terça-feira, 20 de março de 2012

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos.

 
Foi doloroso, frustrante, até irritante. Ceder um empate daquela forma e naquelas circunstâncias foi de alterar o humor até dos mais céticos. Limitações e equívocos do papai à parte, cumpre reconhecer que esse tipo de situação não surpreende, quando se tem em campo uma equipe coalhada de garotos. Há que se ter calma, paciência. O mais importante é acreditar no talento que a maioria desses jovens já demonstrou em sua preparação na base. É a hora do Flamengo reaprender a fazer a transição entre as divisões de base e os profissionais. De saber lançar jovens que, se não serão gênios ou supercraques, serão úteis na montagem de um elenco. De um time.
Hoje falo um pouco disso no texto. Boa leitura.

O momento certo

“Você está fora.”

As palavras ainda ressoam na turbulenta mente do garoto. Cruas, diretas. Uma rotina de sacrifícios, uma hercúlea sucessão de obstáculos que o menino havia derrubado um a um, somente com a expressão do seu talento e de sua crença. Havia outros clubes mais acessíveis, não seria difícil conseguir vaga. Mas tinha que ser o Flamengo. Ou o Flamengo, ou nada. Os três ônibus, a massacrante rotina de estudos, a completa inexistência de folga ou vida social. Nada disso tinha problema. Sentir o pesado pano flamengo roçar acetinadamente sua pele mitigava qualquer contratempo.

“Você está fora. Não conto com você.”

O Flamengo vive tempos difíceis. O time é limitado, totalmente aquém de suas tradições. Sem recursos, afunda em campanhas deprimentes no Estadual e no Brasileiro. “Põe os garotos”, e lá vai o menino ser jogado às feras, ainda imberbe. Craque dos juvenis, já chamava a atenção nas preliminares. Mas o profissional é outra realidade. Mesmo assim, o jovem agrada, faz partidas razoáveis. Logo na estreia, uma assistência. O primeiro gol não tarda. E o menino termina a temporada quase como titular. Não resolve o problema do time, mas promete. Muitos já o querem efetivado. De vez. Parece que chegou a hora.

“Se quiser, pode voltar pros juniores.”

Cheio de esperança, o pequeno craque vê o time se reforçar, “agora vai ficar bom”. O Flamengo abre os minguados cofres, pendura o que não tem e traz um time, traz treinador, enfim vamos ver um Flamengo bem representado. Só que o garoto não contava com aquelas palavras gélidas, guturais, secas. E fugazes. O consagrado treinador o chamara num canto e fora rápido, sem direito a réplica.

“Fora.”

Abandonar a carreira, seguir os estudos, procurar outro clube. Tudo fervilha, mas o garoto prefere se entregar ao seu sonho de criança. O caminho mais fácil é seguir lutando febrilmente pelo que acredita. Não aceita que a vida lhe tire a esperança. Resolve desafiar a vida. Recua. Volta pros juniores. Segue no Flamengo.
O time principal começa bem a temporada, ganha títulos, restitui ao Flamengo sua expressão gloriosa. Enquanto isso, o garoto segue esmerilhando a bola nas categorias de base, é o goleador, craque e campeão do torneio júnior. Passa a temporada, entra o ano seguinte, o Flamengo começa a perder produção, não consegue manter jogadores, as derrotas voltam a compor uma desagradável rotina.

“Chama o garoto”.

E lá vai o menino ser jogado aos leões, novamente entrando no fogo, de novo convocado para ser a solução de um time em queda livre. E de novo o jovem não decepciona, entra aqui e acolá, melhora o time, as vitórias voltam, enfim o garoto termina uma temporada como titular.

Agora vai.

Mas o futebol atraiçoa. Novo ano, nova troca de treinadores, novo time. Mas o garoto está muito em alta, a imprensa já se derrama em elogios a ele, e somente a ele. O torcedor, olhos de lince, o quer na equipe. No entanto, o novo treinador é cauteloso, prefere apostar nos mais rodados. Primeiro treino da temporada, distribui os coletes.

“Ei você, garoto. Faça a armação no time reserva.”

O corpo ferve, os olhos dardejam e marejam sangue. Ganas de ir embora, mandar tudo ao inferno. Quase chora, hirto de revolta. Companheiros percebem e o acalmam. “Faça o que sabe”, logo percebe como terá de ser a resposta.

Começa o treino. O garoto, transido de ódio e fome, sente-se alado, movido por uma energia desumana. “Isso aqui vai virar jogo”. E começa a compor sua obra. Em poucos minutos, o jovem esfacela toda a estrutura tática concebida para toda uma temporada. Simplesmente vai demolindo, pedra a pedra, a defesa titular do Flamengo. Começa a levar pontapés, “pra acalmar”, mas quando mais apanha, mais joga. E rabisca, costura, distribui passes, dribles e lançamentos em escala industrial. Assombra os privilegiados espectadores que passam a ensolarada tarde na Gávea. E é decisivo na vitória reserva por 2-1. Marca os dois gols, acaba com o treino. Ninguém acredita no que acaba de presenciar.

“Ei, garoto. Chega aqui. Você agora é o titular. Vai vestir a 10.”

O Flamengo vai para uma série de amistosos. Esses jogos definirão a sorte do menino. Sabe que, a qualquer mau desempenho, a reserva e a decepção estarão de volta. Mas, tranquilo e determinado, aceita seu destino. Os amistosos são um banquete de gols, dois aqui, três ali, e o time ganhando de seis, de sete. Chega a prova final, o rito de passagem definitivo. Corinthians, Maracanã lotado.

E o jovem não treme. Ao contrário, parece precisar de desafios mais fortes. A camisa do Flamengo, a multidão urrando, tudo o faz sentir-se em casa, à vontade. E cria jogadas com a banalidade de quem toma um suco ou lê um jornal. É o dínamo gerador de um futebol moleque, envolvente, veloz e voraz. O Flamengo não toma conhecimento do Corinthians, enfia-lhe 5-1 e o garoto tem atuação de gala. Dois gols, duas assistências, fora os incontáveis passes para gols perdidos pelos colegas. Acabou. É o garoto e mais dez.

Vai começar a Era Zico.

Flamengo Net

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