quarta-feira, 6 de junho de 2012

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos.

O meu lado torcedor está aliviado com a certeza de que jamais verei aquele sujeito sugando as energias que emanam do nosso sagrado manto. Mas a que custo? Pois o episódio da rescisão judicial, que promete ainda se arrastar por longos meses (para gáudio de uma mídia faminta) mostra que o nível de amadorismo e incompetência de alguns clubes ainda permite que viceje uma luxuriante fauna de espertalhões, morcegos e trombadinhas. E no fim, perde a instituição.

Pelo menos, a presidente está nua.

Hoje dou sequência à série que trata do centenário do futebol do Flamengo. E nessa passagem, começam a se formar traços importantes da personalidade rubro-negra, que serão trazidos até os dias de hoje. Boa leitura.

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Tuc, tuc, tuc.

As batidas são secas, surdas, duras. Compassadamente, um tropel de pés pesadamente cobertos por botinas de aspecto militar faz reverberar um ruído marcial, que ribomba vibrando o pavimento da avenida que ladeia a Praia do Flamengo. Assustada e intrigada, a cidade abre portas e janelas para conhecer e repercutir o estranho som.
É uma marcha, mas não são soldados. Um grupo razoável, coisa de quinze, vinte. Estão saindo do casarão do Nestor, lá do 22. Trazem uma bola nas mãos. Estão uniformizados, mas não é dia de jogo. Andam organizados, mas não formam fila. A rigor, apenas o soturno troar dos cascos no chão remete à caserna. Estão bem humorados, receptivos, conversam. Aceitam a abordagem de desconhecidos, que vão se deixando acompanhar pelo inusitado cortejo. E logo crianças, jovens e curiosos resolvem fazer parte da procissão. Seu destino é a Praça do Russel, onde há um campinho de chão batido.

É o primeiro treino da história do Flamengo.

Desde que conseguiu emplacar a criação do Departamento de Esportes Terrestres, o grupo liderado por Alberto Borgerth rapidamente tomou ciência de que não teria vida fácil. O Flamengo, apesar de já ostentar farto e amplo currículo de vitórias e conquistas no remo, está longe de ser uma agremiação rica e estruturada. Seu único patrimônio se resume ao casarão de Nestor de Barros, um de seus fundadores, e aos barcos com que compete nas regatas. Assim, a diretoria flamenga, ao ceder aos apelos de Borgerth, impôs algumas condições e ressalvas, sendo uma das quais a completa impossibilidade de adquirir e construir um campo de treinos ou mesmo um estádio. A turma do futebol teria que se virar.

Nesse contexto, é importante a manutenção da excelente relação mantida entre o Flamengo e o Fluminense, clubes que desenvolvem desde sua fundação uma interessante afinidade, uma cumplicidade que vai muito além do mero compartilhamento de atletas (vários futebolistas das Laranjeiras remavam no Flamengo). Emblemático é o caso de Virgílio Leite, um dos fundadores do Fluminense, que chega a acumular os cargos de Presidente do Flamengo e Diretor de Esportes do tricolor. Outros nomes constroem carreiras simultâneas na história dos dois clubes, como o goleiro tricolor Francis Walter, que chega a dirigir o rubro-negro. Nem mesmo a debandada dos campeões de 1911 abala a ótima relação entre a dupla Fla-Flu. Ao contrário, os jogadores dissidentes já eram tidos como inconvenientes pela diretoria tricolor, que aceita de bom grado seu acolhimento por um clube irmão. Ademais, Borgerth seguirá tendo bom trânsito nas Laranjeiras, sendo inclusive alvo de diversas homenagens futuras, patrocinadas pelo Fluminense.
E a cooperação seguirá. Em um primeiro momento, o Flamengo conseguirá mandar seus jogos nas Laranjeiras, após acordo costurado com o tricolor. Alguns anos mais tarde, a família Guinle, intimamente ligada à vida do Fluminense (são sócios e dirigentes atuantes) arrendará ao Flamengo o Estádio da Rua Paissandu, que se tornará a primeira sede do rubro-negro.

Não, Flamengo e Fluminense não desenvolvem qualquer resquício de rivalidade. O tricolor ostenta pesada rixa com o Botafogo, com quem divide as atenções e títulos dos primeiros anos de um futebol nascente. O Flamengo já desenvolve viva e intensa relação de confronto com o Vasco da Gama, clube contra quem trava acirradas batalhas nas águas da Guanabara. Fla e Flu inclusive irão se alinhar mais tarde, na transição do amadorismo para o profissionalismo, e justamente após o advento do futebol profissional a rivalidade irá enfim florescer com toda a sua força, especialmente no final da década de 1930 e início dos anos 1940, quando a dupla dividirá, em caráter exclusivo, todos os títulos expressivos em disputa na cidade.

Enfim, Flamengo e Fluminense são irmãos. Mas o Flamengo é diferente.

O Flamengo do remo é o Flamengo dos rapazes do 22, da República Paz e Amor que escandaliza a vizinhança com seu comportamento boêmio, é o Flamengo que comemora seus títulos nas regatas com festanças onde rapazes sentam e pulam sobre barris de madeira, onde escorre farto e denso o chope que é servido a qualquer interessado, é o Flamengo do casarão do Nestor, aberto a quem quiser entrar e sair, é o Flamengo do reco-reco e da bagunça organizada. É o Flamengo, o mais carioca dos clubes.

Os rapazes do futebol não demoram a perceber a mudança de ares (a rigor, já a conhecem). Não mais os salões emplumados e perfumadinhos das Laranjeiras. Não mais a elegância e o formalismo anglófilo do Fluminense, não mais os suntuosos e lautos jantares e bailes. Não mais os treinos fechados e silenciosos. O improviso, a irreverência, a alegria, o jeito festeiro agora irão dar o tom. Empolgados, os ex-tricolores atletas abraçam a nova casa com entusiasmo. Agora, são Flamengo. E acima de tudo, jovens.

Os treinos improvisados no terreno baldio da Praça do Russel começam a chamar a atenção. A cada dia, uma multidão se acotovela nos rebordos do terreno, ansiosos para assistir aos malabarismos de Borgerth, Gustavo, Gallo, Píndaro, os melhores jogadores da cidade. Abordam seus ícones, e são muito bem tratados. Muitos já desenvolvem uma relação mais próxima, quase de idolatria. O campo é central, amplamente visível para quem se desloca de bonde para o trabalho. Muitos chegam a descer da condução para acompanhar o treino. Com a repercussão e a visibilidade, os atletas do Flamengo passam a ganhar uma popularidade inesperada. E de repente, a cidade se vê torcendo por aquele grupo de jovens sorridentes e desprovidos de qualquer recalque.

Mais tarde, Borgerth irá declarar que se apaixonou pelo Flamengo de imediato, com todas as dificuldades, todos os problemas. E, com uma precisão cortante, soube como poucos dar o exato diagnóstico do que seria a essência flamenga. Com décadas de antecedência, parecia prever que seu novo clube seria um fenômeno de popularidade, conseguindo uma explicação cuja simplicidade ruborizaria os futuros e sofisticados estudos e suas teorias mirabolantes.

O Flamengo é a alegria e o riso fácil, o Flamengo é o moleque criativo que tenta ser sério. O Flamengo é o espelho do carioca.”

O campeonato vai começar.

Flamengo Net

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