorar o episódio. Rapidamente repercutiu aos seus comandados a bobagem falada por Russão, dando-lhes a motivação perdida pela conquista antecipada da vaga.
E foi sob muitos rolos de papel higiênico que as duas equipes entraram em campo, diante de 68.734 pagantes. O Botafogo começa melhor, e logo no início abre o placar com Elói. A garotada do Flamengo parece atônita com o ritmo imposto pelo adversário, que realmente está embalado pelas vitórias recentes e motivado pela maciça presença da sua torcida. E foi aí que, talvez em homenagem a esses botafoguenses, o espírito de Garrincha tenha resolvido reencarnar no estádio. Só que com um pequeno detalhe. O Mané incorporou num jogador do Flamengo...O lateral-esquerdo Adalberto era o dono da posição desde a saída de Júnior para a Europa, no ano anterior. Habilidoso, driblador, Adalberto ainda estava inseguro, tendo que conviver com críticas de torcedores saudosos do ídolo que partira para a Itália. Faltava-lhe uma grande atuação para consolidar-se de vez como dono da posição.
E o dia dessa exibição chegara. Logo aos 10’, Adalberto tabela com Adílio, antecipa-se a Cristiano e toca na saída do goleiro Luís Carlos. A bola entra devagarinho, chorando, quase sem querer. O Flamengo empatava a partida, 1-1.
Depois do gol, os comandados de Zagalo ganharam confiança, e aos poucos foram se impondo em campo. Mas o jogo era equilibrado, o Botafogo também ameaçava. Porém, Adalberto começava a se destacar no ataque do Flamengo, jogando às costas de Josimar. O lateral rubro-negro vinha sendo um tormento para a defesa alvinegra e era um fator de desequilíbrio da partida.
Após esse gol, todo o planejamento botafoguense foi implodido. O Flamengo passa a mandar no jogo, de forma inapelável. Garrincha, ou melhor, Adalberto está enlouquecendo a defesa adversária com seus dribles e arrancadas em velocidade. Abel tenta deslocar o volante Ademir para a cobertura de Josimar, sem sucesso. Ninguém consegue parar Adalberto. Ele é lançado, se livra de Alemão, ganha de Cristiano na corrida e rola para Chiquinho meter o quarto gol do Flamengo. A torcida entra em êxtase, e começa a entoar: “seis, queremos seis!” Para o torcedor botafoguense, era a reedição de um pesadelo.
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