terça-feira, 22 de março de 2011

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos. Empate chocho, atuação apática, treinador mexendo mal e dando esporro pra disfarçar, cornetas inflamando, alguns veículos de comunicação insistindo em continuar alimentando a lengalenga Adriano. Esse é o nosso Flamengo, agitado, mesmo tranqüilo... Obama? Hã? Vem pra qual posição? Já joga domingo?

Ah, aproveito para dar os parabéns à turma das Laranjeiras. Virar freguês do Boavista de Bacaxá não é pra qualquer um.

Mas chega de lorota. Falei de corneta aí em cima. Essa semana, conto uma história de um sujeito que exacerbou seu flamenguismo de tal forma que transbordou inclusive os limites do que se convencionaria chamar de bom senso. Um louco. Mas um dos grandes da nossa riquíssima história. Boa leitura.

Bicampeão, na bola e na audácia

1943. Uma das poucas unanimidades no início da temporada é o amplo e ostensivo favoritismo do Flamengo para a conquista do título carioca. Com efeito, a equipe que ganhara o campeonato de 1942 agora está mais encorpada, mais madura (mais “encaixada”, como se diria nos dias de hoje). É verdade que não há mais o atacante Valido, que se aposentara para montar uma gráfica, mas o time dirigido por Flávio Costa continua uma verdadeira seleção, um dos melhores da história flamenga. Nomes como o goleiro Jurandir, os médios Biguá e Jaime, os atacantes Pirilo e Perácio, o grande ponta-esquerda Vevé (extremamente talentoso), e principalmente as estrelas Zizinho e Domingos da Guia formam a base de uma equipe fortíssima, quase impossível de ser batida. E, com a fase de transição vivida pelo Fluminense, o time ainda muito jovem do Vasco, as crises políticas do Botafogo e a irregularidade do América, poucos acreditam que o Flamengo deixará escapar a chance de conseguir o bicampeonato. A conquista, sem maiores dificuldades, de um Torneio Municipal disputado na pré-temporada reforça ainda mais essa impressão.

Começa o Carioca e o Flamengo já mostra as credenciais, ao passar por cima do Botafogo (4-1). Mais algumas vitórias e a liderança já sorri, aconchegante, para o rubro-negro (o campeonato é disputado em pontos corridos). Mas logo virão os percalços.

Tudo começa numa partida contra o América, em que o Flamengo, desconcentrado, atua mal e é derrotado (1-2). Contudo o pior não é o revés (o time segue na liderança), mas a perda do médio argentino Volante. Já veterano, Volante atua na faixa central, imediatamente à frente dos zagueiros, exibindo notável senso de marcação e cobertura. É o ponto de equilíbrio do sistema defensivo. Atua de forma tão característica e peculiar que seu nome virará símbolo da posição. Mas, ao se contundir na partida contra os rubros, Volante resolve, do alto de seus 33 anos, encerrar a carreira.

A perda de Volante é imediatamente sentida. O time perde harmonia, a elogiada linha defensiva do Flamengo se esfarela, jogadores como Artigas e o improvisado Quirino não são capazes de devolver o equilíbrio no meio-campo. O efeito logo se faz sentir no campo. Em cinco jogos, o rubro-negro empata quatro e vê a perigosa aproximação de Fluminense e do surpreendente São Cristóvão. O Flamengo parece prestes a perder o campeonato mais fácil de sua história. Algo precisa ser feito. Urgente. É então que surge o imponderável. Surge Ary Barroso.

Compositor de várias canções célebres, Ary é figura atuante no cenário artístico brasileiro. Mas é como locutor esportivo de rádio (“espíquer”) que Ary se torna conhecido, comentado, execrado e exaltado, quase uma celebridade. Ocorre que o autor de Aquarela do Brasil jamais esconde seu passional amor pelo Flamengo. E faz absoluta questão de deixar isso claro em suas transmissões. Narra as partidas rubro-negras como verdadeiras epopéias do “bem contra o mal”. Em ataques adversários, solta pérolas como “ai meu Deus, não quero nem ver!”, ou “a cidadela dos nossos heróis está em perigo”. Isso quando esses tipos de lance são narrados. Não é raro Ary largar o microfone diante de uma jogada inimiga e somente retomar a transmissão após o perigo ter passado, ou o pior ter acontecido. Irreverente e inovador, Ary sopra uma gaitinha de plástico, dessas de brinquedo, diante de um gol. Ao invés do tradicional grito (gooool), é a gaitinha firili-firiliu que irrompe nas transmissões. E se for gol do Flamengo, a gaita rebenta nervosa por um tempo interminável, apitando como um hino, anunciando ao mundo que o scratch rubro-negro acaba de assinalar mais um tento.

Mas a relação de Ary com o Flamengo transcende a prosaica figura do espíquer irreverente, amado e odiado. Ary participa ativamente do cotidiano do clube, freqüenta a sede, conhece dirigentes e conselheiros, opina ativamente na contratação de jogadores, inclusive no ar. Tornara-se célebre sua perseguição ao atacante Pirilo, contratado para substituir o polêmico Leônidas, negociado por conta de sua indisciplina indomável. Ocorre que Ary era fã incondicional do Diamante Negro, e não perde oportunidade para cornetar Pirilo. Não importa que Pirilo seja o artilheiro máximo do Flamengo, “se fosse Leônidas teria feito ainda mais gols”. A cisma, que se torna quase pessoal, só irá cessar algum tempo depois.

Preocupado, como todos os rubro-negros, com a queda de rendimento da equipe, Ary Barroso vai participar de um espetáculo no Paraguai. Lá, encontra-se com um amigo, e num momento de folga vai assistir a uma partida do campeonato local. Impressiona-se com o que vê em campo. Enlouquece com a atuação de um jovem médio, que se destaca dos demais de uma forma despudorada, até imoral. “O Flamengo precisando tanto de um médio, e esse sujeito aqui, esmerilhando a bola em campo. Não, algo precisa ser feito”. “É, o time deles topa vender, inclusive o Fluminense já andou sondando”. “De jeito nenhum, ele vai pro Flamengo. E é esse ano. Não, é agora. É já!

Terminada a partida, Ary vai ter com o jogador, que se empolga com a ideia de atuar no Brasil. Apressado, interrompe a temporada de shows, aluga um tecoteco, põe o sujeito debaixo do braço e praticamente “seqüestra” o atleta. Cena de filme. Ao descer do avião, o paraguaio calça meião e chuteira e vai treinar. Tem Fla-Flu domingo, e o cabra já tem que ser escalado. É o homem que vai resolver o problema da meia-cancha. Senhoras e senhores, chegou Modesto Bría.

Enquanto a diretoria flamenga resolve, às pressas, com o Nacional-PAR a situação contratual de Bría, Ary insiste com Flávio Costa que o cara é bom, que joga bola, que é craque, que vai resolver o problema. O mau humor de Flávio (normalmente avesso a esse tipo de intervenção) logo se esvai ao primeiro contato de Bría com a bola. Os olhos do treinador brilham, as mãos se esfregam. Não é possível, Bría é ainda melhor que Volante. Marca tão bem quanto o argentino, mas possui técnica refinada, um passe primoroso e ainda chega à frente como homem surpresa. Mas isso é uma pérola, um diamante. O Flamengo, agora, está ainda mais forte que no início da temporada.

Com Bría em campo, o Flamengo transforma o que seria um final emocionante em um passeio no parque. É verdade que empata o Fla-Flu (2-2), mas a seguir começa o baile. Enfia 5-1 no Bonsucesso, depois vai a General Severiano e mói o Vasco dos jovens Ademir, Chico, Isaías & Cia, empurrando 6-2, SEIS a dois, no cruzmaltino, até hoje a maior surra flamenga aplicada no lombo vascaíno. Na última rodada, basta cumprir o protocolo com mais uma amassada, dessa vez 5-0 no Bangu. O Flamengo é o bicampeão carioca. Estava escrito. Estava cantado.

Modesto Bría formaria com Biguá e Jaime a mais famosa linha média da história do Flamengo, uma linha até hoje lembrada pelos mais velhos em suas histórias e escritos. Bría, após encerrar a carreira, iria se tornar treinador e mais tarde olheiro das divisões de base. O paraguaio jamais deixou de trabalhar no Flamengo.

E assim se completa a história do campeonato de 1943. Uma conquista que parecia vir tranqüila, sem maiores dissabores, mas, bem à maneira flamenga, ameaçou virar drama, e se resolveu de uma forma bizarra, emocional, pouco convencional, aos tropicões. Um campeonato bem à feição de uma das mais peculiares figuras da trajetória flamenga. Polêmico, irreverente, passional, louco, encrenqueiro, “homem da gaita”, Ary Barroso recebeu vários adjetivos ao longo de sua vida. Mas, talvez a alcunha que mais se encaixe ao perfil desse mirrado mineiro de Ubá seja desconcertante por sua simplicidade, e pela capacidade de tão bem defini-lo.

Ary Barroso era, antes de tudo, Flamengo.

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