terça-feira, 31 de julho de 2012
Alfarrábios do Melo
Saudações
flamengas a todos.
Semana
passada, alguns colegas do blog me pediram para postar uma passagem
específica da história do Flamengo. É o texto que deixo agora. Dá
uma boa reflexão. Boa leitura.
O
Flamengo acabou, renasce o Flamengo
1983.
Agosto.
As
tremelicantes lâmpadas do acesso aos vestiários do Maracanã
balbuciam murmúrios de luz, ajudando a emprestar notas de suspense e
melancolia a um ambiente carregado e denso como o pesado ar
impregnado de fumaça de cigarros e suor. O calor é infernal.
Jornalistas, torcedores, curiosos e áulicos em geral aguardam
ansiosos, numa angustiante espera de eternos minutos. Mas a pesada e
muito bem escoltada porta insiste em se manter fechada. Insiste em
silenciar, teima em manter no ar o mistério, afinal o que há com o
Flamengo?
Pouco
antes, o Maracanã assistiu a uma partida histórica. O rubro-negro
sofre uma derrota antológica para o Botafogo de Berg, Nunes e
Josimar, 3-0 que por pouco não vai de seis, não fosse Raul. A bomba
de efeito retardado, armada desde a fatídica saída de Zico,
finalmente parece ter explodido. Rangidos. A porta se entreabre. A
primeira revelação já assombra e choca os presentes.
Dunshee
de Abranches não é mais o presidente do Flamengo. Acaba de
renunciar.
Embora
brusco, o desfecho não é de todo inesperado. Dunshee já
demonstrava sinais de isolamento desde o início do ano, quando sua
condução diante dos problemas do elenco (briga de Nunes com
Carpegiani, morte do supervisor Domingos Bosco, insistência na saída
de jogadores como Tita, demissão e reintegração do preparados
Francalacci) foi considerada inadequada. Mas a gota d'água foi mesmo
a rumorosa saída de Zico, na esteira da conquista do tricampeonato
brasileiro.
Muito
já se falou e se escreveu sobre a transação que levou Zico à
Udinese. Uns alegam que o Galinho teria forçado a saída, de olho na
independência financeira, outros já cravam que Zico poderia ficar,
mas Dunshee, de olho nos valores da transação e receoso que o
craque recebesse passe livre dali a dois anos, teria dificultado as
manobras para a permanência do ídolo. Seja como for, a venda de
Zico se inseriu em um processo maior, em que os grandes centros
europeus (notadamente a Itália) investiram pesadamente para
contratar os melhores jogadores brasileiros em atividade, num
movimento que uma economia frágil como a brasileira pouco poderia
evitar.
Mas
o torcedor não quer saber de movimento, de macroeconomia, dessas
coisas de dotô. Zico foi embora. E como é que ficam as tardes de domingo?
A
saída de Zico é uma catástrofe climática de efeitos devastadores.
Muros pichados, vidros quebrados, carros destruídos. Dunshee, o
grande vilão da história, posa em uma foto onde simula choro, o que
enfurece a muitos. O time, apático e atônito, começa a desenvolver
atuações melancólicas diante de um Maracanã às moscas. Dunshee
reluta em reforçar a equipe, mas abre algumas negociações, diante
da grita generalizada. Tenta o ponta João Paulo, os atacantes
uruguaios Alzamendi e Ramos, o centroavante Careca. Todas as
negociações fracassam, e Dunshee se vê a cada dia mais isolado. A
queda parece iminente. E chega o dia.
O
que se segue à renúncia de Dunshee é uma hecatombe de proporções
bíblicas. O Flamengo entra em uma situação de colapso
generalizado, em todas as esferas. Todos os vice-presidentes
renunciam em cascata, cabendo a Eduardo Motta a condução, em
caráter interino, do clube até a realização de novas eleições,
um processo que se caracteriza pela luta acirrada e selvagem de
várias correntes, seitas e grupúsculos pelo poder, erguendo-se o
próprio Motta e George Helal como os postulantes mais fortes. A
Gávea está inteiramente à deriva, parece paralisada, letárgica,
nas cordas. Mas ainda vai piorar.
O
treinador Carlos Alberto Torres, que já não gozava de prestígio
com os jogadores, entrega o cargo, leal a Dunshee. A diretoria
interina resolve efetivar o preparador
Francalacci, que assume cheio de ideias inovadoras, buscando emular o
espírito de Cláudio Coutinho. Mas o momento não é de invenção.
O elenco está abatido, desmotivado, inseguro, perdido.
E
começam as invenções. A camisa 10 do Flamengo se torna um
maçarico, carbonizando um jogador a cada semana. São tentados Lico,
Adílio, Peu, Júnior, e mesmo Leandro na função. Nenhum deles
sequer consegue jogar um futebol minimamente aceitável. Jovens como
Adilson Heleno e Gilmar Popoca também são testados e fracassam de
forma retumbante (curiosamente, a maior de todas as promessas, o
jovem Bebeto, é preservado por estar submetido a um trabalho de
reforço muscular).
E,
como em uma ópera macabra, o Flamengo se arrasta, as carnes expostas
em um calvário surreal que não parece ter fim. O time é humilhado
pelo América (1-3), leva bola na trave, Raul pega pênalti e um
placar de sete ou oito não seria absurdo. Mas não escapa do Bangu,
leva de SEIS (6-2) num jogo bizarro em que o time joga com dois
meias, dois volantes e a função de ponta-de-lança é executada
pelo lateral Júnior. O Maracanã gelado, moscas e pirilampos como
testemunhas.
O
clube está inerte, parece anestesiado, não parece sentir os golpes.
Num empate (1-1) com o Bonsucesso (jogo em que a melhor figura em
campo é o goleiro Raul), Júnior esmurra um torcedor que o acusa de
“rebolar” no jogo. A diretoria é acusada de deixar o dinheiro da
venda de Zico rendendo em aplicações financeiras enquanto Raul vai
buscar os juros e a correção monetária no fundo da rede. Até
mesmo os mais idosos, que viveram a deprimente década de 1930, estão
assustados. As cassandras e vivandeiras anunciam, trombeteiam e
gemem, nucas arrepiadas de prazer: O Flamengo acabou. O Flamengo
morreu.
*
* *
1983,
dezembro.
O
Maracanã sorri numa noite de festa, engalanado numa festa de fogos e
luzes. Após uma partida dramática, em que atua boa parte da segunda
etapa com nove (Adílio e Mozer fazendo número), o Flamengo vence o
Bangu e conquista a Taça Rio. Os jogadores pulam e vibram,
preparam-se para repetir o costumeiro ritual de desfilar lentamente
diante da Nação, a pesada e reluzente taça carregada por dois ou
três. É o desfecho de uma arrancada sensacional, em que o time
vence todos os clássicos, com direito a um chocolate (3-0) que
rebaixa o Vasco para a Taça de Prata (segunda divisão do Campeonato
Brasileiro) e a uma exibição consagradora (3-1) contra o queridinho
Bangu da cidade. Em jogo-extra, o Bangu é derrotado novamente e o
Flamengo ergue-se novamente campeão. Os jornais manifestam um
sentimento de viva incredulidade, e agora parecem atônitos. Ninguém
sequer cogitava o Flamengo novamente campeão tão cedo, meses após
a maior crise de sua história recente.
O
rubro-negro não vencerá o Estadual. Mas a auto-estima está
resgatada. O Flamengo novamente mostra deter uma força interior
incontrolável e imensurável. Como sempre, demonstra resistir a
adversários e colaboradores, e por mais que vergue, por mais que
pareça sucumbir, por mais que as evidências demonstrem a
catástrofe, o melancólico epílogo, a morte, a instituição se
realimenta, nutre-se das intempéries e irrompe ainda mais forte,
soterrando ao limbo os agentes de sua derrocada. Quando, moribundo,
parece enfim expirar, desperta animado e rejuvenescido por forças
que emanam de suas próprias entranhas, de sua própria existência,
de sua própria Nação.
Assim
é o Flamengo. Assim é a Natureza.
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