Júnior
Essa entrevista com o Capacete, feita já há alguns anos, me foi mandada pelo meu amigo Leo Zanelli (jornalista esportivo, e cavaquinista nas horas vagas, hoje radicado no Nordeste) e nela ele fala sobre a sua carreira, o Flamengo de ouro e o Penta de 1992, carnaval, música...
Está um pouco longa, mas vale a pena, e divido aí com vocês.
SRN!
Antes de tudo, você poderia falar um pouco de sua infância na Paraíba e de como você vem para o Rio?
Eu vim para cá no fim de 1959, quando tinha cinco anos de idade. Na verdade, me lembro pouco de minha infância em João Pessoa, justamente porque eu era muito pequeno e ainda não tinha muita coisa na cabeça. Me lembro, sim, da minha última casa lá, da fazenda aonde eu ia com minha família, da casa da praia...
E o futebol, quando começa?
Comecei a me interessar por bola quando vim para o Rio, para morar na Rua Domingos Ferreira, em Copacabana. Comecei a jogar no Juventus, da praia, por volta dos oito anos, na categoria do mirim. Esses foram os primeiros passos que dei em minha carreira de jogador de futebol, já jogando com camisa e numa equipe.
O fato de ter começado a carreira na areia fofa acaba te dando o condicionamento físico necessário para seguir jogando futebol até os 39 anos...
O Dr. Giuseppe Taranto, que trabalhou durante muito tempo comigo no Flamengo, fez um estudo e, juntamente com os preparadores físicos, que a formação na areia da praia foi a principal causa da minha longevidade no futebol profissional e da minha resistência física -- felizmente, não sofri com lesões em articulações como tornozelo e joelho, bastante comuns no futebol.
E aquela história de você ter sido torcedor do Fluminense na infância, procede?
Claro... Quem começou a me levar aos jogos foi meu tio-avô, irmão da minha vó paterna, que era torcedor do Fluminense. A final do Estadual de 1963, um Fla-Flu que terminou 0 a 0, eu vi das costas do meu pai, na geral. Estávamos lá eu, ele e meu irmão mais velho. Aí, fui crescendo com aquela influência da família, toda torcedora do Fluminense. Mais tarde, já em 70, fui com uns amigos rubro-negros assistir a um Flamengo e Botafogo (Flamengo 2 a 0, dois de Buião) e já nesse dia senti algo de diferente. Em determinado momento, comecei a comemorar com meus amigos os gols do Flamengo. Nessa época, eu já jogava futebol de salão no Flamengo, antes de começar no campo e começar a me identificar com a bandeira vermelha e preta. Graças a Deus, não ficou nenhuma seqüela... (risos) É a brincadeira que faço com meus amigos tricolores.
Quem foi seu ídolo de infância?
Minha referência sempre foi o Samarone. Mas eu era fanático por futebol... Meu time de botão tinha Joaquinzinho, Denílson, Oliveira, Galhardo, Assis, Marco Antônio... Eu era torcedor doente mesmo, daqueles de observar detalhe por detalhe. E o Samarone era o cara com quem eu me identificava, não sei por quê. São essas coisas de garoto. Às vezes, você gosta de um jogador e não sabe por quê. E mais tarde acabei fazendo o mesmo tipo de jogo do Samarone, ou seja, um jogo voltado para o grupo. O prazer dele, de preparar a jogada para o companheiro fazer o gol, era o mesmo que eu teria mais tarde. Enfim, ele foi o meu exemplo. Quando eu já jogava, às vezes fazia uma jogada e comentava: "Tá vendo? Igual àquela do Samarone..."
Embora você fosse tricolor, a rivalidade Fla-Flu já fazia parte da sua vida na infância, pois você já jogava futebol de salão no Flamengo... Como foi sua chegada, ainda tricolor, à Gávea?
Depois do meu começo na praia, como jogador do Juventus, joguei futebol de salão por muito tempo no Sírio e Libanês, onde tive minha formação técnica. Eu tinha dez, onze anos e aprendi alguns fundamentos com o Orozimbo, o militar que treinava a equipe. Ele era muito discplinador e insistia com a gente: "Pessoal! Passe tem de ser dado com a parte interna do pé!" O futebol de salão acabou no Sírio e, como eu queria disputar um Campeonato Carioca e éramos sócios do Flamengo, que era perto de casa, fui fazer uns testes lá. Chegando lá, eu já conhecia Adílio, Jaime e Leo, da praia. Passei o ano todo de 1970 jogando futebol de salão até começar no campo. Passei uns cinco meses no América, dois mesesno Botafogo (quando tinha ainda o Joel Martins) e, em 1973, fui para o Fluminense pelas mãos do Mozart Di Giorgio, dirigente da CBF e tricolor, que tinha me visto jogando na praia: "Rapaz! Você tem de vir jogar no Fluminense..." Fiz um treino lá nos juvenis, o técnico era o Parreira. Mais tarde, eu estava na praia e um senhor chamado Napoleão, que era amigo do meu tio Aloísio, me chamou para o Flamengo: "Vamos lá, garoto. Sou amigo do Bria (Modesto Bria, paraguaio, ex-jogador rubro-negro, na época auxiliar técnico do Flamengo)." Esse ano eu estava fazendo vestibular e quase desisti: "Pô, Napoleão... Já estou em outra. Estou estudando para o vestibular..." Ele insistiu e fui. E foi nesse período, entre 73 e 74, que estourou aquela geração de Cantarele e Wanderley (Luxemburgo)...
Como era o ambiente no Flamengo dessa primeira metade dos anos 70?
O treinador era o Pavão, auxiliado por Jaime Valente e Modesto Bria. Cheguei lá com meu cabelão e o Bria encarnou, com aquele sotaque forte: "Napoleão, esse seu garoto tá mais pra quitarrista to que pra chogador de futibol!" (risos) Foi aí que começou, naquele time que estava se formando. E eu já conhecia algumas pessoas lá, da época do futebol de salão: Julio Cesar e Adílio, que eram do infanto-juvenil, mas treinavam com os adultos porque eram fenômenos. O Zico eu já conhecia do time do pai do Amarildo, que eu já havia enfrentado em 69, como jogador do Sírio. Ele era o diabo: magrinho, ágil, sem dente... Me disseram queera o "irmão do Antunes", o Zeca, que na época era o de maior moral entre os irmãos. Era centroavante do Fluminense. Fui encontrando essa gente toda na Gávea e terminei o ano mudando meu vestibular de Veterinária para Administração de Empresas, pois não tinha mais tempo para estudar. Em 74, eu já fazia parte do time de juniores. Joguei o ano todo, até setembro, quando acabou o Estadual. Aí, subimos para o profissional, depois veio aquele tempo horrível pelo qual todo jogador de futebol passa: você sobe estourando a idade e vai complementar o elenco, ficando mesmo na baba. Aí, você acaba não tendo chances, treinando pouco... Mas eu até que estava tranqüilo, pois tinha passado no vestibular e já estava estudando Administração na Cândido Mendes, em Ipanema.
Dava para conciliar as duas atividades?
Até que dava para conciliar legal, pois eu ia para a faculdade depois do treino. Mas era um período horrível, pois o jogador passa dos juniores para os profissionais sem chance de jogar. Um dia, o Joubert me chamou num canto e me aconselhou: "Você está vendo que a situação está difícil para todos os que subiram, mas não esquenta... Se hoje você está num deserto, amanhã você pode estar num oásis." Aí, o campeonato teve uma interrupção, o Flamengo foi excursionar pelo Centro-Oeste e fui com o grupo. Antes disso, eu já tinha participado de um time misto do Flamengo, de novatos e reservas, que jogava as preliminares do time principal. Foi aí, aliás, que aparecemos pela primeira vez. O mais experiente do time era o Toninho Guerreiro, centroavante que tinha jogado com o Pelé. Algumas vezes, quando íamos jogar no interior, ele abria mão de seus prêmios para os mais novos: "Entrega meu bicho para a garotada..." Então, havia uma integração. Quando entrávamos no campo para um coletivo contra o time de cima, já existia uma receptividade. Mesmo porque nessa época não tinha como jogar no time principal aos 16 anos, a não ser que você fosse um fenômeno... Não havia uma aceitação por parte dos profissionais. Mas fui jogando na excursão, meio tempo aqui, meio tempo ali e, no último jogo, entrei nos titulares. Já no primeiro jogo do segundo turno do Estadual eu fiquei no banco de reservas e entrei no segundo tempo contra o Madureira. Acho que ganhamos de 1 a 0 ou 2 a 1... Depois disso, tiveram que me aturar até 93 (risos).
Mas você ainda jogou em outras posições antes de ganhar fama na lateral-esquerda...
Pois é. Antes de me tornar profissional, ainda nos juvenis, eu jogava de meia-armador e nessa posição eu disputei os primeiros amistosos. No final do primeiro turno, o lateral-direito se machucou e acabei jogando um tempo na posição. Aí, Jaime Valente, Pavão e Bria vieram para mim com um papo que não me agradou muito na época: "Nós vemos condições de você evoluir no futebol, mas será melhor para o seu futuro se você jogar na lateral, pois há uma carência no time de cima." Eu ainda relutei porque achei que passar do meio-campo para a lateral fosse uma desvalorização. Felizmente, eles abriram minha cabeça e me deram o caminho mais fácil para eu evoluir dentro do Flamengo. Aí, joguei o segundo turno inteiro como lateral-direito e evoluí, usando tanto a noção de marcação que tinha aprendido no futsal como as características ofensivas da praia, onde eu era atacante. E eles foram me ensinando a não dar muitos carrinhos, a jogar de pé...
E o clima entre os jogadores, como era na Gávea? Quem eram os bambambãs?
Quando cheguei no Flamengo, eu pegava muita carona com o Dadá. Ele morava na Rua Toneleros, também em Copacabana, e sempre me trazia de volta do treino. Era história todo dia... Ele é o verdadeiro Forrest Gump do futebol brasileiro. É o tipo do cara que gosta de contar histórias... Outros nomes de peso do Flamengo nessa época eram Doval, Zanata, Liminha, Tim, Zé Mário, Renato, que tinha sido goleiro da Seleção na Copa do Mundo de 74... Aí, fomos subindo eu, Zico, Rondinelli, Geraldo e aquela turma toda.
Como foi vestir pela primeira vez a camisa do Flamengo no time de cima e encarar a torcida rubro-negra?
Minha primeira vez no Maracanã, curiosamente, não foi diante da torcida do Flamengo... O jogo principal era Vasco x Internacional, pelo Brasileiro de 74, e a preliminar de juvenis seria entre Flamengo e Vasco. Quer dizer, minha primeira vez no Maracanã foi diante de uma torcida toda contrária. Foi uma situação meio complicada, já que éramos todos garotos e jogamos o tempo todo sob vaias dos vascaínos... Aí, fui pegando o hábito de jogar clássicos, tanto na temporada normal como nas decisões. Mas é complicado dizer o que senti nesse dia, já que é impossível traduzir sentimentos em palavras. Jogar para a torcida rubeo-negra foi uma sensação que fui ter, aí sim, naquela decisão do Brasileiro de 92, contra o Botafogo, especialmente no segundo jogo, quando tínhamos 95,5% do Maracanã tomado pela torcida do Flamengo. Nós tínhamos vencido o primeiro jogo por 3 a 0 e, com o primeiro gol na segunda partida, passamos a ter realmente o título nas mãos. Aí, veio o reconhecimento todo da massa, a festa para o último remanescente daquela geração de 80. Quer dizer, o que minha memória guardou não foi exatamente minha primeira vez no Maracanã, mas esse momento de 92, quando os 100 mil rubro-negros no estádio gritavam "Ei, ei, ei! O Júnior é nosso rei!".
Se você pudesse voltar no tempo, voltaria para 81 ou 92?
Se eu for pensar individualmente, voltaria para 92, mas coletivamente... Não. Acho que eu voltaria para 81. Porque cada uma das duas conquistas têm um significado diferente... A conquista de 81 foi o fim de um trabalho começado em 74, um trabalho de sete anos que teve toda aquela estruturação do clube, começada no período de 74 a 78, feita pelo Márcio Braga. Tinha também um laço de amizade fortíssimo entre os jogadores, já que eu, Cantarele, Adílio, Andrade e Zico estávamos juntos desde aquela época. Fora o pessoal da reserva... Aquilo não era um time, era quase uma família. Existia um laço de amizade que é muito forte até hoje. Já o Brasileiro de 92, para mim, é a cerejinha em cima da torta. Eu já estava com a torta nas mãos e trouxeram a cereja.
Ainda assim, não foi um mero detalhe...
Não. Foi muito especial, pois era uma situação muito única. O clube não tinha grana, eu era o último remanescente da geração de 80 e tinha que segurar todas as barras sem perspectivas de receber... Além de jogador e capitão do time, fui um pouco braço direito do Carlinhos e conselheiro dos garotos que jogavam comigo e me faziam muitas perguntas. Quer dizer, fiz um pouco disso tudo e, no final, veio o coroamento com o título conquistado em cima de todas as dificuldades. Por isso, tenho também um chamego muito
grande com tudo aquilo que aconteceu em 92.
Boa parte do time de 92 era formada por jovens e você acabou sendo a cara do Flamengo naquele título. Como foi suportar toda a pressão sobre os ombros?
Ah, mas isso era normal, pois minha cabeça já estava diferente do atleta em atividade, em plena carreira. Nessa época, eu já estava me preparando para deixar a profissão, ou seja, já via as coisas com olhos bem mais racionais do que 15 anos antes. Eu sentava com os dirigentes para discutir determinados assuntos quase como um deles. Minha relação com eles não era mais de jogador com dirigente, mas já era de igual para igual. Afinal, eu já era pai de família e tinha cabelos brancos (risos). E a situação no clube não era boa... Eu fiquei muito tempo sem receber, também abri mão do meu salário para que outros pudessem receber os seus e o ambiente no time não fosse abalado... Quer dizer, as dificuldades foram muito grandes até chegarmos onde chegamos.
Voltando aos anos 70 e 80 na Gávea, como era a relação entre os jogadores
daquela geração fora do campo?
Onde um ia, todos iam, porque éramos quase todos solteiros. Um amigo nosso tinha um sítio em Jacarepaguá e, a cada conquista nossa, o grupo inteiro se juntava lá para comemorar. Quem não ia a esses eventos era muito cobrado, tinha que ter uma razão muito forte. Aquele lazer era um complemento do nosso trabalho. Mesmo com todas as peladas, churrascos e cervejas, ainda assim a gente conseguia falar de trabalho nesses ambientes... E era nesse tipo de evento que a gente cobrava de quem não estava rendendo, o que vi acontecer novamente vários anos depois, com o Gaúcho, nessas finais de 92. Ele era artilheiro, estava em evidência, era o rei do Rio e ficou meio deslumbrado com a noite carioca. Quando o Brasileiro foi chegando ao fim, o Carlinhos chegou para mim e disse: "Ó, soube que o Gaúcho tá saindo à noite..." Imediatamente, chamei a responsabilidade: "Deixa comigo!" Marquei um churrasco de confraternização na minha casa, chamei a galera toda e, depois que ele já tinha tomado uns dois ou três chopes, eu, Gilmar e Gottardo chegamos nele: "Pô, meu irmão... Está faltando uma semana para acabar o campeonato e você está aí, curtindo a noite! Espera acabar... Quando acabar, você vai poder curtir a noite por completo. Agora, não!" Quer dizer, foi um pouco daquilo que acontecia na minha época, dez anos antes... Havia uma forte ligação com tudo que tinha acontecido antes. E só assim foi possível ter sucesso com um time que tinha suas limitações técnicas, como em 78. Nosso time não era nenhuma maravilha, mas chegou.
Como eram administradas as vaidades no time do Flamengo do início da década de 80?
Um fator a nosso favor era que a estrela da companhia sempre foi uma pessoa que se colocou de modo a não deixar esse tipo de problema acontecer. Tudo graças ao comportamento e à atitude dele. E nós tínhamos uma grande vantagem, que era a torcida que cada um fazia para o companheiro. Sempre, em qualquer situação. Me lembro de quando o Zico se machucou na Copa de 78... Para nós, que ficamos aqui, era como se ele estivesse conosco. Justamente porque a ligação entre todos do grupo era enorme. E é graças a essa ligação que todo mundo fala daquele grupo ainda hoje. O segredo era esse mesmo: torcer sempre pelo outro, pois assim crescíamos em conjunto. Se o Zico fizesse uma boa renovação de contrato, nós faríamos a mesma coisa, porque estávamos nos mesmos parâmetros não só dentro do campo, mas também fora dele. As atitudes dele com crianças, velhos e torcedores fanáticos, por exemplo, servia de referência para o resto do grupo, simplesmente porque ele era um de nós.
Essa geração do Flamengo começa os anos 80 ganhando quase tudo que disputa. Em algum momento houve 'já ganhou'?
Muito pelo contrário. Nós tínhamos pessoas por trás daquele time que se encarregavam de não deixar nossa motivação acabar. Tinha sempre algo a mais para conquistar, além dos benefícios que ganhávamos, como direito de arena, percentual na renda... Quanto mais nós conquistávamos, mais queríamos conquistar. Por isso, nunca houve acomodação. Parte disso graças a dirigentes como Domingo Bosco e a outros nomes do Flamengo como Cláudio Coutinho. A importância deles sempre foi muito grande, pois estavam constantemente nos abrindo os olhos. Em 1983, quando o presidente era Antônio Augusto Dunshee de Abranches, nós vínhamos de uma situação ruim no Campeonato Brasileiro e precisávamos de uma vitória em Porto Alegre para que, no Rio, pudéssemos brigar por uma vaga nas finais. Nós já tínhamos participação na renda há algum tempo e o Dunshee, nesse dia, entrou em nossa reunião e disse que nos daria um prêmio extra se vencêssemos o jogo. Pedi a palavra e fui contra: "Não precisamos de prêmio extra para ganharmos o jogo. Não iremos correr mais por causa de um prêmio extra. Isso não vai modificar, de jeito nenhum, o nosso comportamento." Isso acabou ficando como uma demonstração de que não estávamos interessados só na grana. Estávamos preocupados, sim, com a conquista, que mais tarde nos traria uma boa renovação de contrato.
Por que você acha que, quando se fala nessa geração do Flamengo, pouco se diz a respeito dos treinadores? Que importância tiveram os técnicos para o Flamengo de Zico, Adílio, Andrade, você...?
Na verdade, os que ficaram mais marcados foram o Cláudio Coutinho, que montou a estrutura do time, e o Carpegiani, que passou de jogador a treinador. O Coutinho sempre trabalhou muito bem a parte psicológica do grupo, foi sempre uma preocupação grande dele. Por exemplo, com o Reinaldo, que veio do América para ser reseva no Flamengo, ele sempre chegava e batia nas costas: "Esse aqui é maior ponta-direita do Brasil!" Aí, ele perguntava, brincando: "Poxa, por que então você não me convoca para a Seleção?!" Quer dizer, ele estava sempre estimulando os reservas para que eles pudessem estar sempre motivados, já que o time de futebol não se resume aos onze titulares... E isso era uma prioridade dele. Tinha também a metodologia de trabalho dele, como não levantar a voz durante o trabalho e ter suas opiniões próprias, ainda que fizessem chacota delas. Sim, pois o Flamengo jogava, há dezenove anos, o futebol que se joga hoje. Os pontas voltavam, o cabeça-de-área sabia armar e os dois laterais, malucos, iam a toda hora para o ataque. E isso tudo proporcionado pelo entrosamento que havia entre os jogadores. A gente fazia isso de olhos fechados. Na Seleção, por exemplo, a gente repetia essas jogadas, como aquela que resultou no meu gol sobre a Argentina, na Copa de 82. Aquilo foi jogada do Flamengo: o cara toca a bola para o Zico, se apresenta entre o beque e o lateral e o Galo mete na diagonal... A gente já tinha feito essa jogadinha milhões de vezes! Quer dizer, mais uma vez, o entrosamento fazia a grande diferença...Claro. Até os adversários descobrirem isso, a gente já estava anos luz à frente, tudo fruto do bom trabalho dos treinadores e da qualidade técnica do
O time tinha um líder, alguém que tivesse um comando natural sobre os demais jogadores?
Não. Essa responsabilidade era meio dividida. Raul e Carpegiani tinham mais experiência, pois eram os veteranos, já perto dos 30 anos. Além disso, o Raul tinha participado daquele time do Cruzeiro e o Carpegiani já tinha jogado uma Copa do Mundo. Ao mesmo tempo, quem usava a braçadeira de capitão era o Zico, pela representatividade dele tanto com o grupo quanto com a comissão técnica. Ainda assim, todos falavam e batiam de frente, era assim que funcionava. Eu mesmo sempre falava quando era necessário, como foi no episódio de Porto Alegre. Tinha que falar abertamente, mesmo que os outros não gostassem. Quantas vezes não pegamos jogadores mais novos e demos uma chamada: "Pô, meu irmão... Tá jogando dinheiro fora!!! Por que você não usa esse dinheiro para comprar um apartamento ou para algo melhor?" Quer dizer, era uma preocupação não só com o que acontecia dentro de campo, mas também na vida particular do cara. Aí estava o suporte para chegarmos onde chegamos. O torcedor só fica sabendo do Zico que meteu um "três dedos", do outro que bateu o escanteio e do cara que cabeceou, mas tem muita coisa por trás. Nada foi por acaso. Assim como outros representantes de outras equipes históricas, ressalta o entrosamento e o bom conhecimento que os jogadores têm dos outros como grande diferencial para o sucesso. Como você vê isso hoje em dia? Hoje em dia, não há mais essa identificação entre jogadores porque todo mundo muda de clube a toda hora. Essa turma de hoje que sobe para o profissional, por exemplo, não fica junta mais de cinco anos. Isso é um dado significativo, pois os caras de hoje jogam seis meses aqui, seis meses ali... Quer dizer, não tem como um jogador criar identificação com o outro, a não ser do contato deles nas divisões de base. Uma coisa que nos uniu muito naquela época, por exemplo, foi a morte do Geraldo, um companheiro muito querido e por quem tínhamos uma admiração muito grande como atleta, pois jogava de cabeça em pé e fazia malabarismos com a bola. A perda dele foi um sofrimento muito grande que ficou por algum tempo com a gente. No período entre 76 e 78, sofremos ainda mais por termos chegado perto do título algumas vezes e por termos perdido no fim. E o pior é que todo mundo estava louco para ser campeão e dedicar a taça ao Geraldo...
Depois do tri estadual, em 78 e duas vezes em 79, o Flamengo leva três títulos brasileiros, em 80, 82 e 83. Qual deles foi o mais difícil? E o mais importante?
(Pausa longa) Ah, o mais importante foi o título de 80. Além de já ser uma segunda fase daquele grupo, depois dos Estaduais da década de 70, foi um campeonato muito nivelado. Basta ver aquela final, contra o Atlético Mineiro de Reinaldo, Éder, Cerezzo... Era o grande rival do Flamengo naquela época. Além disso, foi também o título que nos abriu as portas para a Libertadores e, depois, para o Mundial.
Pois é, depois do primeiro Brasileiro, o Flamengo ganha o primeiro título internacional, a Libertadores, naquela final histórica contra o Cobreloa, com todo aquele clima pesado que culmina no episódio do Anselmo com o Mario Soto. Como foi a conquista do título e qual sua opinião sobre a Libertadores hoje?
Quando o Flamengo conquistou o primeiro título nacional e se classificou para a Libertadores, os dirigentes puseram o Mundial em Tóquio como objetivo e traçaram planos para que chegássemos a esse fim. Era sabido que vários times de qualidade excepcional acabavam eliminados por equipes bem mais fracas justamente por causa de fatores extracampo e, por isso, houve uma maior preocupação em relação, por exemplo, à arbitragem. O pensamento era esse: "O Flamengo tem um bom time? Tem. Então, vamos buscar respaldo junto à Confederação Sul-Americana para não ficarmos de fora devido a bobagens." Ainda assim, por pouco o Flamengo não fica de fora. O segundo jogo contra o Cobreloa não foi fácil... É verdade. Quase que a gente dança, mesmo com todas as preocupações. A primeira intervenção dos dirigentes foi trazer o segundo jogo de Calama, cidade do Cobreloa, para Santiago. Foi quando se criou todo aquele clima, com um cara arrebentando a orelha do Lico, o supercílio do Adílio... Quer dizer, no final, ainda bem que nos resignamos: "Ainda bem que perdemos essa porcaria aqui..." Nós tínhamos certeza de que, em qualquer outro lugar, ganharíamos bem em qualquer outro campo. Sem dúvida. Tanto que, terminado o jogo de Santiago, nossas preocupações eram a orelha do Lico e o supercílio do Adílio. Se eles ficassem bons das feridas, não tinha erro, pois nosso time era muito superior. O time deles era bom, mas o nosso era muito melhor. Se o terceiro jogo transcorresse normalmente, não tínhamos como perder, como não perdemos.
Que tipo de hostilidade fizeram a vocês, jogadores, no Estádio Nacional de Santiago?
Hostil é pouco para descrever aquele clima! A primeira coisa foi o Pinochet entrando no estádio dizendo a todo mundo: "Hoje, o Cobreloa é a pátria de chuteiras." Ainda tinha o batalhão de guardas armados de escopetas... Até os repórteres e fotógrafos estavam intimidados por aquele clima. Eu acho que a Libertadores de 81 acabou tendo essa função de chamar a atenção de todos os brasileiros para a importância da competição, talvez pela grande popularidade do Flamengo. Acabou havendo um envolvimento maior dos brasileiros na Libertadores depois de 81.
E o Flamengo, além de bom de bola, acabou provando que era bom também de briga...
Pensando friamente, aquele gesto do Anselmo foi errado, pois o jogo estava ganho e as coisas estavam resolvidas. Mas, naquela hora, a revolta era tão grande devido à covardia deles no jogo anterior que até o tranqüilo e sóbrio Carpegiani entrou naquela turbulência toda... Quem teria que dar o soco era o Nunes, mas o Anselmo, maluco, foi lá resolveu tudo: "Deixa que eu dou!" Acho que aquele soco trazia a revolta de todos os jogadores do Flamengo e, por isso, acabou saindo tão forte e fez aquele estrago. Porque o Anselmo não era um cara forte a ponto de pôr o sujeito na lona e arrebentar a cara dele daquele jeito.
Depois de passar pela Libertadores, o Flamengo vai a Tóquio tentar o Mundial. Como foi a preparação do time para a decisão? Hoje se fala muito na adaptação, na antecedência da chegada...
O Francalacci bolou um planejamento que determinava uma parada para treinos em Los Angeles, para quebrar o fuso, pois o objetivo era usar o menor período possível para adaptação no Japão. O grande lance sobre a semana que passamos em Los Angeles foi que o treinamento era sempre intercalado com diversão, para a aliviar a cabeça. Se ficássemos sete dias direto, só naquele treinamento, não daria certo. Por isso fomos à Disney, fizemos passeios... Não teria sido bom para o grupo se tivéssemos ficado 20 dias só falando no Mundial Interclubes, na jogo contra o Liverpool... Quando chegamos lá, a única preocupação era em relação ao frio. A gente sabia que estaria frio no dia do jogo, mas acabou nem fazendo tanto frio assim. Mas a mentalidade era a mesma de Los Angeles. Estávamos sempre com os instrumentos, tocando pagode... Tinha esse clima de descontração.
Houve alguma preocupação direta com o time do Liverpool, isto é, com o esquema tático e os jogadores deles?
Tinha, sem dúvida. A falta de intercâmbio era outra preocupação nossa, ou seja, a falta de informações sobre o Liverpool. Aí, entrou o Coutinho, que indicou um cara que nos arrumou dados sobre os jogadores, gráficos de como eles tinham jogado na Liga dos Campeões... Então, no dia do jogo, já sabíamos que o Dalglish jogava desse jeito, que o Souness jogava de outro jeito, que o Grobbelaar tinha um problema no gol... Já chegamos lá respaldados. Isso sem contar com a pose dos homens! A gente de agasalho e eles de terno. Para o Liverpool, o Flamengo era mais um time sul-americano que chegava em Tóquio, sem estrutura e sem condições de ganhar. Eles sabiam do Zico, que tinha jogado a Copa de 78 e o Torneio Bicentenário. Mas, fora isso, não sabiam nada. Acho que eles não se preocuparam tanto quanto a gente com aquele dia... Para nós, era muito importante ganhar aquilo ali por uma série de coisas. E os ingleses só foram se dar conta da importância daquele jogo para eles depois que a gente ganhou.
Fala-se muito na pompa do tratamento que os ingleses do Liverpool dispensaram a vocês. Como você descreve essa pompa?
Aquilo faz parte do próprio inglês, né? Nós estávamos de agasalho, tocando pagode lá no nosso canto, e eles passaram com aquele olhar: "Pô... É isso aí?" Na nossa cultura, aquela era uma forma que tínhamos de relaxar antes de um jogo importante. Para eles, isso jamais vai acontecer. Os caras deviam estar com a cabeça ligada no jogo desde a véspera... A gente também estava ligado, mas aquele momento de relaxamento era necessário. Não sei se foi um gesto de menosprezo deles, mas aquilo nos deu um gás ainda maior para o jogo. Mais tarde, enquanto fazíamos a corrente, eles novamente nos olhavam com reprovação: "Será que isso vai fazer ganhar jogo?!" Quando voltamos do intervalo, e o placar já estava 3 a 0, nós estávamos no mesmo espírito de antes do jogo, só que mais relaxados, enquanto eles... Aí, no segundo tempo, o Flamengo só tocou a bola... Pois é, foi um jogo de 45 minutos. A própria Libertadores teve um sabor de conquista maior do que o Mundial em Tóquio. Poxa! Jogamos bem e decidimos a parada na primeira metade do jogo, com um 3 a 0.
Como foi, depois do intervalo, voltar a campo já como campeão do mundo, para só esperar o apito final do juiz? Houve emoção durante o jogo?
Isso não chegou a acontecer, porque tínhamos pessoas ali que não deixavam que isso acontecesse. O Carpegiani e o Domingo Bosco nos enchiam os ouvidos: "Não está ganho ainda! Prestem atenção o tempo todo!" E nós já não éramos crianças! Eu tinha 27 anos, o Zico já tinha outros tantos... Já estávamos na Seleção Brasileira, eu tinha aspiração de jogar uma Copa do Mundo... Quer dizer, tinha muita coisa em jogo ali para a gente acabar se complicando por deslumbramento. Graças a nosso amadurecimento precoce e a nossa experiência até então, menosprezo e oba-oba passavam muito longe do time do Flamengo. Por isso, como já estava 3 a 0, a idéia era controlar a bola e deixar o tempo passar.
E depois do apito final, como foi a comemoração?
A gente começou a lembrar, um pouco depois, das nossas carreiras e de tudo que tinha acontecido até aquele momento. Nos lembramos também do Geraldo, que, se estivesse vivo, certamente estaria ali com a gente. Depois do estádio, fomos para o hotel, onde tinha uma recepção preparada, um jantar. E cada um foi ligar para casa, para saber como estava a festa no Rio...
Vocês tinham noção da farra que se fez no Rio depois da vitória?
Não. A gente não tinha idéia... Grande parte do grupo foi viajar, teve gente que seguiu para o Havaí, gente que foi para outros cantos... Ficamos eu, Zico, Tita, Adílio, que estava em lua-de-mel... Muita gente ficou para aproveitar que já estava por lá e que estávamos entrando em férias. Depois, sabendo da festa que estourou no Rio, eu vejo que teria sido muito mais recompensador ter voltado direto para o Brasil. A gente deveria ter voltado para aproveitar o momento, desfilando em carro de bombeiro...
Além de clube mais popular do Brasil, o Flamengo teve muitos timaços e grandes craques ao longo de sua história, mas é fato que o clube passa também ao grupo dos maiores campeões do país depois dessa geração de vocês. Vocês têm noção disso?
Claro, até mesmo porque, naquela época, a gente via de perto a reação da torcida. Uma vez, quando viajávamos de Itabuna para Ilhéus, um torcedor que acompanhava nosso ônibus largou a bicicleta e se pendurou numa janela aberta. Ficou todo mundo preocupado: "Puxa o cara para dentro ou ele vai morrer!" Aí, trouxeram o torcedor para o ônibus: "Cara, e a sua bicicleta?!" Só que ele estava numa felicidade: "Ah, deixa a bicicleta pra lá... Depois compro outra. Eu quero é estar com vocês!" Depois de uma coisa desse tipo, não há como não ter essa noção... Além do próprio crescimento, já que foram onze anos dessa geração, de 72 a 83. Hoje, ando pela rua e caras de 27, 28 anos, que viveram aquele tempo na infância, ainda me agradecem. Pô, isso é do cacete! E já se passaram vinte anos...
Enquanto houver torcida do Flamengo, vocês vão passar por isso nas ruas. Não tem muito jeito de evitar...
Não tem mesmo. E toda vez que algum jogador faz algo de errado, os que tiveram a felicidade de participar desse grupo vencedor e de atitudes tão boas acabam servindo de parâmetro: "Poxa, quem dera que Fulano tivesse a atitude de um Zico, de um Andrade..." Isso é muito bom para nós, é muito legal. Isso me dá um orgulho muito grande. Às vezes, o cara que viveu aquela época vem com o filho criança e diz: "Esse aqui é um exemplo!" Poxa, sabe lá o que é ser exemplo para o filho dos outros? Nós vimos essa geração crescer feliz, sempre sabendo que, mesmo que estivéssemos ganhando de 10 a 0, não sacanearíamos o adversário. Jamais procuramos tirar méritos do adversário. Muito pelo contrário, foi tudo com muito sacrifício e, graças a isso, crescemos muito.
E a Seleção, como foi? Você se lembra da sua primeira vez com a camisa
amarela?
Minha primeira convocação não teve muitas surpresas, até porque, em 78, já era esperado que eu fosse à Copa do Mundo. Por alguma razão, o Claudio Coutinho preferiu levar o Rodrigues Neto, já em idade avançada, e o Edinho, para jogar improvisado na lateral-esquerda. Pelo que eu estava fazendo naquela época, eu tinha mesmo grandes chances de jogar a Copa do Mundo... Quando ele voltou da Argentina e a Seleção foi fazer alguns amistosos, fui chamado, mas não houve grande surpresa de minha parte. Ele mesmo já tinha dito para mim: "Puxa! Como eu me arrependo de não ter te levado..." Eu ri: "Pô, isso agora não adianta mais nada..." Ou seja, depois que ele disse isso para mim, eu já sabia que, na convocação seguinte, eu seria convocado. Meu primeiro jogo foi Brasil x Uruguai, no Maracanã. Eu, Nílton Batata, Sócrates e Falcão estávamos pela primeira vez na Seleção principal.
Dizem que a camisa pesa na primeira vez... Você concorda?
Embora a Seleção principal seja algo especial, eu já tinha passado por uma experiência maravilhosa com a camisa amarela, jogando na Seleção olímpica de 76. Além disso, eu não era mais criança... Minha primeira convocação para a Seleção de cima, em 79, veio quando eu tinha 25 anos. Ou seja, eu já estava maduro, não tinha mais como me abalar com deslumbramento ou render abaixo do meu futebol por causa do peso da camisa. Era época de transição de CBD para CBF, uma nova fase...
Como foi sua experiência nas Olimpíadas de Montreal?
Foi excelente. Desde 76 eu estava com uma vontade imensa de voltar a curtir esse clima olímpico e, felizmente, voltei esse ano, em Sydney, e tive a sorte de viver de perto os Jogos Olímpicos mais maneiros já realizados até hoje. Porque a Vila Olímpica é realmente um lugar diferente, onde você divide espaço com Sugar Ray Leonard, Nadia Comaneci... Hoje não é assim, mas naquela época nós éramos amadores mesmo. Era aquela coisa do início de carreira, de jogar com a chuteirinha para ganhar um dinheirinho... E ninguém podia saber! Era amadorismo mesmo. Tanto que eu fiquei dois anos com um contrato de gaveta, daqueles que eram assinados profissionalmente e iam para a gaveta, só para poder jogar as Olimpíadas. Nosso azar foi jogar contra Alemanha Oriental, Polônia e Russia, que eram seleções saídas da Copa do Mundo de 74. A Polônia, por exemplo, só tira fera: Deyna, Szarmach, Lato... Infelizmente, pois os times que só tinham garotada como a gente, que foram Espanha e Israel, perderam para o Brasil. Foi fácil...
O clima dentro da delegação brasileira, como era?
Era maravilhoso, até porque eu nunca tinha vivido isso... Mas havia dificuldades na delegação, como, por exemplo, dois massagistas para todos os atletas. Um dos dois era o Nocaute Jack, que era o massagista do futebol, mas trabalhava para todo mundo. Uma vez tivemos que escondê-lo embaixo da cama, porque era um tal chegar gente da natação, do atletismo, da ginástica... E a gente dizendo: "Tá aqui não. Desceu..." E ele lá, quietinho, embaixo da cama. Infelizmente, não pudemos participar nem da cerimônia de abertura, nem do encerramento, pois os jogos de futebol eram disputados em Toronto... Ainda assim, tivemos um contato muito intenso com o pessoal do vôlei, com o pessoal da natação, com o João do Pulo... O João ficou no mesmo alojamento em que estávamos. Estava sempre com a gente, tocando um pandeirinho.
Você já era chegado num tinha pagode nessa época?
Ah, claro! Outros que gostavam eram o Mauro, do Guarani, o Marinho, do Bangu... Sempre que sobrava um tempo, a gente se juntava para tocar um pouco.
E a chegada à primeira Copa, em 82, como foi?
A Copa é o maior evento de que um jogador profissional pode participar e, além disso, o grupo que foi para a Espanha já dava mostras de que poderia chegar aonde todo mundo estava querendo. Minha expectativa, portanto, era enorme, como a todo estreante. Eu queria ver tudo, conhecer tudo... Como tínhamos perdido o Mundialito para o Uruguai na final, vínhamos no clima de tentar resgatar um pouco o orgulho brasileiro. Mas nada estava além do que sabíamos que podíamos fazer.
Assim como no Flamengo, o clima da Seleção de 82 parecia ser de muito alto astral...
Não era a mesma coisa do Flamengo, mas tinha algumas coisas em comum, como a intimidade que havia entre a maioria dos jogadores. Da primeira convocação da base daquela Seleção, em 79, até a Copa, foram três anos com o mesmo grupo. Muita gente do começo ficou no grupo: eu, Falcão, Zico, Éder, Edinho, Batista... Todos tinham começado juntos, com o Coutinho, e estavam chegando à Copa com o Telê. Como em todos os grupos, alguns jogadores tinham afinidade maior, mas não havia nenhum problema de convivência... Além da cobrança, muita coisa veio à tona depois da derrota, mas, na época da competição, não se falou sobre problemas entre jogadores.
Falando em cobrança e nas "coisas que foram ditas depois da derrota", você faria algo de diferente naquela Seleção se pudesse voltar atrás?
Talvez eu tivesse batalhado por um maior conhecimento das seleções européias, já que as sul-americanas nós conhecíamos. Nós sabíamos pouco das seleções da Europa, não conhecíamos os jogadores... Apesar de termos visto um jogo da Itália e alguns outros de outras seleções, aquilo não foi suficiente. Não havia um intercâmbio suficiente de informações. Na verdade, era mínimo! Hoje, o cara joga na Europa a todo momento... Tem sujeito com cinco anos de Seleção e 70 partidas disputadas. Na minha época, nos dez anos que ficamos na Seleção, jogamos 80 vezes. É claro que o Falcão procurou passar sua experiência européia para o grupo, mas era um conjunto de informações teóricas. Nada era visual. De convivência, menos ainda. Talvez tenha faltado esse conhecimento de alternativas táticas de outras equipes. No ano anterior à Copa, a gente tinha feito uma excursão excelente à Europa, jogando contra França, Alemanha e outros países, e nosso sucesso nessa viagem talvez tenha sido outro fator que colaborou para que tivéssemos aquele fim. Alguns dizem até hoje: "Ah, mas aquele time jogava muito para frente..." Tinha outra alternativa?! Não, pois nós tínhamos gente que jogava desse jeito e bem. Por que fazer diferente? Pelo resultado? Ele conta, mas graças a Deus faço parte de uma Seleção que não ganhou mas que até hoje é lembrada por quem gosta. Basta perguntar: "Quer ver vídeo dessa ou daquela?" Eles escolhem a de 82. É o que dá prazer a quem gosta...
Qual a importância e o papel de Telê Santana no prazer que essa Seleção acabou proporcionando à torcida, apesar da derrota?
O Telê teve o grande o mérito de tirar um pouco de cada um colocar tudo isso à disposição do time. A grande preocupação dele era não dar brechas ao individualismo, pois a Seleção era cheia de feras e artilheiros: Sócrates, Zico, Éder, Cerezzo... Gente que toda hora estava em capas de jornais e revistas. Daí vinha a preocupação dele em administrar isso, o que acabou não sendo necessário, já que o estrelismo estava fora da formação de cada um. Era uma Seleção que tinha um monte de estrelas, mas nenhuma queria brilhar mais que a outra. Era um brilho único. E o tratamento que o Telê dispensava a todos era igual. Quer dizer, os mais novos eram mais cobrados, ele enchia o saco dos caras, que era para eles melhorarem: "Vamos lá! Vamos lá!" Não dava brechas. Com os mais velhos, a cobrança também existia, mas era mais tranqüila, porque já havia uma confiança. O único que ele marcava de perto era o Sócrates, por causa do cigarro.
Tinha alguma cobrança também do próprio grupo em relação ao condicionamento físico do Sócrates?
Ah, tinha. A gente também ficava em cima dele: "Tem que diminuir... Presta atenção..." Tanto que essa foi a época em que ele mais jogou... Nosso preparador físico era o Gilberto Tim, que cobrava bastante do Sócrates. O Magrão não era propriamente um atleta, mas se transformou depois em um "meio atleta". Além de cobrar do Sócrates, ele ajeitou muito bem o posicionamento da equipe. Ele dizia: "Não vou deixar na direita um cara que sei que vai render abaixo do esperado. Aos que dizem que o lado direito vai ficar sem ninguém, podem ficar tranqüilos. Cairão por ali Cerezzo, Falcão, Zico..." Hoje em dia, você olha os gols do Brasil naquela Copa e vê que realmente sairam muitas jogadas boas, inclusive gols, pelo lado de lá. Telê nunca foi um estrategista, mas teve a capacidade de colocar as peças certas nos lugares certos. Eu vim ter essa confirmação já em 86, quando fui convocado como lateral-esquerdo, embora eu estivesse jogando há dois anos como meio-campo. Eu disse a ele: "Chefe, há dois anos não jogo ali. Vou precisar de um tempo para me readaptar... Também, se der uma brecha, pode me colocar no meio." Como o Falcão estava com o joelho meio baleado, terminei jogando a
Copa de 86. Além da honestidade dele... O Telê sempre foi um cara que honrou a própria palavra, que sempre fez o correto. Dizem que era ranzinza... Era, mas era menos em 86. Foi ranzinza porque queria ter o controle sobre o grupo para poder chegar aonde queria. Se afrouxasse muito, talvez não tivesse obtido os resultados que obteve.
Há quem diga que ele teria pecado por ingenuidade... Você concorda?
Não. Por falta de informação, sim. É aquele intercâmbio de que eu falava anteriormente. Foi mais isso do que ingenuidade.
Você acha que aquela derrota para a Itália foi justa, pela partida que jogaram as duas seleções?
Não dá para falar em justiça, mas acho que o resultado mais coerente com aquele jogo teria sido o empate. Pelo que jogamos naquele dia, não merecíamos ganhar, mas empatar.
E pela competição que fizeram Brasil e Itália?
Ah, pela competição, não tem o que falar... Mas o futebol é feito disso. Que justiça tem o Flamengo dar de 4 a 0 no Vasco, como fez na Copa João Havelange? O favorito, o dono do timaço era o Vasco... Não tem justiça! A palavra "justiça" não vale dentro do futebol, pois trata-se do único esporte coletivo em que o mais fraco pode ganhar do mais forte. Se a justiça é cega, no esporte ela é duas vezes cega... Não existe esse negócio de "é justo, não é justo", porque você pode passar 90 minutos atacando e perder o jogo em um contra-ataque! Méritos pro cara, que soube aproveitar o momento. Aí, você vai usar subsídios para tentar evitar que isso se repita e, mesmo assim, não vai conseguir. Não tem jeito...
Exemplo de zebra no futebol é o que não falta, a começar por 50...
Claro, claro... Alguns jogadores têm receio de falar em 82, mas eu tenho o maior prazer, porque estar naquela Seleção, para mim, foi um privilégio. Em 90, reuni aquela a galera toda na minha festa de despedida em Pescara, na Itália. Foi a primeira vez que a gente se reuniu depois de oito anos. Só não foram Éder e Edinho, que ainda estavam jogando, e mais um que não me lembro. Só três ficaram de fora. Mas o pessoal estava quase todo lá... Foi maravilhoso! Nós fizemos uma festa inesquecível depois do jogo. Primeiro, fiz um jantar só para o grupo e suas esposas, incluindo Telê e Ivonete... O curioso foi que, depois de oito anos, a neura do cigarro ainda persistia: "Ih, chegou o Telê! Olha o cigarro..." Aí, o resto do pessoal dizia: "Poxa, pode fumar! Agora já acabou!" Mas o fato é que o respeito ainda existia. Mas a festa foi demais! Pela primeira vez, vimos o Falcão fora de sua compostura, com a gravata torta até as sete da manhã. Foi o dia em que o rei perdeu a majestade...
Vocês tocaram pagode, como em 82?
Tocamos, sem dúvida. Eu levei uma galera daqui pra tocar com a gente... Teve de tudo, até o "Voa, canarinho".
Esse samba, aliás, ficou marcado como o "samba do Júnior", além de ter sido o hino da Seleção em 82...
É, mas ele não é meu, não. Ele foi feito pelo falecido Neneco, contemporâneo do meu irmão no vôlei, e pelo Nonô, da Mangueira. A música acabou ficando marcada depois de vender mais de 600 mil cópias em vinte dias. Sabe lá o que é isso?! São 30 mil cópias vendidas todo dia! A musiquinha era legal e a Seleção estava ganhando... Só tocava isso! Deu linha na pipa e foi embora. E a gente lá, tocando o tempo todo.
O Telê nos disse que não participava, mas sempre ficava por perto. Ele gostava do clima de festa, né?
Ele ficava sentado por perto, olhando, ouvindo... Porque ele também gostava de música. Tanto que, na festa de 90, quando o chamamos no palco para um agradecimento especial, ele pediu que cantássemos "Madalena" para relembrar aquela época (cantarola: "Madalena, Madalena/Você é meu bem-querer..."). Aí, nós tocamos umas dez vezes para ele.
Depois da tristeza de 82, o Brasil vai à Copa de 86 com vários jogadores de quatro anos antes e acaba eliminado pela França, sem o brilho que teve o grupo da Copa anterior... Quais as principais diferenças entre duas Seleções?
Aí, a gente já tinha mais conhecimento, mais intercâmbio e mais experiência tática do que na Espanha. Se, por um lado, a Seleção não tinha o mesmo brilhantismo técnico de 82, tinha jogadores mais novos em grande fase, como Müller, Careca, Casagrande, Julio Cesar... O comportamento tático também era atípico. Quando estávamos sem bola, todo mundo marcava que nem louco. Com a
O que faltou, então, para o título?
Faltaram dois joelhos: o direito do Falcão e o esquerdo do Zico. Se os dois estivessem em forma naquele ano, teríamos dado um tremendo salto de qualidade em relação às outras seleções. Porque tínhamos um bom meio-campo, mas faltava um cara como o Falcão, vindo de trás e com visão de jogo. Nosso meio, com Elzo, Alemão e eu, fez um bom trabalho, mas talvez tenhamos sentido a falta de um jogador que soubesse marcar e que saísse bem de trás, como homem-surpresa. Eram justamente as duas características fortes do Falcão. Outra função sentida foi a de armador finalizador, que era exatamente o Zico. Ele sabia como ninguém dominar a bola, driblar dois ou três e chutar em gol ou dar um passe magistral. O que faltou foi eles estarem 100%, o que não era culpa deles. O grupo que tínhamos era aquele e, dentro das possibilidades, fizemos o melhor. O engraçado é que, depois da Copa, quando vim para o Brasil, os jornais diziam que a Copa tinha sido razoável para o Brasil. Depois, quando retornei para a Itália, para começar a temporada no Torino, as atuações da Seleção Brasileira tinham sido excelentes. Porque eles computam tudo no scout que fazem: produtividade, quantas roubadas de bola, quantos passes certos, chutes em gol... Essas coisas, que hoje são importantes aqui, em 86 já tinham valor na Europa. Eu desconhecia, por exemplo, que tinha participado de 70% de todos os gols da Seleção na Copa. Eu me lembrava só da Espanha e da Argélia, mas o resto vinha do scout deles.
Você já falou do lado rígido do Telê e, antes da Copa de 86, houve aquele problema do corte do Renato e do conseqüente pedido de despensa do Leandro. Como o fato se abateu sobre o grupo?
Eu não estava no Brasil quando aconteceu o problema do Renato, mas posso dizer que o reflexo pior foi à renúncia do Leandro. A gente não conseguia acreditar... A situação após o corte do Renato estava tranqüilizada e já tínhamos, inclusive, feito alguns jogos, quando resolveram retardar nossa ida para o México, por conta de uma viagem que faríamos a Aparecida do Norte. Só depois é que viemos para o Rio e, à noite, embarcamos para o México. Quer dizer, se tivéssemos pego o avião direto de São Paulo, o Leandro teria ido conosco. Foi nesse período no Rio, entre a nossa chegada e o embarque, às dez da noite, que o Leandro disse: "Não vou". O pessoal não entendeu nada: "Que história é essa, cara?! O que é isso?" Ele continuava dizendo "não vou", mas não dava uma explicação precisa. A única coisa que dizia era: "O homem quer que eu jogue de lateral e eu não agüento mais. Se eu for, ele vai acabar me convencendo a jogar de lateral e eu não vou gostar..." E ele acabou não indo. Foi o Josi, que tirou o bilhete da loteria para, depois, jogar fora. Foi como reserva do Édson, que se machucou, entrou no time titular, fez aquele gol contra a Irlanda, outro na Polônia e o resto a gente já sabe...
Como você analisa, hoje em dia, como comentarista, o jogo contra a França? Você acha que o Brasil talvez tenha disperdiçado muitas chances?
Não, de jeito nenhum. No primeiro tempo, eles estiveram duas vezes com chances de abrir o placar, primeiro em um contra-ataque em que o Carlos fez pênalti e o juiz não deu, depois em um lance em que o Tigana entrou sozinho. Nós tivemos também as nossas chances, como aquela na prorrogação, em que o Müller toca para trás e a bola passa entre as pernas do Sócrates. Teve também a bola que o Müller chutou na trave, logo depois do nosso gol... No fim, foi um jogo muito parelho, muito igual. Vejam só como são as coisas... A prorrogação já estava rolando e o Sócrates estava para sair, para ser substituído. Só que, quando fui bater um escanteio de esquerda, senti a perna e tive de sair, dando lugar ao Silas, que estava pronto para entrar no lugar do Magrão, que ficou e acabou perdendo um pênalti na disputa de pênaltis. A verdade é que poderíamos até ter ido mais longe, mas, para o que achávamos que poderíamos fazer, cumprimos uns 80%. Era o que podíamos fazer sem os dois joelhos... Zico e Falcão teriam nos dado também mais personalidade, pois tínhamos muitos estreantes... Nossa defesa, por exemplo, jogava com Josimar, Julio Cesar, Edinho e Branco. Quer dizer, de experiente só o Edinho. No meio, os experientes éramos eu e Sócrates. E o resto era só garotada.
Um dos momentos marcantes do jogo contra a França foi o pênalti disperdiçado pelo Zico, seu maior amigo naquela Seleção... Como foi a situação dentro do campo e como foi a reação do Zico após a eliminação?
Na hora da cobrança, fui ao banco beber água e o Telê disse para mim: "Avisa ao Zico que é para ele bater!" Quando olhei para o campo vi que ele estava pegando a bola e respondi: "Acho que não vou precisar, não. Olha lá ele..." E tinha mesmo que bater. O cara batia mais que todo mundo, era o melhor, vinha de um aquecimento de quinze minutos... Depois de fazer um lançamento milimétrico daqueles, alguém diria que ele não estava pronto para bater um pênalti? E se ele não bate e algum outro perde?! Não adianta... Isso faz parte da história. É lógico que, depois, todo mundo ficou muito triste, mas a ordem era levantar a cabeça. Tantos caras ganharam uma Copa do Mundo e, além disso, não ganharam nada na carreira! E eu ganhei, graças a Deus, uma porrada de títulos cariocas, quatro brasileiros, um monte de vezes a Taça Guanabara, uma Libertadores, um Mundial... Não sei se eu trocaria isso tudo por uma Copa do Mundo, não... Sobretudo pela de 86. Pela de 82 eu trocaria...
Por quê?
Porque a conquista brasileira na Espanha teria mudado totalmente a visão das pessoas sobre o futebol. Eu acho que a vitória dos contra-ataques italianos fez com que o mundo inteiro passasse a imitar o futebol deles, que eram os campeões mundiais. Se o Brasil tivesse ganho, todo mundo teria copiado o futebol brasileiro, o que teria dado algo a mais ao futebol mundial.
Por falar em futebol italiano, foi lá que você passou uma parte grande da sua carreira, antes de retornar ao Brasil e viver uma segunda fase no Flamengo. Como foi?
A primeira coisa importante aconteceu antes da minha ida para a Itália, quando os dirigentes vieram com o contrato para eu assinar. Perguntei em que posição eu ia jogar... Depois da saída do Zico, eu já vinha jogando há algum tempo no meio e a lateral estava com o Adalberto, que vinha surgindo muito bem. Eu já estava com 30 anos e sonhava há muito tempo em jogar no meio-campo. Felizmente, o treinador do Torino tinha me visto jogando um torneio em Milão, como meio-campo, e o diretor falou: "Estamos te contratando como meio-campo." E foi maravilhoso. Consegui criar um ambiente excelente no Torino, que não fazia uma campanha boa desde 76. Com meu jeito extrovertido, fiz logo amizades e aprendi o básico da língua em dois meses. Criei uma identificação muito grande com a torcida do Torino, que é muito parecida até mesmo com a torcida do Flamengo. Se aqui existe a pele rubro-negra, lá existe a pele granatta, quer dizer a paixão pela cor do clube. Eles dizem: "Para jogar no Torino, você tem de ter a pele granatta." Por isso tudo não tive maiores problemas, a não ser no inverno, com aquele frio de 10 graus. Ainda assim, fui pegando as dicas e aprendendo a me virar: "Pôr um saco plástico no pé, usar uma camiseta por baixo, não sair de casa de cabelo molhado..." As dificuldades foram essas. Mesmo porque eu tinha casado há pouco e a ida para a Itália veio solidificar nossa relação, entre eu, minha esposa e meu primeiro filho, Rodrigo. Minha vida pessoal ia bem, assim como a profissional. No meu primeiro ano lá, nós fizemos a melhor campanha do clube nos últimos oito anos e fomos vice-campeões com um time bem abaixo do que se esperava. Quer dizer, mais uma vez, precisei superar dificuldades para vencer... Porque eu poderia, muito bem, ter ido para Juventus, Milan ou outro time de maior expressão, que fatalmente me daria mais do que o Torino. Mas o destino quis que eu fosse parar no Torino, que tem uma história de um time que caiu não sei onde, que é marcado por sacrifícios e que tinha um time de garotos, eu e mais dois caras tendo que segurar a barra toda... Era um estímulo muito grande, mas também uma cruz danada!
O jogador lá fica a par da história do clube?
Ah, claro. Não sei como está hoje em dia, mas, na minha época, a primeira coisa que faziam com os que chegavam era levá-los à Basílica de Superga para tirar uma foto e dizer: "Aqui bateu o avião e morreram não sei quantos." Até hoje o campo tem uma hélice do avião que bateu em 1946... Eu me perguntava: "Por que isso? Chega!" Mas não adianta, é uma tradição, uma coisa que você tem que viver com eles, faz parte da identidade do clube. E ainda tem a rivalidade imensa com a Juventus, que é a supremacia, é o clube que tem uma estrutura do cacete. Fica bem claro quem é a elite e quem é o proletariado em Turim. O que o Juventus quer, faz. Para eles, querer é poder. E o Torino sempre lutou com isso e luta até hoje. Inclusive, hoje em dia, alguns diretores do Torino fazem parte do conselho da Juventus, o que, para mim, é uma heresia. Quer dizer, é uma rivalidade que está no sangue deles.
É como um Flamengo x Vasco ou um Palmeiras x Corinthians?
Não, esses dois nem chegam perto. Talvez, o único que se aproxima no Brasil é o Gre-Nal. Lá, se o cara da Juventus puser uma camisa vermelha, está frito. Da mesma forma, se o torcedor do Torino for trabalhar de preto e branco, está morto.
Os torcedores te paravam na rua?
A toda hora. Principalmente depois do primeiro clássico que joguei, com vitória nossa aos 45 do segundo tempo. Bati um escanteio e o Aldo Serena marcou de cabeça. Pô! Foi a glória para todo mundo! E o Juventus tinha a base da seleção italiana, com Tardelli, Cabrini, Scirea... Além de Boniek e Platini.
Como foi sua integração à cultura italiana? Até hoje você conserva algum hábito trazido de lá?
Peguei tudo bem rápido, porque sempre fui um cara muito disciplinado e já era nessa época. Quanto à língua, não tive muita dificuldade para pegar as primeiras noções porque estava acostumado à sonoridade que eu conhecia da música italiana, da qual gostava e gosto até hoje, tanto que fui ontem à noite ver o show do Peppino de Capri. Na entrevista coletiva que dei na minha chegada, um jornalista da Gazzetta dello Sport que era torcedor do Torino - daqueles injuriados com a falta de títulos - acabou protagonizando um lance interessante. Ele falou lá de lado: "Não sei por que o Torino está trazendo um cara de 30 anos..." Eu pesquei no ar e fui perguntar a um jornalista brasileiro filho de italianos, o David Pastorin, que morava lá e nos ajudava com a tradução: "Foi isso mesmo que ele falou?! Foi o que eu entendi?!" Ele me confirmou e, depois, fui ao italiano perguntar por quê: "Qual é a razão de você fazer essa observação? Você me conhece? Já me viu jogar?" E ele explicou: "Porque normalmente não se traz jogadores de 30 anos, que são considerados velhos..." Falei: "Tudo bem..." O Campeonato Italiano começou, integrei a seleção da rodada por cinco semanas seguidas e disse ao jornal: "Isso é para responder a algumas pessoas que estavam céticas ao fato de eu ter 30 anos." Foi quando ele veio falar comigo: "Não era bem assim, mil desculpas, é que a gente está há tanto tempo sem ganhar..." Hoje somos amigos. Um problema que aconteceu comigo na minha adaptação à Itália foi o racismo, que toma proporções absurdas quando há uma rivalidade de futebol. Ficavam ligando para a minha casa: "Teu filho vai ficar doente, vai morrer..." Era assim mesmo. O problema é que a gente não sabia. Então, quando cheguei em casa, minha esposa estava com uma cara muito assustada e perguntei o que era. "Ligaram para cá, ameaçando, coisa e tal..." O que fizemos? Passamos a desligar o telefone em semana de clássico. Depois, na segunda vez em que disputei o derby, puseram uma faixa no estádio: "Leo, sporco negro", que queria dizer "Leo, negro sujo". O Juventus foi multado, os caras foram forçados a pedir desculpas e ainda tiveram que conviver com o presidente da Juve, o Agnelli, dizendo: "O único cara do Torino que eu gostaria de ver no nosso time é esse rapaz brasileiro." Aí, eu disse: "É impossível. Depois de conhecer a rivalidade, não posso jogar pela Juventus." Acabei ficando três anos lá, jogando bem, até que bati de frente com um treinador e fui para o paraíso.
Por que o paraíso?
Não que Turim não seja um lugar legal, mas fui para o Centro-Sul da Itália, para um lugar sem a rigidez e as formalidades do Norte, lá pelo Piemonte. O Centro-Sul é mais ou menos como o nosso Nordeste, mais lento e com pessoas extremamente atenciosas, generosas. Eu era o primeiro estrangeiro a jogar no
Pescara, que estava subindo da segunda divisão... Eram mais coisas a seremsuperadas e nós fizemos um bom campeonato, ganhando da Juventus, da Inter de Milão em San Siro, empatamos com o Milan também em San Siro... Dos grandes, não perdemos para ninguém em casa. Fora, empatamos duas e ganhamos uma... Sabe, essas coisas de time pequeno? Acabei ficando tão ligado aos caras que o padrinho da minha filha menor é um pescarês, meu amigão. Depois de dois anos, compramos um apartamento lá e, desde então, voltamos lá todo ano. Mantive também alguns laços com Turim, de vez em quando os amigos me ligam, mas só volto lá quando tenho mais tempo. Acabei ficando mais ligado a Pescara mesmo. Agora mesmo, em Sydney, o chefe da delegação italiana tinha acabado de deixar a presidência do Pescara quando cheguei lá. Era muito amigo do Moggi, atual chefão do futebol italiano e quem me levou para o Torino. Quando nos encontramos, foi aquela festa. Quer dizer, a ligação ainda é muito grande. Eu tenho uma filha italiana, né? Não tem como escapar. Na verdade, nem quero escapar.
Sua festa de despedida do Pescara, transmitida para o Brasil pela TV
Teve gente à beça chorando lá. Foi mesmo emocionante, porque o estadiozinho lá é pequeno, com capacidade para 30 mil pessoas e, no dia do amistoso que organizamos, havia umas 20 mil. Depois do jogo, dei uma volta olímpica no campo acompanhado do meu filho, que também era bem conhecido por lá. Ele sempre entrava comigo no campo antes dos jogos e chutava uma bola para o gol. Isso acabou virando um ritual lá, que se repetia antes de qualquer partida nossa. Ele acabou ficando conhecido também de um programa de TV que eu fiz por dois anos, comentando a rodada. Mas o curioso foi que, quando a gente começou a volta olímpica na minha despedida, ele me perguntou: "Posso chorar?" (risos) E eu falei: "Pode!" Chora aí, cara!" E ele acabou sendo uma das razões pelas quais eu voltei para o Brasil... O Zico tinha me mandado uma fita com gols dele e o moleque, que estava com seis anos, passava dia e noite vendo a fita. Todo dia, toda hora... Até que um dia, ele me perguntou: "Pai, quando é que eu vou ver você fazendo gols no Maracanã?" (pausa) Foi o impulso final, né? Apesar de estar já com 35 anos, eu ainda pensava em voltar... E o mais legal foi na final do Estadual de 91, no Maracanã, quando ele veio me abraçar no gramado: "Pai, nós ganhamos! Nós ganhamos!" Era como se ele tivesse jogado também...
Como foi a volta ao Brasil, depois de cinco anos? O Flamengo já estava completamente diferente do clube que você tinha deixado...
Depois de cinco anos, muita coisa muda, principalmente no ambiente de trabalho. Ainda tive de me readaptar ao tipo de jogo daqui, porque lá o futebol era de dois toques. Tive de retroceder um pouco para jogar um futebol mais cadenciado. Isso sem contar com o ceticismo, que mais uma vez apareceu: "Pô, trinta e cinco anos?! Vem fazer o que aqui?!" De novo, tive de lutar contra isso. O Flamengo estava num período em que não conseguia muita coisa, com treinadores saindo e entrando constantemente... Fui para o banco de reservas com o Jair Pereira, joguei de beque-central com o Espinosa... Foi num Flamengo x Vasco em que marquei o Bebeto. Ganhamos por 2 a 0, dois gols de Bujica. Até chegar o Wanderley em 90, dar um formato ao time e sair por uma bobagem. Aí, o Carlinhos veio depois, deu continuidade e me proporcionou mais três anos de lua de-mel com o Flamengo.
Como você compararia esse Flamengo com o time que você deixou cinco anos antes?
O Flamengo estava num plano bem superior, principalmente após o Estadual de 86 e o Brasileiro de 87, com Bebeto, Renato e Zico. Mas o Flamengo estava, de certa forma, carente de títulos, pois estava partindo para o terceiro ano sem conquistas. Aí, nós iniciamos esse trabalho com o Jair Pereira, na Copa do Brasil. O curioso é que a Copa do Brasil não tinha uma importância muito grande e o Flamengo, novamente, teve esse papel de mostrar a todo mundo a importância de uma nova competição. Era um caminho mais fácil para se chegar à Libertadores. E nós já sabíamos disso, tanto que brigamos com a diretoria quando a final foi marcada para Juiz de Fora: "O que é isso, pô?! Se a gente ganhar aqui, o Flamengo está na Libertadores!" Aí, fizemos o primeiro jogo em Juiz de Fora, ganhamos por 1 a 0, gol do Fernando, e depois empatamos em 0 a 0 com o Goiás no Serra Dourada...
Sua volta, então, já começa bem, com um título...
E, na verdade, minha intenção era voltar para jogar por mais um ano, tanto que essa era a duração do meu contrato. Os jogadores de mais idade geralmente assinam por dois anos, para poderem aproveitar a carreira até o fim, mas eu estabeleci que jogaria só por mais um ano. Minha idéia era, depois de um ano, enveredar por outra área, me tornando dirigente. Meu objetivo era esse, pois tinha visto na Europa que o futuro abriria espaço para os diretores esportivos, supervisores, coordenadores... Mas, como eu tinha feito um bom ano, acabei ficando mais um. Depois, outro. Aí, veio outro. Pronto: fiquei quatro. E tive um retorno muito além das minhas expectativas. Poxa, voltei à Seleção Brasileira em 92, aos 37 anos... Fiquei de janeiro a dezembro, até o jogo do problema do Romário, que não quis ficar no banco de reservas. Estávamos eu e ele, lado a lado, no banco. Quer dizer, vi aquilo tudo começar, de perto, sob o comando do Parreira. Tanto que ele me chamou depois para ser o observador de outras seleções durante a Copa dos Estados Unidos.
E como foi essa experiência?
Foi muito legal. E eu já esperava que fosse assim, tanto que deixei o cargo de treinador do Flamengo, em 93, para trabalhar com a Seleção. Era época de renovação de contrato e acabei optando por seguir um caminho bom. Se hoje eu penso em voltar à função de treinador, aquela experiência foi importantíssima. O que eu fazia? Assistia ao adversário no estádio, pegava a fita, escolhia as principais jogadas, editava, transformava um jogo de 90 minutos em 15... Com o auxílio de um rapaz na parte técnica, eu esmiuçava cada detalhe: "Pára aqui, segue ali, mostra aquilo..." Foi muito importante para mim. Tanto que hoje sou comentarista de TV, fazendo aquilo tudo que eu fazia há seis anos.
Fora a experiência do próprio futebol... Em sua segunda passagem pelo Flamengo, por exemplo, você se transforma no "dono do time", no "braço direito do Carlinhos" dentro do campo, como você mesmo disse...
Mas isso era uma obrigação minha... Eu não podia, por exemplo, ver alguma coisa errada dentro do campo e esperar pela opinião do técnico. Até por minha experiência. Eu não podia deixar passar o que eu achasse errado. Uma vez, em São Paulo, estávamos enfrentando o Corinthians pela Supercopa e, depois de abrirmos uma vantagem de 1 a 0, o Marcelinho desperdiçou duas boas chances de ampliar o marcador: na primeira, não rolou para o Gaúcho e perdeu a bola ao tentar driblar o goleiro; na segunda, chutou para o gol em vez de passar para o Alcindo, que entrava livre. Eu não podia ver uma coisa dessas e ficar quieto! Eu tinha de chamar a atenção dele, sempre com modos, pois ele estava começando a carreira. Quando acabou o primeiro tempo, o Wanderley, que nos treinava na época, sentiu que eu estava prestes a partir para cima dele e me advertiu no campo: "Calma, Léo! Calma, Léo!" Quando fomos para o vestiário, aí falei com ele: "Porra, Marcelinho! Está pensando o quê?! Isso aqui é coisa séria, não é brincadeira! Todos nós dependemos disso! Poderíamos estar 3 a 0 não fosse o seu egoísmo!" Falei para caramba... Era esse tipo de coisa que, mesmo com a hierarquia do Wanderley, eu não podia deixar passar.
E o Marcelinho te ouvia?
Ouvia, claro. Mas as chamadas eram com todos os garotos que jogavam comigo: Júnior Baiano, Djalminha, Paulo Nunes, Fabinho... Muitas vezes, quando estávamos concentrados no Rio ou fora da cidade, eu reunia essa galerinha e contava histórias para eles. Hoje em dia, quando vejo essa turma fazendo alguma coisa errada, penso com meus botões: "Pô, não foi por falta de aviso!" Porque não basta mostrar. O negócio é falar e dar o exemplo. Eu lembro que em 92, na semana anterior ao primeiro jogo das finais do Brasileiro contra o Botafogo, o Carlinhos juntou o grupo no centro do campo da Gávea para uma conversa. Estávamos lá quando vi, chegando de calção e chinelos de dedo, o Nunes, que estava em situação difícil na época. Chamei a atenção do pessoal e disse: "Vocês, que hoje estão aqui, precisam saber de uma coisa: aquele que está passando ali foi e é ídolo desse clube. É necessário que vocês prestem atenção nesse exemplo para que não aconteça a vocês o que aconteceu a ele. E é o tipo de coisa que pode acontecer a qualquer pessoa." Eu falava e dava esses exemplos a eles.
Vários jogadores do Flamengo de 92 ainda despontariam para o futebol depois, como Djalminha, Paulo Nunes e o próprio Marcelinho. Será que eles ainda se lembram das suas histórias?
Se lembram. De vez em quando, quando encontro um deles, ainda ouço: "Pô, se lembra daquele negócio que você falou para a gente? Lembra daquele outro conselho?" Quer dizer, a coisa ficou viva na memória deles. Enfim, a responsabilidade dentro do grupo é uma obrigação do jogador mais velho, que tem experiência e não pode armazenar os conhecimentos dele e não passar para a garotada. É mais ou menos a obrigação que deve ter o Romário hoje em dia... Que ele deve ter e tem. Na época em que trabalhamos juntos no Flamengo, eu o vi muitas vezes chamando a atenção dos caras.
Se você tivesse de escolher um só momento marcante do Brasileiro de 92 para guardar na memória, qual você guardaria?
Dentro de campo foi meu gol no segundo jogo das finais. Outro momento foi antes do primeiro jogo, quando estávamos reunidos no vestiário, durante a corrente. Carlinhos falou e passou a palavra para mim: "Fala alguma coisa aí, capitão..." Aí, disse para ele: "Carlinhos, vou dizer uma coisa que vem de antes da sua época. Todo jogador de futebol, quando começa a ganhar um dinheirinho, pensa logo em comprar uma casa para a mãe dele. Hoje, aqui, nós vamos começar a comprar os primeiros tijolos para a muita gente erguer casa por aí. Não é, rapaziada?!!! Vamos lá?!!!" (gritando) Perguntei isso olhando no olho deles. E eles responderam: "É! Vamos lá!!!" Dava para ver o brilho nos olhos deles! Aí, o Carlinhos me chamou num canto e disse: "Vai lá e segura essa garotada!" Respondi: "Amigo, acho que não vai ser preciso..." E deu naquilo, num resultado que nem Deus esperava!
Nem as duas torcidas que estavam aquele domingo no Maracanã...
E o Botafogo tinha um time muito superior e uma campanha bem melhor! A história acabou cristalizando essa superioridade alvinegra, mas na verdade o Flamengo tinha, além de você, a experiência do Gottardo, a qualidade do Gilmar, a excelente fase do Gaúcho... Mas não tinha o time do Botafogo, com Renato, Carlos Alberto Dias, Carlos Alberto Santos, Valdeir... Além disso, eles fizeram uma campanha que, se o campeonato tivesse sido disputado em pontos corridos, não teria para ninguém. Nós entramos graças a uma vitória do Vasco sobre o São Paulo, além da nossa vitória sobre o Santos.
Mas o Flamengo, depois, fez uma segunda fase irretocável...
Aí, sim. Depois do jogo contra o Santos, quando entramos para disputar a segunda fase, tudo começou a se encaixar de uma forma que não teve jeito de nós não levarmos aquele título. Ganhamos do Vasco duas vezes! Ganhamos do São Paulo uma vez, do Internacional no Beira-Rio...
Você concorda com a tese de que o amor à camisa teria pesado na final, de que o time de "crias flamenguistas" teria batido os "funcionários do Botafogo"?
A camisa pesa se você tiver dentro dela gente para carregar esse peso. Às vezes, ela pesa e o cara não agüenta. Você tem de ter estrutura para carregar aquele peso, que é bom à beça de carregar. Digo isso porque carreguei esse peso mais de 800 vezes, sou o recordista de jogos pelo Flamengo. No fim, esse peso acabou ficando leve.
Outro título que você leva em 92 é o de artilheiro do Flamengo...
É, deu uma zebra danada! (risos)
Zebra?!
Claro! Para quem tinha o Gaúcho no time, foi zebra. Acertei faltas de todos os jeitos, até não querendo. Contra o Atlético Mineiro, tentei colocar a bola na cabeça do Gaúcho e ela foi lá dentro, no ângulo.
De qualquer jeito, era visível que você participava de várias jogadas no Flamengo, inclusive chegando na frente... A artilharia acaba sendo resultado dessa sua presença, não?
Principalmente na parte final do Brasileiro, quando as coisas começaram a acontecer. Porque nós vínhamos fazendo um campeonato mais ou menos... Eu até vinha bem, pois tinha conseguido entrar em forma logo no início da competição. Eu vinha jogando bem! Me lembro, inclusive, de uma vitória nossa sobre o Corinthians em São Paulo, por 3 a 1, na semana em que eu tinha voltado à Seleção. A gente arrebentou com eles lá e me lembro que tive uma boa atuação. Eu só não esperava um desfecho daqueles...
E aqueles dois dribles no Renato, quando você o deixou sentado no momento em que jogo ainda estava 0 a 0... Algum significado especial para a partida?
Não, nada. Foi um recurso de jogo. Um recurso normal, mas que deixou o Renato injuriado. Tanto que, se vocês observarem as fotos, no segundo drible, ele entra no meu joelho e chega a pegar de raspão. Mas foi só uma pancada de raspão, sem maiores conseqüências...
Mas foi um momento importante no jogo, tanto que como o primeiro gol do Flamengo saiu poucos minutos depois...
Sem dúvida. Mas os 3 a 0 que fizemos no primeiro tempo foram conseqüência de todos esses fatores... Na verdade, o Botafogo perdeu para ele mesmo, além dos méritos táticos que tivemos naquele jogo. Naquele dia, houve nó tático. Além de outras coisas que aconteceram ao longo da semana... Sabe o que eu fiz com aquela molecada na semana anterior ao jogo? Porque o Botafogo era o claro favorito, vinha jogando pra caramba, mas os jogadores cometeram o erro de exteriorizar essa superioridade, o que eles nunca deveriam ter feito. Se a imprensa falava, problema dela. Eles não poderiam ter entrado nessa... Mas entraram e eu passei a cortar pedacinhos de jornais e a pregá-los no quadro de avisos. Aí, passava por um e dizia: "Baiano, vai lá ver o que estão dizendo de você..." Fui botando pilha nos caras, cinco dias. No fim da semana, o quadro de avisos estava cheio de recortes de jornal, de frases do lado de lá. Foi quando eu disse para eles: "Moçada, chegou a hora!" Foi mais um trabalho psicológico do que qualquer outra coisa... E o ambiente estava muito bom, com o grupo entrosado, o Gaúcho fora das noitadas...
Por mais que você tente minimizar os dribles no Renato, ali estava o maior ídolo do Flamengo deixando o maior ídolo do Botafogo no chão...
Por causa da galera, né? E o Renato estava jogando muita bola naquele ano... Talvez o Botafogo tenha desmoronado ali, sim, mas foram também fundamentais nossa vontade e o planejamento tático. Tanto que um dos heróis do Flamengo naquela partida foi um jogador que vinha sendo criticado à beça, que foi o Piá. A gente tinha avisado a ele: "Preste atenção, pois hoje você terá um espaço no campo para jogar como você nunca teve. É só você ficar esperto..." E ele acabou dando um passe para trás que acabou em gol meu. Deu um cruzamento para o Gaúcho fazer outro. E ainda fez uma grande partida! Quer dizer, teve um planejamento. Não foi uma vitória que aconteceu...
E seu filho, mais uma vez estava contigo na hora da festa após a conquista?
Não. Quando fizemos 3 a 0 no primeiro jogo, ele disse: "Agora, que já ganhamos, vou para a Disney." É... (risos) Ele não viu a final. Já estava com oito anos e preferiu viajar...
Já no final da sua carreira, você chega a receber uma proposta do Japão para parar de jogar ao lado do Zico, não?
Não. Isso não chegou a se concretizar. Se tivesse, talvez eu tivesse ido. Aqui no Brasil não seria possível, pois, embora eu ainda tivesse condições de jogar por mais uns dois anos, meu rendimento não seria o mesmo de 91, 92 e 93. Eu já tinha perdido velocidade, já não conseguia mais acompanhar a molecada... Não nos treinos, mas nos jogos. Aí, o que aconteceu? Apareceu o futebol de praia e achei melhor me afastar logo, pois ainda estou bem, estou legal. Eu poderia até ter jogado por mais tempo, mas certamente o meu rendimento não seria mais o mesmo.
Antes de voltar à areia, você ainda passa de jogador a treinador, quer dizer,"passa a viver do suor dos outros", como diz o Nílton Santos sobre a experiência frustrada que teve no Vitória. Você também sentiu essa dificuldade de adaptação?
Mas essa é a dificuldade da profissão. Eu tive essa experiência em 93, meio sem querer. Eu tinha encerrado a carreira em julho e o convite veio em setembro. O fato é que, mesmo sem fazer nada, acabei perdendo 6kg, só de preocupação. Porque o jogador, quando acaba o treino, vai embora. Já o treinador tem de pensar em tudo! É a preparação física, o horário, a programação... Tudo isso envolve o treinador, além dos problemas individuais de cada jogador. É esse tipo de coisa que vai consumindo o técnico, mesmo com cinco vitórias e um empate nos seis primeiros jogos, como aconteceu comigo. E fomos à final da Supercopa contra o São Paulo no Morumbi, acabamos prejudicados pelo Renato Marsiglia, que não deu um pênalti no Renato Gaúcho, e acabamos perdendo o título nos pênaltis. Meu time jogava bem! Montamos um esquema simplezinho que funcionou bem. Tivemos nossas carências, claro, já que havia um problema financeiro, mas nosso desempenho foi muito legal. Fizemos bem mais do que podíamos... Já em 97, na minha segunda vez como treinador, com o Kléber Leite, a experiência foi mais frustrante.
Por quê? Foi dinheiro novamente?
Nós conversamos, acertamos de trazer reforços e, depois que ele foi reeleito, todo o combinado não foi cumprido. Ainda assim, quase ganhamos o Rio-São Paulo, depois que eu recuperei o (Júnior) Baiano. Porque eles queriam mandá-lo embora: "Ah, nós vamos dispensá-lo!" Falei: "De jeito nenhum! Deixa o cara aqui!" O Romário, que estava desmotivado de montão, voltou à Seleção em dois meses.
Como é dirigir mega-jogadores que ganham mega-salários e nem sempre respeitam a autoridade de quem comanda? Esse abalo na hierarquia é um quadro bastante comum hoje em dia...
A hierarquia não pode ser imposta. É uma conquista. Naturalmente, o Romário não me via como um treinador tradicional. Ele teve glórias? Também tive. Ele ganhou bastante? Eu também. Ele me via como mais um deles. E eu falei as verdades para ele: "Pô, Baixinho... Esses caras na Seleção e você de fora?! Brincadeira, né? Nós vamos fazer um planejamento de treinamento para você e eu vou fazer contigo." E eu treinei com ele. "Ah, não gosta de fazer corridas longas? Então, vamos fazer curtas: 10, 20, 30, 40 metros." Se chegasse atrás de mim, teria de parar de jogar! Mas com todos eles eu sempre falei a verdade. Não tinha esse negócio de ficar cercando daqui e dali: "Você está entrando por isso, você está saindo por isso..." E o clima era excelente.
O que mais compensou e o que menos compensou em suas experiências de treinador?
Ah, mas eu não tive nenhum gostinho de viver muito a vida de treinador, não... Talvez, em 93 eu tenha tido algum, mas a experiência de 97 eu nem conto como experiência. O que valeu mesmo de 97 foi ter recuperado o Júnior Baiano no Rio-São Paulo. Uma das regras era aquele limite de faltas e ele teve uma atuação exemplar. Depois, foi bom encontrá-lo na Copa de 98 e ouvir dele: "Tá vendo? Você me ajudou a estar aqui..." Isso serviu de recompensa. Assim como é recompensador você falar as coisas para um monte de moleques e, depois,constatar que eles assimilaram seu ensinamento e que eles levam aquilo para o resto da carreira. Já a experiência de 93 foi diferente. Ela foi, de fato, uma experiência. Eu estava saindo de comandado para comandante dos outros comandados, de gente para quem eu dizia: "Não adianta, vocês não vão me enganar! O que vocês faziam, eu fazia junto! Há bem pouco eu estava com vocês!" Uma vez, os jogadores estavam jogando conversa fora no vestiário e não me viram chegar. Foi quando o Marquinhos, que hoje está na Portuguesa, percebeu e falou: "Ih, olha o homem aí..." Respondi para ele na hora: "Olha o homem é o cacete! Que história é essa?!" Como quem diz: "Agora vocês começar a mentir, só porque eu cheguei?!" Foi nesse clima que fui conquistando os caras...
Durante a Copa JH, antes de o Flamengo subir de produção e brigar pela classificação, a situação do time estava bem feia e voltou à tona a discussão de se vale montar um time de estrelas. Qual sua opinião?
Acho que a contratação de jogadores deve ser feita com um planejamento. Eu não vi em nenhum momento os dirigentes do Flamengo dizerem que estavam trazendo os jogadores que o Carlinhos tinha pedido. Eles trouxeram jogadores que eram bons para a mídia, isso sim. Porque contratar Gamarra, Denílson, Alex e Edílson não só dá qualidade ao time, como uma mídia impressionante. Mas, será que era isso que o Carlinhos queria?! Quando ele falava alguma coisa, a negociação já estava consumada. Os caras são bons para caramba? Não tenho dúvidas disso! O Gamarra até era necessário, mas os outros três precisariam entrar em um planejamento do Carlinhos! Sou fã do Denílson, adoro o futebol do Alex, mas o treinador precisa ser ouvido... Eu não estou discutindo a competência dos quatro, já que eles podem fazer a diferença, mas a necessidade do time talvez fosse mais o Edílson, um pouco menos Denílson e Alex. Imagine o Alex jogando no Flamengo no tempo em que o Romário ainda estava lá...
E a prata da casa? Qual a importância dela, até mesmo historicamente falando, para o Flamengo?
Se você fizer um levantamento de conquistas recentes do clube, os números vão provar a importância de jogadores formados no Flamengo para o clube. Isso não significa que os que vieram de fora não tiveram participação... Sempre. Ou você vai dizer que Gilmar, Charles, Gottardo e Uidemar não tiveram um papel fundamental em 91 e 92? Claro que tiveram... Isso porque eram jogadores de qualidade e os bons jogadores são sempre recebidos de braços abertos. O problema é quando as contratações sem critérios acabam causando insatisfação no grupo, pois o jogador médio não gosta de saber que o clube está pagando milhares e milhares de dólares para trazer outro jogador médio para o seu lugar. Porque o jogador sabe quem é melhor que ele. Ele é burro se não souber, não é verdade? O jogador top, que faz a diferença e realmente faz as coisas acontecerem dentro de campo, tem de ser tratado como um jogador top. O difícil é ver jogadores médios, que jamais deixarão de ser médios, se achando top. Aí é que está o grande problema. Às vezes, as pratas da casa se sentem injustiçadas com esses médios. Porque com a contratação de craques ninguém se chateia: "O cara é melhor, vou fazer o quê?!"
Saindo da grama para a areia, depois de abandonar o futebol, você vira craque de beach soccer. Quando é, aliás, que o futebol de areia, jogado por você no Juventus, vira beach soccer?
Em 93. Logo depois que eu encerrei a carreira, me ligou de São Paulo um cara que eu tinha conhecido na Itália dizendo que haveria em Miami um torneio de futebol de praia entre as seleções brasileira, argentina, italiana e americana. Ele me dizia também que iriam jogar Maldini, Zenga, Kempes... Como eu estava de férias, lá fui eu: "Vou lá conhecer isso aí..." Aí, conheci o Giancarlo Signorini, um napolitano que mora em Nova York e é apaixonado por futebol, que bolou o jogo: "Os caras não gostam porque termina 0 a 0? Então, vamos mudar as regras..." Diminuiu o campo, pôs cinco contra cinco, fez regras específicas favorecendo a técnica, cada falta é um pênalti... Ele foi o grande idealizador de tudo.
E o torneio, como foi?
Cheguei lá achando que fosse uma brincadeira. Pô, você já viu brincadeira com italiano e argentino?! Todo mundo quer ganhar! Jogamos eu, João Paulo (ponta-esquerda), Gerson Caçapa, Cassius (o irmão do Júlio Cesar) e o Brigatti (goleiro de São Paulo). Éramos nós cinco e uns garotos que eu nunca tinha visto. E foi uma guerra! Como era o primeiro, não tinha tanta organização e por isso acabou virando uma guerra. A final entre Brasil e Argentina foi fogo... Só que achei o jogo muito legal. Com organização e um bom juiz, só podia mesmo dar samba. Aí, resolvi me divertir um pouco mais, né? (risos)
Quer dizer, continuando a jogar futebol depois de abandonar o futebol...
É, pois eu não tinha mais condições de jogar o futebol de campo e a verdade é que não há nada melhor para o atleta do que a competição. E foi assim que os torneios foram sendo organizados e nós acabamos sendo responsáveis pelo crescimento do esporte. Digo "nós" porque me refiro também a Zico, Edinho, Cláudio Adão e Paulo Sérgio. Eu, pelo fato de ter jogado futebol de praia desde moleque, já conhecia as manhas e consegui me destacar no negócio. E estou envolvido com isso até hoje por puro prazer, já que é um esporte do cacete. Poxa, você só viaja para lugares legais! Apesar da hepatite que contraí na Bahia, na última vez que fui lá, é muito prazeroso viajar por todos esses cantos. Ou seja, é por essas razões que estou desde 94 no beach soccer, sendo referência, dando meu recado: "Fulano, faz assim joga assado..."
O beach soccer meio que recupera uma coisa que o futebol de campo vai aos poucos deixando de lado, que é o prazer da pelada, de malabarismos que você vê o tempo todo na areia...
Isso aí é uma coisa que a gente tem visto mesmo: bicicleta, voleio, chute de primeira... São recursos que são usados sempre e o público gosta, né?
Você falava há pouco do clima olímpico e da sua felicidade por estar em Sydney... Você ainda sonha em disputar de novo as Olimpíadas, caso o beach soccer se torne esporte olímpico?
Não, não dá mais. Para mim, já acabou. Além disso, 2004 está muito longe!
Nem jogando os cinco minutos finais, estando no grupo para passar experiência à garotada?
Aí é que está o problema. Eu não me satisfaço com isso. Por isso que não continuei a jogar. Porque o pessoal fica falando para eu jogar um tempo, um pedaço do jogo... Eu?! Jogar um tempo?! Nunca fui disso. Sempre fui fominha à beça! Ou jogo os 90 minutos, ou não vou jogar. É a mesma coisa com o beach soccer. Agora, por exemplo, estou me recuperando de uma hepatite e enquanto eu não tiver condições de jogar os 36 minutos, eu não vou voltar. Só vou voltarquando eu puder jogar do primeiro ao último minuto. Eu me conheço e não posso estourar os meus limites. Graças a Deus, tenho meus neurônios todos no lugar e trabalhando bem e, por isso, sei até onde posso ir. E estou mais do que satisfeito por ter podido continuar no esporte mesmo depois de encerrar minha carreira no futebol profissional. Porque muitos outros gostariam de ter passado pelo que passei e não tiveram a oportunidade... E eu ainda estou aí, me divertindo.
E esse projeto seu, a escolinha de beach soccer, como começou?
Isso aqui foi um projeto que começou há alguns anos atrás, quando notei que
cabeça e saí atrás de patrocinadores. Estávamos quase fechados com a
Todos os que chegam para fazer a inscrição recebem uma ficha e preenchem
Haja esforço para viabilizar um projeto desses...
Mas tudo isso existe graças à Secretaria de Esportes e à boa vontade de
como eu, trabalha de graça por puro prazer. Criamos empregos para oito
Tem algum caso em especial de um aluno que tenha chamado sua atenção?
Tem um rapaz surdo-mudo, que veio trazido pelo avô e participa ativamente da
Porque o boletim é uma obrigação aqui. A gente faz um acompanhamento
Então, a gente faz uma escala. Quem não estiver bem na escola, vai perder a
E você está sempre por perto, né?
De vez em quando venho aí, às vezes dou uma aulinha lá na areia...
E a Mangueira, você continua freqüentando?
De uns anos para cá, houve uma melhora muito grande na escola. Acabou aquele
Mais tarde, quando surgiu a Mangueira do Amanhã, ela veio fazer o convite:
Como surgiu sua identificação com a escola?
Gosto de música desde criança, quando aprendi a tocar pandeiro com meu tio.
Você chegou a ter algum contato com o passado da Mangueira?
Ano passado, participei de uma entrevista para a revista da escola com o
Desde 1973 desfilo na escola.
Você, então, chegou a ter algum contato com Cartola?
Vi, demais. Não tive afinidade ou um contato maior, mas estive com ele. Meu
Algum Carnaval inesquecível?
O de 1984, que foi o primeiro do Sambódromo. Minha esposa, Helô, estava
Quais os seus preferidos dentro do samba?
Fundo de Quintal, Jorge Aragão, o pessoal do Cacique de Ramos, a Beth
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