O Flamengo, o Flamengo*
Há formas de se lembrar das pessoas que, sem dúvida, as eternizam. A memória mais importante, para mim, sempre foi a emocional, ou seja, aquela que não tem a ver com os atos cometidos pelo lembrado de forma estrutural. "Fulano fundou a escola tal" ou "Sicrano fez uma ponta em Rio Babilônia" ou mesmo "Beltrano vendeu 10 mil apólices de seguro". Não, nada disso. Tal tipo de recordação eu guardo para personalidades da História, da ciência, etc. Quando se trata de um pai, devemos priorizar aqueles pequenos grandes momentos. E a receita tem obrigatoriedades: é obrigatório saber onde você estava, onde seu pai estava, geograficamente falando, até onde ele pisou com o pé direito e saber o dia certinho disso, e a hora.
E aí fica essa pergunta: como dispor de um registro tão minucioso se não existisse o futebol? A definição do jornalista corintiano Juca Kfouri é quase perfeita: "O futebol é a coisa mais importante das coisas menos importantes". Eu trocaria, talvez, por "menos importante das mais importantes".
E a outra pergunta é: e se não fosse o Flamengo? Se não fosse o Flamengo, eu não teria memória.
Todos os anos, no dia 13 de dezembro, um cara que eu não vejo há 22 anos reaparece forte na minha frente. Baixo, muito forte, de bigode sóbrio, cabelos pretos mas com alguns nuances de grisalho, barrigudo e hipertenso. Todos os anos, no dia 13 de dezembro, eu me lembro que ele me acordou aos gritos, "Nunes! É gol do Nunes! Gol do Nunes!". E eu, aos 13 anos, a mente embargada de sono, os olhos tentando enxergar o João Danado aos berros, num mundo lúdico, que parece hoje jamais ter existido. E o sorriso naquele homem que eu não vejo há 22 anos.
E se homem não chora, sei lá se eu sou mesmo homem, porque as lágrimas continuam vindo, sempre, quando lembro daquele instante de rara felicidade.
Naquela época, os jogos de Tóquio não aconteciam de manhã no Ocidente, como hoje manda o departamento comercial lá dos japas. Se não me falha a memória, as pelejas tinham início por volta de uma da manhã, talvez meia-noite.
Aquele jogo entre Flamengo x Liverpool iria coroar uma escalada que tinha começado em 1978, com o gol de Rondinelli. Neste, mais um alimento para a memória: sei onde ele estava, quais passos ele caminhou, com o rádio ligado altíssimo, Waldir Amaral berrando gooooool (berrava sempre curto, mas naquele dia, aos 41 do segundo tempo, foi mais longo a ponto de, por muito tempo eu ter achado que era Jorge Cúri), e a gente só sabendo que era do Flamengo quando veio a palavra Rondinelli.
Quem não gosta do futebol ou do Flamengo nunca, nunca vai entender. Pai e filho vivendo aquilo, começando em 1978, até a coroação no mundo em 1981. Para aquela criança de 13 anos, os heróis do Flamengo (eram sempre os mesmos, duravam anos no clube) tinham ido ao Japão para uma guerra. Imaginava-os superando todo tipo de dificuldades - criado perto da Fortaleza de São João, apesar do regime de então, convivia demais com os militares e seu culto pelas glórias. Não podia pensar no Flamengo senão como um pelotão quase suicida mas que ressurgia sempre heróico.
E hoje, passados 25 anos, com os olhos meio querendo derramar alguma coisa, eu percebi uma coisa: para mim, meu pai também era do Flamengo.
Lutei o quanto pude naquela noite, mas o sono venceu. Pedi para o meu pai me acordar quando o jogo começasse, mas ele não conseguiu se lembrar, pois só pensou nisso no momento do gol do Nunes. Um gol maravilhoso, inacreditável, inconcebível - como costumavam ser os gols do João Danado. "Nunes, foi gol do Nunes!", diz o grito que resiste na memória.
Me lembro do baile que se seguiu, Júnior, Lico, Mozer, Leandro, Andrade, Adílio, todos dando um show, e, para variar, Zico brilhando contra o time campeão europeu. Me lembro dele dizendo, "o Flamengo é o maior do mundo", mas em tom apenas de confirmação, não de novidade.
Aqueles anos, dos meus 10 anos aos 15, sempre serão os grandes anos de minha vivência com ele, mas não por terem sido os últimos, mas graças a Zico, Júnior, Leandro, Andrade, Adílio, Toninho Baiano, Luisinho das Arábias, Reinaldo Bigode, Marinho, Raul, Cantarele, Carpegiani, Tita, Nunes, Júlio César Uri Geller, Mozer, Rondinelli, Manguito, Cláudio Adão, enfim, esses ídolos, essa lista à qual hoje adiciono meu pai. Costumo sempre escrever que de 1978 a 1983 vivemos a felicidade extrema, lado a lado, na TV, no rádio e no Maracanã. Mas como Zico se despediu no fim de 1983, ele acabou também se despedindo no início de 1984, meio de surpresa, meio que dizendo "E agora como é que fico, nas tardes de domingo, sem Zico no Maracanã", mas feliz, com certeza, esteja onde estiver, graças àqueles anos. Graças ao Flamengo.
Por tudo isso, no dia 13 de dezembro eu sempre me emociono com a visita deste, que eu não vejo há 22 anos, mas que contemplo todos os dias na memória do coração.
*Texto publicado também em http://www.jblog.com.br/gustavoalmeida.php, onde provavelmente será torpedeado pela torcida arco-íris nos comments.
quarta-feira, 13 de dezembro de 2006
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