terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos. Antes de mais nada, parabéns aos nossos jovens heróis, que já desde cedo vivem a emoção de conquistar um título com a cara do Flamengo: início claudicante, time se acertando ao longo do torneio, final dramática. E dentro de São Paulo é ainda mais saboroso.

Voltando a atenção pro time profissional, domingo teremos o primeiro real teste do ano. Ahn, quer dizer, em tese, né? É o Vasco, né...? Bem, independente da fragilidade e do péssimo momento do adversário (que tem proporcionado momentos muito divertidos), já dizia o filósofo contemporâneo que “clássico é clássico, e vice-versa”.

Assim, hoje quero deixar uma história de um jogo entre um Flamengo babando, em plena arrancada, e um Vasco vivendo um momento ruim. O resultado? Um dos jogos mais espetaculares da história do confronto. Boa leitura,

O Vira-Vira da Virada

1963, novembro. O carioca respira futebol, bebe litros de futebol nos bares, come futebol de churrasquinho, frito, à milanesa, vive os grandes eventos que se acumulam no final de um ano movimentado. Com efeito, o Santos acaba de golear o Milan (4-2) em noite lotada de quinta no Maracanã, provocando jogo extra, dali a dois dias. Só que, antes, Flamengo e Vasco medirão forças, em partida válida pela reta final do Carioca.

O Carioca de 1963 vem sendo um dos mais movimentados e emocionantes da história. É marcado pela decepção do Botafogo, bicampeão e favoritíssimo com seu elenco estelar (Garrincha, Nilton Santos, Zagalo, Manga), mas que não consegue administrar a estafante rotina de amistosos, a vida desregrada e as contusões de Garrincha e a venda de Amarildo para o futebol europeu. Sem o Botafogo, destacam-se a equipe certinha do Fluminense (Castilho, Altair, Escurinho, Procópio e o jovem C.A. Torres) e, principalmente, o jovem Bangu (Ubirajara, Zózimo, Paulo Borges, Bianchini, Parada), que vai atropelando seus adversários um a um, é a sensação da competição e o queridinho da mídia. Só se fala na “máquina suburbana”, já considerado por muitos o virtual campeão. Com efeito, o time pratica um futebol vistoso e muito eficiente.

O Flamengo sofre com dívidas e com a incapacidade de atrair jogadores renomados. O time não consegue repor a saída dos seus principais jogadores, negociados em cascata com o futebol europeu. Com isso, o Manto vai sendo trajado por uma série de jogadores medianos e pouco expressivos, e o rubro-negro perde o protagonismo em nível regional. Já se vão oito anos de jejum. Nem mesmo o título do Rio-São Paulo em 61, o canto do cisne da geração dos anos 50, é capaz de disfarçar o mau momento.

E a equipe que o rubro-negro põe em campo para a disputa do Carioca é reflexo dessa má fase. Seus melhores jogadores são os médios Carlinhos e Nelsinho e o lateral-esquerdo Paulo Henrique. Ladeando esse bom trio estão nomes como os atacantes Osvaldo Ponte-Aérea, Espanhol e Airton Beleza, o zagueiro Ananias e o goleiro Marcial, aposta trazida do Atlético-MG. O treinador Flávio Costa, considerado superado, sofre inúmeras críticas por afastar do elenco justamente seu melhor jogador, Gérson (Canhotinha) e o veterano ídolo Dida, enfraquecendo ainda mais um grupo já limitado.

Mas Flávio Costa consegue montar um time brigador e aguerrido. O Flamengo surpreende quando destroça o Botafogo no início (3-1) e engata uma série de vitórias. Mas logo perde jogos e pontos bobos e vai ficando pra trás. Na reta final da competição, está em terceiro, a quatro pontos do líder Bangu (a vitória vale 2 pontos). Normalmente, essa distância é inalcançável, e todos consideram a briga pelo título restrita ao time de Moça Bonita e ao Fluminense. Descartado, o Flamengo trabalha.

Uma seqüência de vitórias suadas contra pequenos mobiliza e anima o torcedor flamengo, que de alguma forma começa a enxergar uma alma vencedora naquele time mulambo. A Nação, sábia, parece pressentir quando as vitórias virão, mesmo de onde menos se espera. E transformará o jogo contra o Vasco, aparentemente disputado entre duas equipes já fora da disputa, num acontecimento épico.

O Vasco já não aspira a mais nada. Também vivendo um momento de entressafra, sem conseguir montar uma base de alto nível, possui uma equipe bem limitada, onde se sobressai apenas a vigorosa zaga formada por Brito e Fontana. O time de São Januário encontra-se numa acirrada briga com América e São Cristóvão, disputando o quinto lugar. A sua única motivação para o clássico é justamente o adversário.

Sexta-feira, 15 de novembro, 68 anos de Flamengo, 90 mil no Maracanã. A torcida flamenga é esmagadora maioria, e recebe seus heróis com extremo carinho, exalta seus representantes como craques. Vai começar o jogo que decide a sorte flamenga. Se quiser ainda manter suas chances remotas, não pode nem pensar em empatar.

Acostumados a vaias e apupos, os jogadores estranham, parecem anestesiados. E demoram a entrar no jogo. O Vasco, com os brios feridos, parte pra cima, começa num ritmo alucinante. E, com 16 minutos, já vence por 2-0. Incrédula, a Nação não acredita no que assiste. O Flamengo é inteiramente dominado pelo adversário, que faz Marcial trabalhar intensamente. Acuado, sem forças, inerte, o time agradece aos Céus quando a arbitragem trila o apito encerrando a primeira etapa. Nunca uma derrota por dois gols fora recebida com tanto alívio. Apenas dois gols.

Pode ter sido um esporro antológico de Flávio Costa. Pode ter sido a vergonha por ter sofrido um vareio de um time meia-boca, pode ter sido a fé da Nação, que mesmo com a escovada permanece ali, firme, pronta pra voltar a cantar, pode ter sido uma mãozinha de São Judas Tadeu, pode ter sido uma dessas coisas que só quem é Flamengo sabe e explica. O fato é que o Flamengo volta Flamengo do vestiário, entra salivando, porejando sangue, cada jugular vascaína vira canela. Como uma determinação messiânica, bíblica, o Flamengo se abandona contra a assustada área cruzmaltina. Com apenas um minuto, Aírton Beleza diminui, mais um pouco e Aírton Beleza empata. Jogador curioso, esse Aírton Beleza. Dono de uma queixada proeminente, temperamento difícil, mas faz gols com facilidade, normalmente de canela ou coisa parecida. Enfim, o artilheiro da temporada empata a partida, e ainda temos apenas 12’. Logo depois do empate, o atacante Geraldo avança e é derrubado por Brito, mas o árbitro ignora. Não faz mal. Vai virar, o estádio sabe disso, o Rio sabe disso.

Mas não vira. O Flamengo se torna vítima de sua fúria, e sua cidadela em abandono é explorada pelo perigoso atacante Mário, que num contragolpe põe novamente o Vasco em vantagem. O Flamengo está atrás do placar (2-3), e tem trinta minutos pra reagir.

Após o gol, o Vasco resolve optar pela defesa pura, simples e despudorada. Entrega-se obscenamente ao bicão e à porrada, chamando o Flamengo pra seu campo. É um erro que se mostra fatal. A Nação, como em tantas vezes, pega o time no colo e empurra. A raça dos heróis flamengos inebria o estádio, Carlinhos vai regendo os ataques da equipe, as chances de gol vão sendo empilhadas, a clava bate, bate, bate, até que aos 24’ o árbitro se redime e marca pênalti pro Flamengo. Na confusão, o enjoado Mário vai expulso, o jogo fica parado um bom tempo. Mas Osvaldo Ponte-Aérea dá uma porrada e empata. Com dez, o Vasco está entregue taticamente, mas não na alma. Um vascaíno jamais aceitará perder pro Flamengo nem em desenho animado. Mas os lusitanos pouco podem fazer, agora é o Flamengo, a Nação, São Judas, todo o âmago da essência flamenga que se amalgama e se mobiliza na busca por um gol. Um único gol. Vai virar, vai virar, todo mundo sabe que vai virar.

E vira. Vira quando Aírton Beleza arromba as redes de Marcelo, já na reta final da partida, tornando-se figura mitológica e personagem indelével na história do clássico. O Maracanã, acostumado a Pelé, Garrincha, Didi e tantos outros, curva-se ao futebol tosco e vencedor de Aírton Beleza, que com três rústicos gols crava Flamengo 4-3 Vasco. Um jogo sensacional, antológico, um dos mais espetaculares encontros entre esses rivais seculares. O Flamengo segue vivo, o Vasco retorna à obscuridade.

A vitória flamenga é tão retumbante que logo começa a ecoar. No final de semana, o Fluminense é surpreendido pelo Botafogo (0-3) e o Bangu, após abrir dois de vantagem, cede empate ao América (2-2). Ambos ainda são os maiores candidatos ao título. Mas seu favoritismo é apreensivo, tenso, nervoso.

Porque logo atrás, bufando, chegando, ali pertinho, está o Flamengo.

(PS – O Flamengo atropelaria o Bangu, 3-1, e, beneficiado por mais um tropeço tricolor, chegaria à última rodada na liderança. Com o 0-0 no Fla-Flu decisivo, o “jogo do século”, maior público entre clubes da história, o rubro-negro se sagrou campeão de 1963).

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