sábado, 12 de julho de 2008


Abusado

- Ô, neguim abusado!


Era o meu pai, assistindo aos gols do Fantástico, um domingo qualquer no fim dos anos 70. O neguim era Adilio, entortando um beque e deixando para Zico cravar mais um gol daquele Flamengo. Adilio de Oliveira Gonçalves, passo de malandro da Cruzada, ginga de James Brown, puro sangue rubro-negro solto gramado afora.

Pouco tempo depois o time fez um amistoso aqui em Lages, e no jantar festivo entre a delegação e notórios flamengos locais, houve uma homenagem aos jogadores. Cada um de nossos craques recebeu de lembrança um pequeno sino, do tamanho de um chaveiro, com o nome da cidade gravado. Meu pai escolheu Adilio, e o neguim abusado saiu rindo, feliz da vida, tilintando o sininho sob os nossos aplausos.

Eram poucos os jogos televisados. Mas ressoava na sala de casa a voz de trovoada de Jorge Cury: - Adilio passa de passagem por Abel! Ê, neguinho bom de bola esse Brown! Meu pai concordava, olha o Adilio, meu filho - e eu olhava olhava para o rádio -, vai muito longe com esse drible fácil. Adilio foi longe demais, foi driblar de norte a sul, foi bailar feito um James Brown com a bola nos pés, foi sangrar em Santiago e foi entortar ingleses em Tóquio.


Por mais longe que fosse, Adilio sempre voltava. Voltava rindo seu riso abusado, antegozando o próximo drible na próxima tarde de Maracanã lotado. Quantos domingos felizes, meu São Judas Tadeu.


Eu juro, não gosto de comparações entre jogadores. Ainda mais entre jogadores daquele Flamengo e jogadores recém saídos da base. Mas aí entrou o Erick Flores contra o Atlético Mineiro. É certo que Erick Flores ainda não pode sequer engraxar as chuteiras de Adilio, mas não me agüento. Eram dezesseis minutos do segundo tempo. Erick tocou pela primeira vez na bola. Gingou para um lado, riscou seco para o outro, foi-se o primeiro marcador. Veio o segundo e tomou um nó nas triplas com o drible gingado de que foi vítima.

- Ô, neguim abusado!, disse eu mesmo, três décadas depois de meu pai. Logo depois, ouvi uma trovoada.

Era Jorge Cury, rindo satisfeito lá no céu.

Flamengo Net

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