terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Alfarrábios do Melo

Olá, saudações HEXACAMPEÃS a todos. Nessa semana, posto mais um episódio para a série “Grandes Jogos Internacionais”, dessa vez com o amistoso entre o Flamengo e o mitológico Honved, de Puskas, ocorrido em 1957. No final, um vídeo precioso, uma raridade que recomendo a todos. Então, boa leitura.

Série Grandes Jogos Internacionais

Flamengo x Honved – 1957

Imaginemos uma enquete: “qual a melhor seleção de todos os tempos?”, mas com uma ressalva: não vale nenhuma Seleção Brasileira. Certamente uma das mais lembradas será a Hungria de 1954, que apavorou o planeta. E se essa máquina de jogar bola, ou pelo menos a sua espinha dorsal, enfrentasse o Flamengo? E se o jogo fosse num Maracanã lotado?

1957, janeiro. O Rio de Janeiro ferve intensamente, vive o clímax do verão, prepara-se para o Carnaval que está logo ali. Mas antes dos festejos de Momo, um acontecimento já mobiliza a cidade: o Honved da Hungria irá excursionar ao Brasil.

A antológica seleção húngara trucidou tudo o que encontrou pelo caminho entre 1950 e 1954, quando estabeleceu a espantosa marca de 32 jogos invicta, foi campeã olímpica e tornou-se célebre por massacres, biabas de sete, oito, nove em quem aparecesse. Na Copa de 1954 goleou todos os seus adversários (inclusive o Brasil) até esbarrar no destino e na Alemanha na final, naquela que é tida como a maior zebra da história das Copas.

Em 1956, os húngaros, mais amadurecidos, eram favoritos para a conquista da Copa de 1958. E a base de sua seleção era o Honved, time das Forças Armadas do país, que vivia sob sistema comunista. Seus principais nomes eram o goleiro Grosics, uma verdadeira parede, os habilidosos médios Boszik e Lantos e seu ataque devastador, comandado pelo irrequieto ponta-direita Budai, o rápido e driblador ponta-esquerda Czibor e o mortal atacante Kocsis, artilheiro da Copa de 1954 e especialista no jogo aéreo. Mas a grande estrela era ninguém menos que Ferenc Puskas, o Major Galopante, um dos maiores talentos que o futebol já produziu em todos os tempos, dotado de uma obscena intimidade com a bola, uma aguda capacidade de pensar o jogo e dono de duas verdadeiras armas nas pernas, capazes de disparar indefensáveis projéteis a gol, tornando a vida de goleiros adversários um escaldante inferno.

No entanto, enquanto o Honved excursionava pela Europa, rebentou uma rebelião na Hungria, prontamente sufocada pelos tanques soviéticos. Revoltados, os jogadores húngaros não quiseram retornar ao seu país natal. Pressionada pelo governo magiar, a FIFA acenou com a ameaça de desfiliação do clube. Alguns países europeus se recusaram a receber a equipe. O jeito foi se voltar para praças alternativas. Assim, surgiu a oportunidade para o Honved se exibir em terras brasileiras. E o seu primeiro adversário seria o Flamengo.

O rubro-negro vem em processo de renovação. Seu treinador, o paraguaio Fleitas Solich, enfrenta o desafio de remontar a equipe, que é apenas uma caricatura do Rolo Compressor tricampeão carioca, e que no ano anterior perdera a chance de conquistar o tetra. Para piorar, no início do ano algumas peças-chave estão fora de combate, como o médio Dequinha, o ponta-direita Joel e o ponta-esquerda Zagalo. O jeito é recorrer a garotos, como os jovens Milton, Luís Roberto, Edson e Moacir, completando a base formada pelo bom goleiro Ari, o aguerrido defensor Pavão, os velozes pontas Paulinho e Babá e os goleadores Evaristo e Henrique. Parece pouco, muito pouco para enfrentar os melhores do mundo.

E com efeito, poucos imaginam algo diferente de uma sonora goleada do Honved, diante de um Flamengo improvisado. Causa arrepios a perspectiva de contemplar o tosco Tomires, zagueiro voluntarioso e dado a bicudas que nem sempre acertam apenas a bola, exercendo marcação sobre o cintilante Puskas. Ou do miúdo Babá, do alto de seu metro e meio, conseguindo algo diante dos cavalos de raça europeus. Vários críticos consideravam uma temeridade expor o nome flamengo à humilhação diante de sua torcida e de todo o país.

Sábado, sol, 113 mil no Maracanã. Mais do que um jogo, temos um acontecimento social. Presentes às tribunas, o presidente Juscelino Kubitschek, o prefeito Negrão de Lima e o Cardeal Dom Hélder Câmara, entre outras autoridades, celebridades e bicões. O público parece resignado a apenas assistir aos húngaros. Torce só para que o Flamengo faça papel digno. Mário Vianna apita. Imagina-se que os húngaros partirão pra cima, conhecidos que são por abrir logo dois gols de vantagem em seus jogos. Mas é o Flamengo quem agride. Ninguém entende nada, o rubro-negro começa a criar uma chance atrás da outra. Fleitas Solich, paraguaio que conhece a alma flamenga como poucos, arma o time numa tática suicida. Quer o Flamengo pressionando, sufocando. Afinal, o jogo é no Maracanã. Valentes, os comandados do “Feiticeiro” cumprem seu plano à risca e transformam em estupefação o que era apenas surpresa. O jovem Moacir surpreende Grosics e abre o placar.

Com o gol, o Flamengo passa a evoluir em campo, inteiramente à vontade. A garotada rubro-negra toca uma correria alucinada e harmônica, que transtorna a defesa européia e frustra os abutres da crônica esportiva. O Flamengo não tem um maestro, ninguém que pense o jogo. Em compensação, atira-se à bola com a volúpia dos conquistadores. A magnitude e a grandeza do adversário, longe de intimidar, serve de combustível para a meninada de Don Fleitas. Atônitos, os húngaros, acostumados a serem recebidos com reverência e pavor, não conseguem lidar com a sufocante pressão de um bando de pivetes. Sim, senhores. O Manto Sagrado está jogando sozinho, empurrando, massacrando, bombardeando a meta de Grosics. E vai empilhando gols: o mortífero Evaristo e o certeiro Henrique ampliam, ensaiam a goleada. Num lance isolado, os húngaros diminuem, mas o primeiro tempo termina com vistosos 3-1 a favor do Flamengo. A numerosa platéia não sabe como reagir. Viera preparada para contemplar os gringos, mas assiste a um show flamengo.

“Vão virar, os húngaros são os bons”, alguns corvos ainda praguejam. Mas no segundo tempo Fleitas Solich dá o golpe de misericórdia. Lança a dupla Dida e Duca, vai aumentar a correria (em amistosos, substituições eram permitidas). Mas o Honved, refeito do susto, volta mais precavido, começa a mostrar seu belo futebol, repleto de passes de efeito, deslocamentos em velocidade, lançamentos longos. Realmente se trata de uma monumental equipe, de futebol muito refinado. O jogo se torna um maravilhoso duelo entre os virtuosos húngaros e os intrépidos, velozes e destemidos flamengos. E, em que pese o talento de Pavão e a volúpia quase assassina de Tomires, as defesas são inteiramente dominadas pelos ataques.

E assim começa o espetáculo: cada vez que o Flamengo retoma a bola, de imediato solta sua cavalaria. Dida, Duca, Paulinho e Babá fazem cada húngaro sentir saudade de sua terra natal. Principalmente Babá, o xodó da torcida. O minúsculo cearense incorpora um personagem de desenho animado, arrasta a bola como um camundongo, rabisca afrescos pelo meio de uma floresta de pernas e chuteiras adversárias. A zaga do Honved tenta pará-lo com chutes, vassouradas, porretes, tiros de revólver. Mas Babá é uma barata chata, recusa-se a morrer. E arranca caudalosas risadas de uma torcida que já não se incomoda em torcer e vibrar por seus heróis. E os gritos da nação flamenga são decisivos, inebriam o time, volta a se estabelecer o imbatível elo entre o Flamengo e sua gente, que nada nem ninguém é capaz de derrotar.

E a magia flamenga volta a se traduzir em gols. Paulinho e Dida ampliam, o Honved desconta, mas Evaristo, um dos mais letais atacantes que o futebol brasileiro já produziu, crava o sexto punhal nas redes magiares. O Flamengo vai vencendo por imorais, devassos, despudorados SEIS a DOIS. Atiram-se chapéus para o alto, desconhecidos se abraçam, gargalham.

Humilhado em seu amor-próprio, o Honved parte pra cima como uma besta ferida de morte. E silencia os mais apressados com minutos da mais pura arte da bola. Puskas endemoninha-se, marca dois gols, o Honved agora é todo pressão, o Flamengo responde em contragolpes, os minutos finais se tornam uma épica batalha, uma ode ao futebol bonito e bem jogado, o merecido clímax de um verdadeiro espetáculo.

Mário Vianna fecha as cortinas. Final, Flamengo 6-4 Honved.

Flamengo e Honved ainda iriam se enfrentar mais quatro vezes (duas vitórias húngaras, uma flamenga e um empate, esses dois últimos na Venezuela). Mas esse primeiro jogo do Maracanã deixaria marcas profundas. Um grupo de jovens jogadores flamengos, defendendo com ardor seu Manto Sagrado, mostrava que, livre do medo e do respeito excessivo, o futebol brasileiro era bem mais do que mero coadjuvante.

Era o melhor do mundo.

(créditos www.youtube.com/user/marcelohirie)

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