Urubu – Rei do Maracanã
Todo mundo concorda que o Flamengo não é um clube como os outros. E que o Flamengo se diferencia de todos os outros no mundo porque no Flamengo nada é por acaso. Absolutamente tudo no Flamengo tem uma razão de ser. Desde os nomes dos barcos da nossa flotilha de remo (sempre batizados em tupi-guarani, conforme reza o nosso Estatuto) ao numero de estrelas no Manto Sagrado, nada no Flamengo é feito porque vai ficar bonitinho ou porque tá na moda. Tudo no Flamengo tem um sentido, tudo no Flamengo encerra um significado maior. Por isso, quando a era Popeye já entrava em seu ocaso o quê ou quem seria o novo mascote do Flamengo permanecia uma incógnita. Fosse animal, mineral ou vegetal, para ser mascote do Flamengo o troço tinha que ter substância, fazer por merecer. No democrático Flamengo mascote nenhum ia ser imposto à base de canetada.
E foi a torcida mesmo que decidiu a questão. O urubu tornou-se nosso segundo e definitivo mascote na tarde épica de 1º de julho de 1969. Quando uma solitária ave da ordem dos falconiformes decolou das arquibancadas à esquerda das Tribunas de Honra e sobrevoou altaneira, com uma pequena bandeira vermelha e preta atada aos pés, o gramado do Maior do Mundo. Era um domingo de sol e neste mesmo gramado dentro de minutos Flamengo e Botafogo se enfrentariam em mais uma edição de um clássico que o Flamengo não vencia há quatro anos.
A ornitologia nunca foi um hobby popular no Brasil mas naquela inesquecível tarde/noite no Maracanã, o público (em sua esmagadora maioria, leigo) não ficou indiferente ao inusual avistamento da ave e reagiu com a verve e a objetividade que são habituais ao carioca. Os gritos de É Urubu! É Urubu! É Urubu! espocaram imediatamente. Ao início jocosos e debochados, vindos das arquibancadas à direita das Tribunas.
À medida que o pássaro negro executava preguiçosamente suas evoluções aéreas sobre o relvado ia conquistando os corações do povo flamengo e incendiando as arquibancadas. Em poucos segundos o É Urubu! É Urubu! É Urubu!, insulto recorrente das torcidas adversárias, foi expropriado para sempre pela revolucionária torcida do Flamengo.
E o grito pegou. É Urubu! É Urubu! É Urubu! Nas multi-étnicas bocas rubro-negras ele se arredondou, ganhou consistência, musicalidade e harmonia. Depois de encantado pela mística vermelha e preta o insulto infame criado para envergonhar os humildes se transmutou em brado de auto-afirmação. O que para os adversários era deboche virou demonstração de orgulho e o mal disfarçado racismo da injúria voltou-se como flecha vingadora na direção de quem covardemente a lançara. Numa consagração instantânea o Urubu dominou o Maracanã pela primeira vez e incendiou para sempre a torcida do Flamengo.
Ainda que se espalhe homogeneamente desde o México até o norte da Argentina, o Maracanã jamais poderia ser confundido com o habitat natural da espécie. Aquele urubu, já devidamente ungido pela massa flamenga, que após seu sobrevôo caminhava gingando pelo gramado, tinha que ter sido levado até o Maracanã por alguém.
Quem levou o urubu, devidamente contrabandeado para dentro do estádio enrolado num bandeirão do Flamengo foi o jovem rubro-negro Luiz Octávio Machado, morador do Leme, que há muito tempo se abespinhava com o racismo inconfesso que os adversários do Flamengo destilavam contra os pobres em andrajos que sempre foram os alicerces das multidões rubro-negras. Na sua sensível percepção da nossa injusta sociedade esse jovem visionário teve sua centelha de gênio ao concluir que o Urubu deveria ser um símbolo do Flamengo e de sua valente e, em grande parte, despossuída torcida.
O próprio Luiz Octávio relatou: Os torcedores do Botafogo sacaneavam demais a torcida do Flamengo. Naquela época, Fla e Botafogo faziam o clássico de maior rivalidade depois da "era Garrincha". Os botafoguenses gritavam com ironia e rancor que o Flamengo era time de urubu, ou seja, time de negros.
Junto com seus colegas, Luiz Octávio foi na sexta-feira anterior ao clássico até a antiga favela da Praia do Pinto tentar capturar um urubu para levá-lo ao Maracanã. A caçada às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas resultou infrutífera e no sábado os guerreiros partiram então em direção ao depósito de lixo do Caju onde após alguma luta um urubu menos ágil foi convencido a aceitar o convite para conhecer as instalações esportivas do Estádio Mário Filho. Após algumas previsíveis dificuldades de adaptação da ave ao artificial meio ambiente de um apartamento do Leme tudo estava pronto para a grande estréia do urubu no dia seguinte.
O resto é História.
Mengão Sempre
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