terça-feira, 27 de julho de 2010

Alfarrábios do Melo

Olá, saudações rubro-negras. “Flamengo é Flamengo”, outro dia alguém falou. E por mais que se tente mostrar o contrário, jamais perderá sua capacidade de ser Flamengo. E é isso que mostro agora, em mais uma das inúmeras surras educativas que foram concedidas ao adversário de domingo. Boa leitura.

O Dia de Bujica

1989. Um dos mais intensos anos da história recente se aproxima do seu final, com Muro caindo, chineses massacrados, eleições diretas, Brasil campeão das Américas após 40 anos. Paradoxalmente, ou talvez por causa de tudo isso, o Brasileiro vai sendo tocado em banho-maria, sem empolgar muito. É quando a tabela finalmente faz com que Flamengo e Vasco se encontrem.

O clássico é vivamente aguardado, desde a rumorosa transferência de Bebeto para o cruzmaltino, que fez a rivalidade atingir níveis inflamáveis. A entrada de Bebeto torna o já forte time vascaíno uma constelação de jogadores, gente do naipe de Mazinho, Tita, Bismarck, Luís Carlos Winck, Andrade. A equipe passa a ser chamada de “SeleVasco”, em função do nível do elenco e da influência que seu vice, Eurico Miranda, exerce na CBF, como diretor de seleções. De qualquer forma, o competente treinador Nelsinho Rosa consegue harmonizar a equipe, que embala e vai vencendo seus jogos. É o favorito absoluto ao título.

O Flamengo, ao contrário, não faz bom campeonato. Após desmontar a equipe que encantou o país no primeiro semestre, a diretoria, completamente desnorteada com a desastrosa condução do “Caso Bebeto”, contrata a esmo, muitas vezes sem critério. Nesse contexto, acerta na vinda de Renato, do zagueiro Fernando (ex-Vasco) e do volante Uidemar, mas erra com o lateral Josimar, o zagueiro Márcio Rossini, o atacante Nando e principalmente com o avante argentino Borghi, reforço badalado e caríssimo que praticamente não entra em campo, às voltas com um insolúvel problema muscular. Os comandantes são os já veteranos Zico e Júnior, que (aparentemente) vislumbram o final da carreira. O treinador Valdir Espinoza, trazido do Botafogo a peso de ouro, não consegue “dar liga” ao time, que patina nas posições intermediárias. Para piorar, entra em crise a poucos dias do clássico, ao perder três jogos seguidos para equipes paulistas. O ambiente é de caos absoluto.

Percebendo a aparente vulnerabilidade do adversário, o Vasco passa a semana convocando seu torcedor a descer em massa ao Maracanã para assistir à “grande exibição”. Ébrios de euforia, os vascaínos não admitem resultado diferente de uma vitória, preferencialmente folgada. Exsudam o âmago de sua essência, que orbita em torno do maior rival. Não há, dentro das hostes lusas, galardão maior do que vencer o rubro-negro em uma disputa dentro das quatro linhas. Numa semana de clássico, São Januário vive Flamengo, respira Flamengo, come e bebe Flamengo, retroalimentando-se numa quase doentia obsessão que o torna, de forma perene, mera caricatura da grandeza flamenga. E esse fenômeno está cada vez mais aceso nesse novembro de 1989. Ouriçados, os vascaínos ainda têm Bebeto, que anseiam esfregar na cara do rival. Entorpecido com o clima festivo, Bebeto promete retribuir o carinho com gols no domingo. MUITOS gols, faz questão de ressaltar.

Enquanto isso, o Flamengo trabalha em silêncio. As bravatas do rival acalmam o ambiente na Gávea, que se esquece da crise. Mas Espinoza tem muitos problemas. Zagueiros suspensos e contundidos, Renato fora. O jeito é improvisar Júnior na zaga e fechar o meio com Ailton e Zinho. E formar um ataque cheio de garotos.

Chega o dia. Maracanã com 60 mil, recorde de público do Brasileiro. E a primeira surpresa vem com a constatação de que, ao invés da propalada invasão vascaína, o estádio está dividido. Mesmo assim, os cruzmaltinos estão animados, e irrompem em risadas quando sai a escalação flamenga. Para enfrentar Tita, Mazinho e Bebeto, o Flamengo alinha Luís Carlos e Bujica. Cantam a goleada que julgam iminente.

Hora de entrar em campo. Silêncio na entrada do túnel, os jogadores flamengos se entreolham. Zico, sempre Zico, pede a palavra. O general de tantas batalhas vai falar. E é sucinto. Olha a todos nos olhos, detém-se nos mais jovens. Sua voz sai pausada, mas transborda força, exala a determinação juvenil de um monstro sagrado, que levou o Manto ao topo do mundo. “Nós somos melhores. O time deles não ganhou nada, somos os melhores porque somos Flamengo, e enquanto formos Flamengo seremos sempre melhores. Então, EN-FIA A FA-CA E RO-DA!!!” Mais nada precisa ser dito. O time, arrepiado, entra em campo.

A partida é acompanhada por todo o país, que contempla o desenrolar de um enredo que surpreende os mais desavisados. Não o torcedor flamengo, que sabe, emite a plácida convicção dos ungidos, e exprime a mais absoluta certeza de que o Manto se agigantará e engolirá todo o riso e a empáfia de um adversário que nunca o ladeará em estatura. Resta apenas berrar por seus heróis. E desfrutar o espetáculo.

Pois o que se assiste é uma verdadeira aula de futebol, aplicada com minúcias e requinte de detalhes. O Flamengo despeja em campo todo o peso de sua história e de sua camisa. Assusta. Impõe. Intimida. Os vascaínos tocam a bola, tentam controlar o meio, mas estão travados. Bloqueados. Afogam-se em sua prepotência, que logo dá lugar ao medo. O Manto está em campo, e se manifesta na classe de Júnior, que está soberano na área, cortante e preciso na cobertura e na saída de bola. Ou de Zico, que faz todos salivarem com sua sutileza e exuberância. Está imarcável. É a última vez que irá enfrentar e subjugar os vascaínos, quer deixar-lhes a última lembrança, marcada em brasa, indelével. É a referência técnica e moral de um grupo que mareja sangue por todos os poros. Monstro, senta Zé do Carmo na grama com um sutil meneio de corpo. Junto com o boquirroto volante, o estádio vai ao chão.

Mas não é nos velhos heróis que o Manto aparece. Porque o Manto é Sagrado por conferir divindade a simples mortais. E é nessa imprevisibilidade que reside a força, a magia, a essência flamenga. E lá estão dois moleques. Um se chama Luís Carlos, prazer. Até então opaco e desconhecido, o menino cabeludo destrói todo o lado direito da defesa vascaína, risca seus zagueiros de um lado pro outro, imparável, intangível. O outro tem nome de pivete...

O Vasco cerca, toca a bola. Quando é desarmado, o Flamengo avança sua cavalaria, impondo uma velocidade enlouquecida, que desnorteia a pesada defesa rival. E é assim que Zico inicia a jogada que chega em Alcindo, que bate cruzado. Acácio larga nos pés do garoto Bujica, do brasileiro Bujica, do Flamengo Bujica, que se abandona nas redes e começa a fazer história.

Há mais. Segundo tempo, o Vasco parece melhor agora, ameaça com mais freqüência o gol de Zé Carlos. O zagueiro Quiñonez (uma espécie de Jr. Baiano do Equador) avança, é facilmente desarmado por Júnior. O contragolpe é mortífero, de almanaque. Zico, no esplendor de seus 36 anos, dá um pique de garoto e recebe na corrida. E rola uma bola de veludo, de bilhar, que mansamente vai ao encontro dos pés do menino que viverá seu dia de herói, transido pelo momento em que personificou a mística da camisa que joga e se impõe sozinha. Bujica 2-0.

Fatura liquidada, enfim começa o baile do qual os vascaínos tanto falaram. Mas é estranho, não parecem gostar do que vêem. A Nação se divide em olés e no mantra “Bu-Ji-Ca”, ensurdece. Enquanto Zico, Júnior, Leonardo, Zinho e os garotos acariciam a bola, o adversário se estapeia descontrolado. E Bebeto? Espectador ilustre, omisso e escondido, somente aparece quando bate boca com Zé Carlos, é expulso e sai em prantos pelos fundos, consumando um enredo que nenhum humano conceberia, tal sua inverossimilhança. Coisas do Manto.

Ao final da partida, o Rio está em festa, o Brasil está em festa, o futebol sorri. E Zico, com a serenidade dos monarcas, atende gentilmente à horda que aflui em busca de uma explicação para o massacre que acaba de acontecer. Lacônico e soberano, só necessita de uma pequena frase, não mais.

“Flamengo é Flamengo.”

Vídeos: "Bujica, o Caçador de Marajás" - parte 1 2

Flamengo 2-0 Vasco (crédito www.youtube.com/user/rafaelcpedro)

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