Exorcismo de traumas na Vila Belmiro
Cada torcedor de futebol guarda um acervo exclusivo de jogos, ídolos e mitos. Alguns desses elementos se coincidem com a memória coletiva, aquela que preserva lembranças especiais compartilhadas por todos. Exemplos rubro-negros não faltam, para o bem ou para o mal: a cabeçada de Rondinelli, o 3 a 0 sobre o Liverpool, o empurrão de Maurício em Leonardo, o gol de barriga de Renato Gaúcho, o catártico gol de Petkovic, as lutas contra o rebaixamento entre 2001 e 2005, a arrancada no Brasileiro de 2007, a derrota para o América do México. Todo torcedor do Mengão tem alguma história pra contar sobre cada um desses episódios.
Mas cada um de nós guarda, somente para si, uma série de lembranças e fantasias no futebol que não encontram eco facilmente. Como a cena de um filme que poucos conhecem mas do qual só você se lembra. Ou como uma música antiga, que pouco tocou no rádio, mas lhe é especial por ser fiel à sua vida. Ou, ainda, como a menina que você conheceu numa viagem, que lhe cativou, mas com quem nunca teve nada, e que ainda passeia por seus sonhos. São memórias especiais, que constroem a história do torcedor e que o motivam ou desestimulam a acompanhar seu time de coração.
Eu, por exemplo, guardo com carinho muitos detalhes de um jogo de 13 anos atrás: 3 a 2 sobre o então campeão mundial Vélez Sarsfield, na abertura da Supercopa dos Campeões da Libertadores, em Buenos Aires, na estréia do pseudo-técnico Washington Rodrigues, o Apolinho, durante um Brasileiro em que o Flamengo só pagava mico. Assim como não esqueço a única partida cujo resultado me fez chorar: Vasco 3 a 1, um jogo de meio de fase do Campeonato Carioca de 1988.
É deste repertório individual que alguns calafrios passaram a me assombrar desde que o juiz Sérgio da Silva Carvalho apitou o fim da penúria contra o Atlético-PR, no sábado passado. O próximo desafio do Flamengo me desperta medos e pessimismo. Revive traumas construídos ao longo de minha vida e que, uma ou duas vezes por ano, saem do inconsciente para a realidade.
Afinal, eu nunca vi o Flamengo ganhar do Santos na Vila Belmiro.
Já assisti a centenas, milhares de partidas do Mengão nos domínios do adversário. Qualquer adversário. Contra os grandes times do Brasil, venceu várias vezes. Com exceção do Santos.
Imagine passar toda a sua vida acreditando que seu clube tem condições perenes de derrotar qualquer time no terreno oponente, e constatar que esta pretensão jamais se concretiza diante de uma das grandes agremiações do Brasil. Há algo no ar da cidade santista que contamina o jogador que veste o manto sagrado. Algo semelhante à atmosfera de Curitiba, que tanto mal fez ao Flamengo durante anos e aos poucos se purifica.
A série de reveses na Vila Belmiro fez aumentar minha ojeriza àquele time de branco. Como é que o Flamengo não conseguia ganhar daquele time que, depois de Pelé, conquistou quase nada? Outros fatores reforçavam meu ódio: de todos os rivais do Flamengo que vi ao vivo, no Maracanã, o Santos foi o único que ainda não vi sair derrotado. Foram dois jogos especiais: uma decisão, um 2 x 2 no Rio-SP de 1997, que deu o título aos paulistas; e 0 x 2 Santos pelo Brasileiro de 2003, na primeira vez em que eu levava minha então namorada, atual esposa, ao Estádio Mário Filho assistir a uma partida do Flamengo.
Passados 32 anos da última vitória rubro-negra no estádio Urbano Caldeira (sou mais novo do que isso, registre-se e acredite), comecei a relevar essa repulsa ao Santos. Um time que, em jogos oficiais, nunca perdeu para o Flamengo merece o respeito.
Mas falo de respeito institucional. Porque o cenário está armado para o grande momento. Depois de muitos anos, com times medíocres e em péssima fase, enfrentando o Santos na casa deles, reuniram-se, em 2008, condições favoráveis para uma vitória do Mengão na Vila Belmiro. O Peixe, hoje, é um sparring. Vive na zona do rebaixamento e acumula resultados desastrosos. Por sua vez, o Flamengo vem de uma vitória, fato inédito depois de sete rodadas. E vem reforçado de jogadores que desfalcaram o time no último jogo. Dentro de campo, é hora de os atletas darem o sangue. Se não pela quebra do tabu, que seja pela recuperação dos pontos perdidos. Pela obrigação de vencer um time que está em 18º lugar. Pela confirmação do fim da má fase.
Claro que qualquer rubro-negro há de considerar fundamental a vitória no domingo. Mais pela campanha no Brasileirão, menos pela importância histórica, à qual nem todos se atêm. Os jogadores, tenho certeza, também querem ganhar. Porém, quase nenhum deles viveu no Flamengo, acompanhou o Flamengo e, portanto, não carregam o estigma de derrotados da Vila Belmiro.
Por tudo isso, podem achar que estou exagerando na dimensão que dou ao próximo jogo do Mengão. Mas vencer o Santos, na Vila Belmiro, será, sim, um fato antológico. Daqueles que vou relatar para filhos e netos, com detalhes, com emoção e inflado com o recheio narrativo de quem valoriza os acontecimentos mais importantes de sua vida.
Portanto, Flamengo, 17 de agosto de 2008 é dia de entrar para a história. Nem que seja somente para a minha história.
***
Estatísticas - como já disse, o Mengão jamais venceu na Vila Belmiro em jogos oficiais. A última vitória rubro-negra no estádio santista foi em 1976, por 2 a 1, num amistoso com direito a gol de Vanderlei Luxemburgo consolidando o placar. Depois, foram doze derrotas e três empates no estádio Urbano Caldeira. Nestes 32 anos, por duas vezes o Santos teve o mando de campo e perdeu - mas longe de seu estádio. Em 1984, o Flamengo goleou o Peixe por 5 a 0 no Morumbi, pela Libertadores. Doze anos depois, de virada, o Mengão conseguiu um triunfo por 2 a 1, em São José do Rio Preto, com gols de Aloísio (esse mesmo, do São Paulo) e William (ex-Vasco), no finalzinho, pelo Brasileiro.
(Informações coletadas em texto de Marcus Vinicius de Castro)
|