domingo, 27 de fevereiro de 2011

Tapa na bola

Esta não é uma história de ficção. Os personagens são humanos e reais, embora hoje não se possa mais disfarçar: alguns deles chegaram à fronteira da divindade e outros a ultrapassaram. Se o futebol é uma religião, o Flamengo tem seus deuses: Valido, do Milagre. Rondinelli, da Raça. Zico, da Plenitude. E Júnior, dos Mil Jogos, a quem pertence esta história que eu vou contar.

Corria o ano de 1982, dia vinte e três de setembro. Mais de cem mil pessoas no Maracanã. Decisão, Flamengo e Vasco a todo risco. O jogo poderia entrar pela prorrogação e daí para os pênaltis, mas todos sentíamos que aquela noite não acabaria jamais. Para nós, valia o pentacampeonato da Taça Guanabara. Para eles, o desejo de vencer os campeões mundiais.

Último minuto de jogo, zero a zero. Os radialistas falam em tempo extra e cogitam os possíveis cobradores dos pênaltis. Zico recolhe uma bola na intermediária e estica na extrema esquerda a Adilio. Torto, ele carrega a bola colada ao pé até a área do Vasco, passa pelo zagueiro sem mudar o traçado da corrida e, do bico esquerdo da pequena área, desliza a bola entre o poste e Mazarópi. Gol. Gol que faz explodir a arquibancada à esquerda das cabines de rádio, que faz abraços flamengos, que desmorona a pretensão vascaína de dobrar o Campeão Mundial de Futebol. Nunes entra na meta recém vazada e solta uma bomba, endossando o gol de Adílio.

O jogo recomeça e os adversários rondam a área rubro-negra, mas cometem falta de ataque. Era o suficiente para acabar o jogo, uma falta para o Flamengo, que esperaria o apito final com a bola passando de pé em pé. Porém, na continuidade do lance que originou a falta, a defesa rubro-negra afastou o perigo da área com um chutão.

Zico e Júnior estavam junto de Cantarele, na entrada da área do Flamengo, esperando o retorno da bola para cobrar a falta. E a bola chutada do campo do Vasco passou por Zico, Júnior e Cantarele. Com a vantagem rubro-negra, era de se esperar que nenhum deles saísse atrás da bola. A pressa era inimiga. Mas a bola que passou pelos jogadores tomou o rumo da meta, abandonada por Cantarele, que estava na entrada da área junto aos demais.

Então, como se a bola estivesse em jogo, ou mais, como se a bola em direção ao gol rubro-negro fosse uma bomba ameaçando o pavilhão flamengo, como se a meta fosse uma reserva de emoções e sentimentos a ser guardada a ferro e fogo, Zico e Júnior correram desesperados atrás da bola que saltava em direção à rede. A um passo do gol, vigiado por Zico, Júnior deu um tapa na bola para impedir que ela vencesse a linha. O jogo estava parado, o título estava assegurado, mas Zico, Júnior e todo aquele Flamengo, todos sabiam que um jogo entre Flamengo e Vasco não dura os noventa minutos: dura por toda a vida.

E eu não disse que Zico ordenou a alguém, que Júnior olhou para Cantarele e disse "corre!". Foram eles, os maiores de todos, os intocáveis, que do alto de sua majestade perseguiram a bola como se fossem moleques, impedindo a sua entrada em nosso gol, mantendo imaculada, absolutamente imaculada a meta flamenga. Júnior deu um tapa na bola. Um tapa na bola, provavelmente o único que deu na vida. Escrevam em seu currículo: Júnior, mil jogos pelo Flamengo e um tapa na bola, em legítima defesa do que é sagrado. Um rubro-negro à flor da pele.

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