Saudações flamengas a todos.
A estranha campanha do Flamengo nesse final de Campeonato Brasileiro tem feito boa parte da torcida perder-se em pensamentos, dúvidas e questionamentos. O mau desempenho de alguns titulares aliado à promissora participação de alguns garotos (notadamente Muralha, Luís Antônio e agora Thomás) faz com que muita gente brade pelo aproveitamento imediato de todos os jovens. Eu concordo que esse time e esse esquema andam precisando de um sopro, sim. Mas é preciso ter calma, penso. Justamente por causa da pressa em subir esbaforidamente jogadores da base, muitos talentos foram perdidos precocemente. Guris que entraram aos poucos, renderam bem e por conta disso foram rapidamente alçados à condição de soluções. Sem estrutura física e emocional pronta, sumiram. Felipe Melo, Andrezinho, Bujica, Fabiano, Roger (goleiro) entre tantos outros.
Não sou contra o aproveitamento de jovens da base, muito pelo contrário. A essência flamenga passa por uma robusta usina de prospecção de garotos, meninos que aprendem desde cedo o que é padecer e desfrutar da penosa delícia de ser Flamengo. A questão é a necessidade de critério e calma para subir, no tempo certo, as revelações que surgem. E a consciência de que nem todo garoto promissor vai ser um craque incontestável.
Para ilustrar, trago uma interessante história ocorrida no auge da Era Zico. Boa leitura.
Estrela? Nem todos
1982. O Flamengo vive o auge de seu prestígio e de sua reputação. Melhor time do mundo, atual campeão de TODOS os troféus em disputa no cenário nacional e internacional, o rubro-negro se prepara pro clássico contra o Fluminense, pela Taça GB (vencerá por 3-0 num chocolate histórico, com direito a torcedor ajoelhado pedindo clemência a Zico). Enquanto isso, viaja a Assunção, onde derrota o Olimpia (2-0) em um amistoso atendendo a mais um dos inúmeros convites que surgem para assistir ao Campeão do Mundo. Enquanto isso, uma reportagem da Revista Placar chama a atenção: já estará sendo preparado o novo Zico?
Independente do improvável surgimento de um novo gênio como o Galinho, a matéria é ilustrativa, ao mostrar a força e a organização da gestão da base flamenga, onde luminares como Dida, Henrique, Silva e Carlinhos, todos ídolos rubro-negros, auxiliam na seleção e formação de talentos. Oito jovens, quase um time, são apontados como os mais promissores da safra, meninos que, avalia-se, terão plena condição de, no futuro, integrarem o elenco profissional do Flamengo. E mesmo de serem titulares. Mas os dias vindouros mostrarão que nem todos explodirão.
Um dos mais festejados é o centroavante Afrânio, muito habilidoso, indicado por ninguém menos que o próprio Sr. Antunes, pai de Zico. Outro jovem aguardado com certa expectativa é o meia China, dotado de boa capacidade de marcação. Mais um garoto bem recomendado é o meia-esquerda Adílson Heleno, jogador técnico, que cadencia o jogo e possui um chute extremamente forte. Mas nenhum desses terá vida longa no Flamengo. China e Adílson ainda terão certa projeção em centros menores (especialmente no Vitória-BA). Adilson conquistará a Copa do Brasil de 1989 pelo Grêmio, mas não conseguirá se firmar em nenhum clube.
Outro jovem muito aguardado é o atacante Wallace, garoto parrudo com boa presença de área e excelente poder de finalização, avalizado pelo seu próprio pai, Silva, um dos grandes goleadores flamengos dos anos 60. Wallace será lançado em 1986, fará algumas partidas pelo time principal, mas não resistirá à má fase da equipe na Taça Guanabara. Negociado, perambulará pelo país e pelo exterior até retornar ao Flamengo em 1994, em mais uma passagem apagada.
O meia Élder será um dos mais bem sucedidos. Versátil e capaz de ocupar espaços, fechar o meio e chegar com consistência à frente, Élder será aproveitado já em 1983 por Carlos Alberto Torres, sendo peça importante na conquista do tricampeonato brasileiro. Perderá espaço no segundo semestre em função do vendaval que assolará a Gávea após a venda de Zico, mas voltará a ser utilizado com frequência nos dois anos seguintes, até uma grave contusão abreviar sua trajetória no clube. Élder ainda atuará em outros centros (Cruzeiro, por exemplo), sem jamais repetir o excelente futebol do fulminante início de sua carreira.
Mas nenhuma decepção será mais emblemática que a do meia-atacante Gilmar, o Popoca. Camisa 10 de todos os times da base, em um determinado momento chega a chamar tal atenção que faz parte da torcida flamenga vir mais cedo ao estádio para vê-lo atuar. Técnico, muito habilidoso, dono de um arremate preciso e venenoso (primor em cobranças de falta), Gilmar rapidamente ganha projeção. É titular e principal jogador da Seleção Brasileira que conquista o Mundial de Juniores no México, em 1983. No ano seguinte, será o artilheiro e o melhor jogador das Olimpíadas em que o Brasil conquistará a medalha de prata. No Flamengo, é lançado com cuidado, participando bastante dos jogos da equipe em 1984, sem sofrer tanta pressão. E faz bons jogos. Mas em 1985, quando finalmente recebe a chance de envergar o sonhado Sacro Manto 10 Flamengo, suas atuações começam a decair. Surgem os primeiros muxoxos, as primeiras vaias. Com o retorno de Zico, volta ao banco. Zico se machuca, Gilmar volta a ser titular. Mas o encanto se quebra, Gilmar é um dos mais cobrados pelas opacas atuações de um time que não decola. E se apaga. O Popoca ainda permanecerá no Flamengo algum tempo, sempre como coadjuvante, até ser finalmente negociado e peregrinar por Ponte Preta, Botafogo, São Paulo, sem jamais chegar ao patamar que seu refinado futebol prometia.
Caso curioso é o do atacante Gaúcho. Portentoso cabeceador, boa posição de área, alguma velocidade e muita coragem, Gaúcho é apontado como o sucessor de Nunes. Ironicamente, terá trajetória idêntica à do João Danado. Será dispensado das divisões de base, explodirá em outro clube (Palmeiras) e acabará recontratado pelo Flamengo anos mais tarde, onde será ídolo, goleador e protagonista de várias conquistas, como o Brasileiro de 1992.
Por fim, para ilustrar como o futebol pode ser traiçoeiro às vezes, justamente o jogador visto com menos entusiasmo na matéria será o de mais sucesso. Garoto mirrado, franzino, muito técnico, um drible desconcertante, o menino é visto como talentoso, mas muito tímido e deficiente nas finalizações. Será trabalhado e lançado somente em 1986, mas sua ascensão será rápida. Deslocado para a ponta-esquerda, barrará o experiente Marquinho e não demorará para assumir o posto de titular, que não perderá mais. Surpreenderá a todos com sua personalidade e capacidade de entrega, sendo um dos pilares táticos de Carlinhos na conquista do tetracampeonato brasileiro de 1987. Ainda ganhará mais um Brasileiro, em 1992, já como um dos líderes do time. Copa do Brasil, Estaduais, o garoto colecionará títulos no Flamengo. Mas, quando estará próximo a ser o líder maior do elenco, será negociado para o emergente Palmeiras, onde também ganhará vários títulos. Viverá o auge da carreira em 1994, Campeão Mundial na Copa do Mundo. Rodará por mais alguns clubes (conquistará outro Brasileiro pelo Cruzeiro), até retornar ao Flamengo em 2004, para ser uma das referências de um elenco jovem e encerrar a carreira no ano seguinte, não sem antes acrescentar mais um Estadual ao seu vasto cartel.
Enfim, o balanço das trajetórias dos jovens apresentados na matéria mostra que o saldo é positivo. Três desses sonhadores garotos chegaram ao título brasileiro pelo Flamengo, mais dois deles conseguiram ser titulares do clube e os demais não tiveram êxito. Não surgiu nenhum Zico, é verdade, e jamais surgirá.
Mas, se a cada safra de jovens, o Flamengo conseguir revelar um novo Zinho, o trabalho terá obtido êxito.
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