terça-feira, 29 de março de 2011

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos. Após mais um empate contra um adversário inexpressivo (ao menos valeu a capacidade de reação), a impressão é de que, se o onze titular já exibe um esboço de bom futebol, o treinador ainda não conseguiu encontrar no elenco as peças corretas para a reposição de eventuais ausências. Se é que essas peças existem...

Seja como for, aí vai mais uma historinha dos Alfarrábios. Boa leitura.

A Alvorada do Sonho

1939. O Flamengo, após doze anos de jejum, enfim caminha para a conquista do Campeonato Carioca. O time de Domingos, Leônidas, do goleiro Walter, do zagueiro Newton Canegal (todos de Seleção), dos argentinos Volante, Valido e Gonzalez, e da grande contratação do ano, o ítalo-argentino Raimondo Orsi (primeiro ganhador de Copa do Mundo a atuar pelo Flamengo), vai dominando amplamente a temporada. Apenas o Botafogo ainda tenta, com muita dificuldade, acompanhar o ritmo flamengo, mas o campeonato já se aproxima do final, e o rubro-negro segue mantendo confortável vantagem na ponta. A mais longa espera da história flamenga vai chegando ao seu final.

O iminente título flamengo dá um importante sopro na imagem do clube, muito desgastada com a ainda recente indigência dos anos 30. O Flamengo se torna o time da moda, o objeto de desejo, admiração e inveja. Ninguém está indiferente à equipe de listras rubro-negras, a melhor do país, com meia seleção brasileira em seu elenco. Leônidas, no auge da carreira, ganha um prêmio atrás do outro, tem tratamento de estrela de primeira grandeza. Domingos arrasta suspiros idolatrados por onde passa. O Flamengo, a cada jogo, arrebanha multidões cada vez maiores em estádios superlotados, com gente pendurada em marquise, em árvore, gente arrombando portão, enfim. Todo mundo de repente quer ser Flamengo, quer ver o Flamengo. Os garotos sonham em jogar no Flamengo. Entre eles, um menino franzino de Niterói...

* * *

Em Niterói, um jovem de 18 anos divide o seu tempo ajudando o pai no trabalho, batendo bola nas peladas da rua e do clube e torcendo pelo Flamengo nas ondas do rádio. Todo mundo considera o garoto muito talentoso, bom de bola mesmo, “você devia procurar um clube, você sabe das coisas”. Encorajado, o menino vai atrás do América. O treinador rubro não o deixa nem entrar em campo, “muito franzino”. Vai no São Cristóvão. Começa bem, mas põe a bola entre as pernas do zagueiro Afonsinho, tenente de polícia, jogador de seleção e líder do time. Na jogada seguinte, leva um coice de Afonsinho, rebenta o joelho e sai do treino. Outra frustração. Desiludido, o garoto volta à sua vidinha normal, experimentando a alegria de ver seu Flamengo quase campeão e colecionando troféus de campeonatos de bairro. Até que num desses torneios, um olheiro do Flamengo põe-lhe vista grande.

Com a penúria dos anos 30, o Flamengo começara a criar uma rede de olheiros pelo Rio de Janeiro e arredores, com o objetivo de recrutar jogadores habilidosos e ainda desconhecidos. Seria o arcabouço de um trabalho de base que mais tarde se tornaria mais estruturado e logo renderia frutos. Um desses olheiros, dando uma checada num baba de Niterói, gosta do que vê e chama o garoto, quer testar no Flamengo? O menino a princípio titubeia, “esse negócio de fazer testar em clube não dá certo”, mas acaba aceitando. Tenta não criar expectativa, medo de nova frustração, mas por dentro o garoto arde. Sua paixão flamenga braseia-lhe o corpo incontrolavelmente.

No dia combinado, lá está o garoto, todo engomado, camisa brilhando, par de chuteiras impecavelmente polidas. Só que o menino tem uma inesperada companhia. Outros jovens como ele estão na Gávea, às dúzias, aos magotes. Todos são orientados a sentar ao redor do campo enquanto se inicia o treino dos profissionais. O menino nem pisca os olhos. Lá estão Leônidas, Domingos, todos eles. Fascinado, o garoto não consegue balbuciar nada, está petrificado. Eles ali, tão pertinho... O treino segue, o tempo vai passando, e Flávio Costa não faz a menor menção de colocar nenhum daquela rama de garotos que está ali sequiosa por uma migalha, uma mísera chance. Concentrado no treino e na reta final do campeonato, que nem cogita perder, Flávio não parece muito disposto a ficar testando garoto a essa altura dos acontecimentos. Eles que olhem e salivem pelos craques que estão ali à sua frente.

Acontece que o garoto, apesar de modesto e fascinado, guarda certa altivez. E, após se acostumar com o ambiente mágico ao seu redor, já começa a mostrar alguma impaciência, que vai virando desânimo. O tempo passa, e passa, e passa. O menino logo percebe que ali, naquele dia, não vai acontecer nada. O jeito é terminar de assistir ao treino e voltar pra casa. Terá valido pelas histórias pra contar aos vizinhos e à família. Enfim, é a vida. O garoto vai se perdendo nessas divagações enquanto rabisca o chão com um graveto. Súbito, o milagre.

Leônidas tenta uma jogada mais audaciosa, estica demais a perna e sente. Flávio, assustado, tira o craque de campo. Ainda faltam dez minutos. O treinador pensa um pouco e grita “Quem é o rapaz de Niterói?”, berro que rebenta como uma chicotada nos ouvidos do menino. Não pode ser, é comigo, só pode ser comigo, incrível, isso não tá acontecendo, é um sonho... “Sou e..e... eu, sim senhor

“O senhor vai entrar no lugar do Leônidas. Tem dez minutos pra mostrar o que sabe.”

Do Leônidas... logo do Leônidas... pô, mas o cara podia ter botado um reserva no lugar do Leônidas e me posto no meio dos suplentes. Logo do Leônidas... Eu, substituindo o craque do time... A cabeça do jovem fervilha, incandesce, mas o menino logo consegue voltar à razão. Pensa, “dez minutos é nada, se eu ficar tocando bolinha aqui não vai acontecer nada. Tenho que mostrar mais do que isso”. O menino já tem a idéia exata do que tem que fazer. Nisso, recebe a primeira bola.

O garoto ajeita, livra-se do primeiro marcador. Tem um bom espaço à frente. Arranca. Valido pede. Não. A bola é minha, deixa ela comigo. O menino segue, outro zagueiro vem na cobertura. Leva uma caneta. O menino não solta a bola nem a decreto. A arrancada é cortante, em diagonal, a bola sempre grudada em seu pé. Já está na área. Só o goleiro à frente. O keeper sai do gol, esbaforido. O menino meneia o corpo e põe o arqueiro no chão. Gol vazio. Toquinho. Palmas, muitas palmas. “Aê, garoto!”

Bola seguinte. É, tem essa coisa de sorte. Sorte nada, quer ver? O garoto recebe, gruda de novo a bola no pé e recita mais uma vez sua arrancada em diagonal, cerzindo a defesa adversária. Entra na área, o goleiro à sua frente de novo. Dessa vez fica no gol. O menino não vacila, manda uma bomba no canto. Outro gol, mais palmas. Flávio Costa, marcial, não esboça qualquer reação. Mas sorri discretamente.

Termina o treino. Flávio chega no garoto, “passe aqui amanhã, no mesmo horário.” É a senha, o menino está aprovado no teste. O sonho de jogar no Flamengo começa a virar um esboço, um rascunho de algo palpável, tangível. O jovem se despede de Flávio. Quando já vai virando as costas, o treinador pergunta: “mas qual o seu nome?”, “é Tomás, sim senhor”. E Tomás volta a tomar o rumo de casa, onde irá contar à turma de Niterói sua aventura na Gávea. O menino Tomás, o pequeno Tomás, o Tomazinho da turma das peladas, o Zizinho pro pessoal mais chegado.

E que, muito em breve, será o Zizinho do Flamengo.

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